Desde junho de 2013 as ruas não têm dado tréguas em suas manifestações, primeiramente sob as bandeiras dos direitos, como os de acesso à saúde, à educação e à mobilidade urbana, e, nesta segunda onda dos dias presentes, com o claro registro da dimensão dos interesses. Em poucos meses, mudaram os temas e os personagens. As camadas médias, antes com massiva participação, cederam lugar a categorias de trabalhadores demandantes de melhorias salariais, por vezes à margem da orientação dos seus sindicatos, e a movimentos sociais de extração social difusa, como os do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), boa parte deles sob a influência de partidos da esquerda radicalizada.
Os diagnósticos que nos vêm da mídia são uniformes na interpretação economicista do mal-estar reinante na população, carregando nas tintas o tema da inflação, segundo eles, palavra-chave da sucessão presidencial que se avizinha. Contraditoriamente, tal diagnóstico convive sem conflito aparente com o reconhecimento por parte de analistas de diversas orientações de que, nos últimos anos, indicadores confiáveis atestariam o alcance de setores subalternos a melhores padrões de consumo e de acesso ao mercado de trabalho. Muitos deles até sustentando que tais setores já fariam parte das classes médias. Conquanto essas duas interpretações contenham seu grão de verdade, elas apontam, como é intuitivo, para direções opostas, embora guardem em comum o mesmo viés economicista e a mesma distância quanto à política.
O fato novo que temos diante de nós vem, precisamente, dessa região oculta da Lua e se manifesta na ruptura da passividade em que se mantinha o "grande número", para flertar com a linguagem de um grande autor em suas alusões ao homem comum da sociedade de massas. As duas florações da social-democracia - a do PSDB e a do PT -, no governo por duas décadas, cada qual no seu estilo, embora a do PT venha sendo a mais desenvolta na intervenção sobre a questão social, não só têm estimulado, mesmo que indiretamente, a procura por parte dos setores subalternos da porta de acesso aos direitos da cidadania, como atuado no sentido de consolidar as liberdades civis e públicas previstas na Carta Magna de 1988. Os limites em que o governo da presidente Dilma Rousseff se manteve no curso da Ação Penal 470, o processo dito do "mensalão", em que estavam envolvidos importantes dirigentes do PT, é um exemplo disso.
A passividade do "grande número" ao longo desse período - evita-se o uso do termo multidão para manter distância das ressonâncias metafísicas com que ele, ultimamente, tem sido empregado - certamente não foi indiferente às políticas bem-sucedidas dos governos social-democratas - declarados como tal ou não - que têm estado à testa da administração pública, entre os quais a do Plano Real e a do Bolsa Família, mencionado este último apenas pela sua efetividade.
Contudo, malgrado as diferenças entre PSDB e PT, inscritas no DNA de cada um deles, ambos optaram por estilos de governo tecnocráticos. No caso do PT, bem camuflado por instituições como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, logo esvaziado, e pelas reuniões informais entre o ex-presidente Lula e as lideranças sindicais. E, sobretudo, pela incorporação de movimentos sociais ao aparelho de Estado, marcas fortes dos governos de Lula. Para os setores organizados e próximos ao partido, tais práticas podiam ser vivenciadas como um sucedâneo de democracia participativa, mesmo que suas deliberações fossem, em última instância, dependentes da discrição governamental.
Quanto aos intelectuais, em que pese a forte atração que o PT exerceu sobre eles no momento de sua fundação, incluídas grandes personalidades do mundo da ciência e da cultura, eles não encontraram em sua estrutura partidária um lugar próprio para exercer influência, rebaixados à situação de massa anônima de simpatizantes. Nessa posição marginal, eles se confortaram na crença dos poderes carismáticos da sua liderança, bafejada por sua origem operária, e hoje padecem de desencanto com a revelação dos muitos malfeitos com origem na máquina governamental.
O PSDB, por sua vez, partido formado por intelectuais, não somente os deixou à deriva, como igualmente se manteve ao largo dos movimentos sociais e do sindicalismo, confiante nos louros conquistados com os êxitos do Plano Real. Assim, se o PT se recusava a vestir a carapuça da social-democracia, que lhe cabia tão bem, o PSDB assumiu-a apenas no plano do discurso, com seu núcleo duro constituído por elites de formação e trajetória tecnocráticas. Nem um nem o outro enfrentaram o desafio da "ida ao povo". Na versão petista, o sindicalismo tem-lhe feito as vezes e, na do PSDB, a massa de consumidores. Nas favelas e nos bairros populares, em termos de organização partidária - não de voto, frise-se -, em meio a um oceano de evangélicos, não se nota a presença deles.
Nessas condições, a ativação do "grande número", a que se assiste desde junho do ano passado e, ao que parece, não vai recuar nem mesmo diante da Copa do Mundo, tem encontrado à sua frente um terreno político desertificado. Nada a surpreender quanto à sua descrença na política e à selvageria de muitas de suas manifestações, fato que o governo do PT reconhece agora, de modo tardio, atabalhoado e, como sempre, vertical, com a criação por decreto dos conselhos populares de participação na administração pública.
Seja lá o que o destino reserva a essa iniciativa discricionária, que não nos chega em momento propício, já está na hora de fazer ouvidos moucos aos ideólogos do economicismo, confessos ou encapuzados, que confundem o consumidor com o cidadão e a política com o cálculo eleitoral.
* Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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