segunda-feira, 2 de junho de 2014

O presidencialismo de coalizão (Renato Janine Ribeiro)




Tornou-se praxe, no Brasil, acusar o presidencialismo de coalizão de todos os males da vida política e até social. Ele é responsabilizado pelas negociações que dão sobrevida a políticos fisiológicos, em troca de seu apoio no Congresso. O último a criticar esse modelo político foi Eduardo Campos, no "Roda Viva" da semana passada. Só que mudá-lo pode trazer novos problemas, em vez de vantagens.

O que é presidencialismo de coalizão? É a união de um presidente eleito com a maioria absoluta dos votos válidos - no primeiro ou segundo turno, e que por isso mesmo é fortemente representativo - e de um Congresso escolhido junto com o primeiro turno presidencial, no qual nenhum partido tem a maioria - no Brasil nem mais de 20% - dos assentos na Câmara. Negociar é inevitável. O partido ou coligação presidencial nem sempre obtém a maioria parlamentar. Assim, se um candidato com pretensões a se eleger faz, em sua campanha, alianças já duvidosas em busca de tempo no horário eleitoral, uma vez eleito fará alianças ainda mais complacentes, para ter a base legal e orçamentária de seu governo.

Mas como mudar essa situação? O único meio seria assegurar que o partido ou coligação do presidente eleito atinja maioria absoluta nas duas Casas do Congresso sozinho, sem precisar de negociações posteriores a sua eleição. Isso é viável? Se sim, a que preço?

Primeira dificuldade: o Senado se renova parcialmente - um terço este ano, dois terços daqui a quatro. Mesmo que o presidente se eleja com uma avalanche de sufrágios, não basta para mudar a maioria no Senado. E essa Casa existe, justamente, para isso: para evitar que maiorias, digamos, "circunstanciais" façam barba, cabelo e bigode. É uma Casa conservadora, que deveria retardar a aprovação de medidas muito radicais - o que, aliás, nem sempre faz, tanto que, em 1997, votou a reeleição sem dificuldades. (Lembro esse episódio porque foi uma de nossas maiores mudanças institucionais da era republicana, rompendo uma tradição que parecia cláusula pétrea no presidencialismo latino-americano - por sinal, o único presidencialismo consistente fora dos Estados Unidos).

Segunda e mais imediata: para ter maioria em qualquer das Casas, será preciso reduzir brutalmente nosso sistema partidário. O pluripartidarismo, outra tradição brasileira importante, teria que ceder a vez ao bipartidarismo. A ditadura militar tentou isso, de 1965 em diante, até com recursos baixos como as cassações e as sublegendas, mas sem êxito. Finalmente, em 1982, cedeu à realidade. Se a vontade brasileira de não se encarcerar num modelo de apenas duas opções resistiu à censura, à tortura, à ditadura, será ela vencida por uma lei eleitoral? Essa lei eleitoral passará no Congresso, expressará a vontade popular? Duvido.

É certo que a arte da governabilidade passa, mais vezes sim do que não, pelo recurso de converter uma minoria de votos na sociedade em maioria absoluta no Parlamento - com sorte, converter uma maioria relativa (mas não absoluta) em metade mais um. Na França, isso se obtém, desde a redução do mandato presidencial aos mesmos cinco anos do parlamentar, por um truque curioso: o presidente da República se elege, e em seguida dissolve a Câmara que, eleita um mês depois dele, lhe dá uma maioria quase esmagadora. Isso liquida a oposição. Queremos isso? É quase o mesmo que governar sem Parlamento.

Na Itália, é pior. Desde 2005, uma lei conhecida como Porcellum (literalmente, "porcaria") dá 54% das cadeiras na Câmara ao partido ou coligação mais votado. O codinome dado pelo cientista político Giovanni Sartori à lei, e que pegou junto ao povo, já diz tudo. A invenção é da direita. Mas em 2013, com 32% dos votos, a centro-esquerda levou 54% da Câmara, enquanto a direita de Berlusconi, com um por cento a menos, obteve 20% das cadeiras.

Mesmo a eventual adoção do voto distrital entre nós - outro sistema do qual não temos experiência no Brasil em regime democrático, tendo vigido apenas no Império e na República Velha - não criará uma maioria absoluta, se continuarmos tendo mais que dois polos políticos. Ou seja, para acabar com o presidencialismo de coalizão, precisaríamos reduzir à margem de erro tudo o que for terceira via, terceiro partido, onde só ficarão os que não receiam ser minoria, os que abrem mão do projeto de governar o país porque preferem usar a tribuna para pregar uma causa - por sinal, muitas vezes digna: verde ou socialista.

Veja-se o problema. Os dois partidos que há 20 anos disputam a hegemonia no país, e que talvez continuem essa disputa, nasceram em ruptura com o quadro político vigente. O PT era "diferente de tudo o que estava aí". Conseguiria crescer num sistema bipartidário? O PSDB era uma dissidência do PMDB. Teria lugar num sistema tal? Improvável. Renovações seriam difíceis. Por isso, o Rede ou o PSB: sem chance.

Penso que a soma de um Poder Executivo disputado em termos mais ou menos bipartidários, mas flexíveis (no qual podem despontar Marina ou Eduardo), e de um Legislativo pluripartidário expressa melhor a complexidade de nossa vida social e política.

Agora, se o problema é a corrupção, podemos enfrentá-la com outras armas, sem destruir este delicado arcabouço político: abolir o financiamento de campanhas por empresas (que, ao contrário de pessoas físicas, não são eleitores nem podem ser presas por crime eleitoral), aumentar a fiscalização, agilizar os julgamentos na Justiça Eleitoral, reduzir os candidatos que cada partido pode lançar ao Legislativo, entre outras medidas. Melhor identificar e resolver os problemas que existem, do que criar novos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico

Nenhum comentário:

Postar um comentário