Será que é por falta dos gansos do Capitólio romano que, com o alarido do seu grasnar, advertiram os soldados que faziam sua guarda da presença ameaçadora do inimigo prestes a invadir a cidade, e assim puderam se defender? Que sinais ainda aguardamos para nos precaver dos riscos que rondam a nossa democracia tão duramente conquistada? A crônica política, desde que a sucessão presidencial, a partir da morte trágica do candidato Eduardo Campos, deixou de ser uma passarela por onde a candidata à reeleição cumpriria seu trajeto triunfal, parece ter-se convertido em mais um episódio do extraordinário filme argentino Relatos Selvagens, em que seus personagens, mesmo à custa da sua ruína pessoal, se entregam ao domínio da cólera e da agressividade irracional contra quem lhes contrarie.
Essa síndrome se instalou com o terror experimentado pelas hostes da candidatura governista quando o cenário de uma derrota eleitoral surgiu no radar, hipótese antes não cogitada a sério por gregos e troianos e que ganhou plausibilidade com a fulminante ascensão de Marina Silva nas primeiras pesquisas. A estratégia adotada pelas forças governistas foi, como sabido, a da desconstrução metódica da campanha da oponente, o que se cumpriu, é verdade, ainda nos marcos de uma argumentação racional. Mas, com o crescimento da candidatura de Aécio Neves, vinda no vácuo de Marina, foi levada ao paroxismo. A disputa eleitoral foi, então, nomeada como uma manifestação de luta de classes, que, por soar ridículo no cenário que aí está, foi logo renomeada como entre pobres e ricos a fim de explorar o tema funesto do ressentimento social.
Sob esse registro malévolo, a campanha da candidata Dilma destampou a arca onde jaziam velhas assombrações, como a do populismo, que, finda a sucessão, resistem a retornar a seu lugar de origem. Não se faz pacto com o diabo impunemente, ele sempre cobra a conta. Se o passado deveria ser trazido à tona em estado bruto, sem crítica e elaboração reflexiva, ele nos foi devolvido com o que nele havia de pior: manifestantes bradando nas ruas pelo retorno do regime militar e outros, com um roqueiro de caricatura à frente, pelo impeachment; ecoam no Parlamento relatos selvagens dos discursos do deputado Jair Bolsonaro; e até ministros, como Gilberto Carvalho, tecem considerações públicas sobre adversários políticos com a linguagem de cafajestes de turmas de esquina.
O escândalo da Petrobrás, por sua vez, traz de volta ao noticiário a expressão mar de lama, de nefasta memória, para tratar das incestuosas relações mantidas entre as esferas do público, incluindo partidos políticos em posições de governo, com as do privado, como as que ocorreram na administração dessa estatal. E, agora, quando não se conta mais no governo com o ex-ministro Nelson Jobim, o ex-deputado Aldo Rebelo e o ex-deputado José Genoino, que acumularam expertise no trato com a questão militar, nada inverossímil a possibilidade de que eventuais intervenções desastradas, na condução dos rumos a serem dados ao relatório da Comissão da Verdade, venham a desatar episódios do tipo dos narrados no filme argentino.
Mas nem o diabo nos trará de volta aos idos do pré-64 que nos levaram, irrefletidamente, ao golpe militar. Em primeiro lugar, porque foi a própria presidente eleita quem desarmou o petardo que esteve em suas mãos durante a campanha ao propor um diálogo com as forças políticas, sobretudo quando indicou suas opções para os ministérios responsáveis pela condução dos destinos econômicos em sua nova administração. A breve súmula que os indicados por ela apresentaram publicamente à Nação, longe de expressar uma regressão populista alardeada nos tempos da campanha, cortou secamente com ela. Por fas ou nefas, o PT foi ao encontro do programa econômico da oposição. Não é por aí que os pescadores de águas turvas terão como prosperar.
Mas, em meio a tantos fios desencapados, de ciência certa para sairmos dessa confusão em que estamos envolvidos, contamos com o mapa da Carta de 1988, filha das lutas pela democracia travadas contra o regime autoritário dos Atos Institucionais, que tem passado com bravura por graves crises políticas, como no impeachment do presidente Collor e no episódio conhecido como mensalão. A ela devemos um Poder Judiciário autônomo dotado da capacidade de impor limites, em nome dos direitos da cidadania, ao poder político, e, muito particularmente, na institucionalização de um Ministério Público independente do Estado com a missão de defender as instituições da democracia, uma criação original do Direito brasileiro.
Pois é para esse lugar, refratário às manifestações selvagens, que agora convergem tanto a controvérsia suscitada pela Comissão da Verdade sobre a Lei da Anistia quanto a dos resultados das investigações da chamada Operação Lava Jato, conduzida pela Polícia Federal, pela Procuradoria-Geral da República e pela Justiça Federal do Paraná. Da primeira, esperam-se a pacificação e um sinal de advertência para que todos não reincidam nos erros do passado, que atrasaram por miseráveis 20 anos nosso encontro com o moderno, que ainda tarda, como se constata com este vozerio populista que nos ronda.
Da segunda, cujos relatos parciais e provisórios já se fazem públicos, e que, mais uma vez, revelam - agora sob a jurisdição de um juiz de primeira instância, o que é de comemorar - as perversas relações que cultivamos entre o poder e o dinheiro, espera-se, além da punição dos culpados, a abertura de um debate público sobre a necessidade de uma reforma política, a partir do qual os partidos políticos, sob regime de urgência, encontrem no Legislativo uma solução que ponha fim nesta raiz funda dos nossos males.
Uma última frase: quem ler Jurisdição Constitucional como Democracia, obra de 2004 do juiz Sergio Fernando Moro, saberá reconhecer que ele é a pessoa certa no lugar certo.
Fonte:O Estado de S. Paulo
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