O que esperar de uma elite política, após a irrupção indignada de numerosos cidadãos nas ruas? Que reveja seus roteiros de ação para reverter essa indignação. Numa democracia que mereça esse nome, isso não esvaziará as ruas permanentemente nem restringirá a política a um mero jogo de bastidores, entre elites e partidos. Ao mesmo tempo, nenhuma democracia se manterá como tal se dispensar elites e partidos.
Uma democracia que flui como um processo crescentemente inclusivo permite mudanças no papel dos vários atores, dentro e fora da sociedade política, bem como o acesso de novos atores às decisões ali tomadas. Para não perder pontes com os interesses e os valores dos representados, a representação política depende, numa parte, da dinâmica social e, em outra boa parte, da flexibilidade da elite dirigente, que se revela através da forma como ela revê suas estratégias.
O que esperar de partidos e lideranças políticas quando, em momentos de insatisfação social ou de dificuldades econômicas, o jogo democrático apresenta-se truncado pelos impasses habituais das táticas do varejo político, ou quando as crises até resultam, em parte, desse próprio varejo? Espera-se que os partidos atuem como instituições (corpo organizado de regras) e os líderes como estrategistas do atacado, para restabelecerem a fluência do jogo. Às vezes, a perturbação é tão grave que é preciso mudar as regras. Mas na maioria dos casos um bom pacto ajuda mais do que uma custosa cirurgia institucional.
Um equívoco da percepção moralista da política no atual contexto brasileiro é a demonização generalizada da nossa classe política e da sua vocação histórica para estabelecer pactos. É comum vê-los sempre como conchavos contra o povo, quando muitas vezes são apenas acordos para que o jogo democrático não trinque e outras vezes são até soluções mais amplas, que permitem que o jogo se abra à participação de novos atores. Se políticos são sempre um problema (em nossa terra e além-mar), nunca deixaram de ser, também, parte importante de soluções coletivas que o Brasil pôde encontrar, ao longo de sua história, para seus problemas, entre os quais o da garantia das liberdades.
Está aí, como emblema maior, a Constituição de 1988, obra da chamada classe política brasileira. Obra socialmente condicionada e não pura dedução doutrinária ou fruto de vontades arbitrárias. Liderada por Ulysses Guimarães, a Constituinte engendrou a Carta em boa parte sob o impulso das ruas e sob um roteiro forjado pela militância ativa da sociedade civil. Mas ela também coroou a estratégia de uma oposição institucional que, durante quase duas décadas (do contexto da edição do AI-5 à vitória de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral), construiu — sem nem sempre ter consciência plena de que o fazia —, a partir do Parlamento e da organização do MDB, a frente democrática que, em sintonia gradual e crescente com a sociedade civil, isolou e afinal derrotou a ditadura. Desse modo, o 15 de março de 1985 foi, em vários sentidos, um contraponto histórico ao 31 de março de 1964.
O êxito da transição democrática deveu-se à combinação de luta e conciliação. Combinação que faltou em 64, quando, à direita e à esquerda, a luta exacerbou-se além do ponto conveniente e possível numa democracia. A conciliação foi rejeitada não só por radicalismos, como os de Lacerda e Brizola, como também pela complacência que encontraram em áreas não radicais, mas movidas por uma lógica imediatista. A conjunção de radicalismo, demagogia e imediatismo eleitoral tornou inaudíveis vozes democráticas lúcidas, como as de Tancredo Neves, Celso Furtado e San Tiago Dantas. Isso truncou o jogo da democracia e facilitou a ação dos golpistas. Houve conspiração? Claro, mas seu êxito não se explica pelo simples fato de ter havido.
É auspicioso que, no transcurso dos trinta anos do que seria a posse de Tancredo Neves, o 1985 tenha sido celebrado nas ruas, tendo o protesto e a luta como pontos de partida. Mas é preciso não perder de vista que daqui até o ponto de chegada não se terá uma linha reta. O “fora Dilma” tem a mesma índole primária do “fora FHC” do final dos 90: reflete menos uma solução política racional e mais a realidade de uma insatisfação difusa, instintiva, contra “tudo o que está aí”, estimulada, naturalmente, pela oposição da vez. Esse ponto de partida tornou-se visível, mesmo que a banda recalcitrante do petismo siga virando as costas à análise política realista e se escudando, contra todas as evidências, numa sociologia partidária das manifestações, enxergando nelas uma conspiração perpetrada por uma “elite branca e golpista”, que se pode, no entanto, contar aos milhões. Esse discurso perde fôlego todo dia, mas ainda encontra eco institucional em setores do governo e em falas do próprio Presidente do PT.
Ao contrário do ponto de partida, o de chegada é, de fato, invisível aos atores do presente. No entanto, se seu destino é atuar, eles não têm escolha: precisam fazê-lo, apesar das densas nuvens. Sem o script conciliador de 1985, que foi também (não se esqueçam os gregos e os troianos) tanto o do Plano Real, em 1993, como o da carta de Lula aos brasileiros em 2002, não chegaremos a um lugar melhor, enquanto a deriva pode nos levar a um não-lugar, do ponto de vista da democracia.
Esse receio não provém da presença de fardas e quepes no horizonte político. São, contudo, várias as roupagens que pode assumir um retrocesso institucional. Assim o receio se justifica, pois a avaliação realista de que a conciliação é o caminho, o método (embora não necessariamente o desfecho), não revoga a percepção, também realista, de que tem predominado, também nos ambientes políticos, o conflito entre o senso comum moralista e a lógica corporativa de um partido político. Seja por pragmatismo eleitoral ou por interesse patrimonialista, a elite política nacional (ao menos algumas de suas mais relevantes facções) flerta perigosamente com a silhueta de uma vala comum, onde a conjunção de crises ameaça jogá-la por inteiro.
Por outro lado, crises podem ter o papel pedagógico de atiçar o instinto coletivo de sobrevivência, próprio de elites políticas experientes no governo da sociedade, caso da brasileira. Talvez por isso o agravamento das crises esteja dando, mais recentemente, visibilidade a atores cuja estratégia mobiliza o entendimento como método. No começo dessa crise se ouviam, aqui e ali, suas vozes quase sussurrantes, perdidas num mar de desafios e bravatas. Agora cada vez mais frequentemente eles se dirigem ao centro da cena política e ocupam mais espaço no noticiário. Um desses atores tem se destacado, justificando, a meu ver, uma observação cuidadosa de seus movimentos. Trata-se do Vice-Presidente da República e também Presidente do PMDB, Michel Temer, a quem não tanto a virtù, mas a fortuna transforma em peça importante para a viabilização de um cenário em que o idioma do entendimento pode levar a um desfecho em que a crise é espantada por uma conciliação. Refiro-me a uma solução provisória do contencioso político, envolvendo um arco de partidos, do governo e das oposições, para permitir controle da economia e pavimentar um caminho institucional comum até as eleições de 2018. Tudo sem prejuízo da plena aplicação de soluções punitivas que os bem-vindos processos judiciais em curso encontrem para coibir a corrupção que apuram.
Cenários: Temer como um elo em si, ou para si
Erra sobre o PMDB quem lhe atribui lugar e papéis fixos na política brasileira. Hoje ele não se resume a ser o símbolo de um sistema supostamente moribundo (o presidencialismo de coalizão, que uma “reforma política” arquivaria) e de uma democracia dita “de fachada”, a ser superada a partir de agora por uma “verdadeira” democracia centrada nas ruas. E também não é simplesmente uma usina conspiratória profissional e astuta, que empareda o Governo e dificulta o ajuste fiscal para ser beneficiado pelo fracasso do primeiro e seu possível desdobramento: o impeachment da Presidente.
Michel Temer, o presidente do PMDB, não atua no momento com o mesmo script de Eduardo Cunha e Renan Calheiros, principais lideranças do partido no Congresso. O script de Temer é um obstáculo aos caminhos dos outros dois líderes, que jogam para enfraquecê-lo. Já Cunha e Renan atuam com o mesmo script, mas não chegam a formar uma dupla. Jogam paralelamente e autocentradamente. Não há liga política nem real cooperação entre eles. Esse “ultraindividualismo” — exacerbado, na atual conjuntura, pela necessidade de escaparem da operação Lava Jato — é o limite da liderança de ambos. Esse limite abre uma brecha através da qual pode surgir uma saída para o conjunto da elite política, ameaçada pela conjunção das crises econômica, política e moral que caracteriza o momento atual.
Não sei se será o governo ou a oposição (tucanos + PSB, PPS, etc.) quem entenderá primeiro que essa saída passa necessariamente pela atuação (e não pelo descarte) do PMDB “institucional”, entendimento que aconselha o fortalecimento de Temer e o esvaziamento do poder de Cunha e Renan, que não é sinônimo, vale dizer, de enfraquecimento do Congresso. Ao contrário, promove seu fortalecimento enquanto casa vocacionada à negociação e não à retaliação. Há sinais, embora ambíguos, nos dois campos políticos principais, de que algo começa a se mover na direção dessa compreensão.
O Governo pode vir a fazer (ou será que já faz?) de Michel Temer o canal de atendimento de algumas demandas das bases congressuais dos dois rivais do Vice na luta interna peemedebista, como também “terceirizar”, através dele, um diálogo com a oposição. Ambos os passos seriam voltados à aprovação do ajuste fiscal, negociação que nem a Presidente, nem seu ministro da Fazenda, nem Lula, muito menos o PT, estão conseguindo fazer avançar na velocidade requerida pela crise. Certo é que, se a aprovação da sua proposta de ajuste (mesmo com modificações) resultar dessa sua iniciativa política, o governo tem a ganhar, no mínimo, uma chance de recomeço e, a depender dos resultados econômicos de médio prazo, de recuperação da sua credibilidade e consequente produção de um discurso político novo para 2018, já que aquele inaugurado em 2002 chegou à exaustão. Chance para o governo, risco para a oposição. Segue o jogo.
Já o PSDB, no vácuo da inação do governo, ao lado de aprofundar sua articulação com o PSB e as forças sem partido que fizeram a campanha de Marina Silva, pode encontrar em Temer um emissário junto ao próprio governo para negociar condições de aprovação das medidas de ajuste na economia, ademais um desdobramento lógico do próprio programa eleitoral tucano de 2014. E também um emissário, junto a Cunha e Renan, para criar condições ao surgimento, no âmbito do Congresso, de uma proposta alternativa de ajuste que pode ser viabilizada por essas forças, no caso de fracasso de um entendimento bancado pelo Governo. Enfim, por “bem” ou por “mal”, ter protagonismo numa solução para a crise será um modo de a oposição mudar o disco: em vez de apenas replicar na cena política a agenda do Judiciário e do Ministério Público, construir uma agenda mais ampla, resgatando o discurso da campanha de Aécio Neves, que se pôs como candidato não só do PSDB, mas de um conjunto de forças que querem mudanças na orientação de governo, dentro dos marcos de uma institucionalidade democrática. A oposição tem a ganhar, no mínimo, o fortalecimento de uma frente eleitoral para 2018 e, no limite, uma conexão, hoje precária, ou inexistente, com as forças sociais que se movem nas ruas. Chance para a oposição, risco para o governo. E segue o jogo.
Em ambos os lados já há quem se disponha a correr os respectivos riscos e se mova para o diálogo, evitando assim o truncamento do jogo. A oposição tem, a princípio, mais facilidade e tempo para ir nessa direção, se quiser. O Governo está mais enredado com vetos e outros problemas na sua cozinha e também na defensiva, pelo receio de que o impeachment entre na agenda política, por agravamento da crise econômica, por desdobramentos da Lava-Jato ou pelos dois fatores juntos. Além disso, o tempo é adversário de todos os que querem entendimento, mas especialmente do Governo. Sem soluções politicamente encaminhadas, a Presidente terá dificuldades de enfrentar uma nova rodada de manifestações de rua, já agendada para 12 de abril. Depois dessa rodada as balizas do entendimento podem mudar, especialmente se as manifestações incorporarem mais fortemente, ao lado da corrupção, do “Fora Dilma” e do “Fora PT”, alguns temas derivados da situação econômica, capazes de criar pontes entre a classe média e os trabalhadores em geral.
Em ambos os lados há também quem jogue contra o diálogo e nesse caso não estão apenas Cunha e Renan, talvez os mais ousados atiradores. Várias lideranças importantes do PSDB — malgrado a pregação em contrário de FHC — cedem à tentação de um imediatismo curioso, que vê na corrupção petista o mote que lhe traria dividendos eleitorais mesmo sem eleições no horizonte imediato. E no PT, discursos de resistência ao ajuste fiscal e de “refundação” da democracia calçam a alternância de encenações meramente retóricas com operações políticas desastradas, no intuito de assegurar votos no futuro e postos no governo no varejo político de agora, mesmo que ao custo da inviabilização do governo no atacado.
Entre os dois campos Michel Temer se move mais do que todos, mas sem propor nada que pareça um jogo pessoal ou mesmo partidário. Ou melhor, todos sabem que ele joga, mas não se pode dispensar o sotaque institucional da sua fala nesse momento em que o centro político se esvaziou. Realista, ele tende a contribuir para um pacto incluindo governo e oposição, fortalecendo-se como mediador (não é razoável, aliás, supor que entrará em pacto com a oposição sem combinar isso com Dilma e/ou Lula). A não ser que a conciliação fracasse por recusa de um dos polos do contencioso em aceitar pactos a partir do Governo ou do Congresso.
Na ausência de conciliação a instabilidade aumenta exponencialmente, até porque o desdobramento da crise e da Operação Lava-Jato poderá terminar afetando a todos, mesmo que em graus diferentes.
Se a recusa ao pacto partir do PT e do Governo, não está escrito nas estrelas que no fim da linha de um pacto alternativo entre PMDB e a oposição estará o impeachment de Dilma e ascensão de Temer, embora isso possa ocorrer, se a crise econômica se agravar e um fato jurídico surgir. Mas também pode se prolongar o atual protagonismo do Congresso em convívio com um Executivo fraco. Até quando, não se pode prever.
Por outro lado, se a oposição ficar fora de um pacto bem-sucedido entre PT e PMDB, não se pode afirmar que esse pacto vá além do ajuste fiscal e sustente o governo por quatro anos. A volubilidade da relação pode alternar períodos de “sangramento” com operações de estancamento provisório, durante as quais o varejo político tende a correr ainda mais solto. O impeachment estará fora do script, mas nunca fora de cogitação.
De todos os cenários, porém, o que parece pior é o da ausência de pactos entre as facções da elite política e sua consequente inação, à espera da conclusão da Lava-Jato, ao som de slogans e panelas. Seria o sangramento contínuo que o senador Aloysio Nunes Ferreira evocou como praga ao governo e ao PT. Além de poder jorrar sangue, nesse cenário basta surgir uma mínima base jurídica para que paire uma névoa sobre o mandato presidencial e/ou o calendário eleitoral. E mesmo na hipótese de ambos serem respeitados, não se pode prever se algum partido chegará a 2018 em condição de se contrapor a uma solução outsider justiceira, tecnocrática ou midiática. Num cenário desses, e se a ele sobreviver o sotaque institucional de Michel Temer, o impeachment ou a renúncia da Presidente podem surgir como alternativas preferíveis à inação. Temer não terá lutado por isso, mas, no jogo jogado, cavalo que passa selado é para ser montado.
(*) Paulo Fábio Dantas Neto é cientista político e professor da UFBA.
Fonte: Gramsci e o Brasil
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