sábado, 21 de junho de 2014

De junho a junho (Angela Alonso)




Junho do ano passado surpreendeu. Este junho não. Em 2013, os protestos foram raio em céu azul. Em 2014, chovem no molhado, pois há um ano as manifestações se tornaram uma constante. Isto não quer dizer que sejam as mesmas. Muita coisa mudou de um junho a outro.

Mudaram os manifestantes. Em junho de 2013, foram para rua ativistas de novos e velhos movimentos sociais, mas também pessoas que nunca tinham participado de manifestações, estreantes na política. Já neste ano, prevalecem ativistas profissionais, isto é, os que se dedicam à política como atividade rotineira, engajados em movimentos consolidados e já organizados há algum tempo, como o MSTU. Os sindicatos, coadjuvantes em junho passado, recuperaram protagonismo, como se viu na greve do metrô em São Paulo. E dos "novos" ativistas de junho passado, os que persistem não são os cibernéticos - o "saímos do Facebook" - mas os com base organizacional clara e reuniões presenciais consecutivas, caso do MPL e dos comitês contra a Copa. Aliás, a prometida internacionalização do protesto, que se supunha a Copa traria, ainda não se confirmou.

Voltaram à cena os partidos. Depois da recusa virulenta a eles em junho passado, suas bandeiras tornam a tremular nas manifestações. E a colori-las de vermelho. O traço socialista, se não ausente, tímido em junho de 2013, agora povoa a maioria dos eventos, nos quais circula miríade de movimentos, sindicatos e pequenos partidos, todos à esquerda. Em junho passado, havia gente do outro lado. Esse protesto à direita do governo arrefeceu como manifestação organizada, embora siga difuso, em expressões eventuais de pequenos grupos e em manifestações públicas coletivas sem orquestração prévia, como no xingamento à presidente da República na estreia do Brasil na Copa.

A concentração do protesto de um lado do espectro político trouxe outra mudança, de dimensão. Embora sigam numerosas, as manifestações encolheram. Escrevo antes do 19 de junho, para quando se promete protesto grande, mas a maioria dos ocorridos até aqui está longe dos eventos massivos do ano passado, que rodavam na casa do milhão. À exceção dos protestos do MTST, que tem adesão crescente, parece ter havido um retorno à escala mais modesta pré-junho de 2013, quando os eventos maiores tinham 4 ou 5 mil de participantes. Não é pouco, mas é bem menos.

A volta de sindicatos e partidos à linha de frente impactou também o repertório expressivo das manifestações. Em junho de 2013 sobressaíram inovações nas formas de protestar, obra sobretudo de pequenos grupos autonomistas, como o MPL, inspirados nos movimentos por justiça global pós-Seattle, de onde trouxeram a queima de objetos, os jograis e o horizontalismo organizacional expresso na negação da figura do líder. No junho em que estamos, o novo repertório autonomista, prenhe de signos anarquistas, convive em igualdade com o velho repertório socialista - os megafones, as bandeiras, a liderança que vocaliza o movimento e se torna sua face pública, vide Boulos, do MSTU.

Isto reaparece nas formas de ação. "Pegou" a tática black bloc, o ataque a objetos representativos do Estado ou do capital, que, de elemento surpresa, virou figurinha carimbada. Mas, de outro lado, enquanto em 2013 prevaleceram as manifestações públicas presenciais na rua, neste voltou a estratégia mater do repertório socialista, a greve. A opção tornou as pautas mais focais, mas segmentou o protesto, ao mobilizar categorias específicas - motoristas de ônibus e metrô, professores, estudantes - quando em junho passado as manifestações eram transsetoriais.

Mudaram os protestos. Mudou a resposta das autoridades a eles?

A do governo federal, sim. Pré-junho de 2013, o governo Dilma incorporava temas de movimentos sociais, como o Minha Casa, Minha Vida, mas não necessariamente seus atores. O desenho das políticas ficava sob controle de técnicos, com baixa participação dos movimentos que as reivindicavam. Isto se alterou, com tentativas de ampliar o diálogo com a sociedade. Primeiro em direção atabalhoada, com a proposta natimorta de plebiscito. Em seguida, o governo passou a negociar com movimentos - seara na qual, aliás, nasceu o partido da presidente. E agora acena com projeto de fortalecimento da participação em conselhos relativos à implementação de políticas públicas. Esta resposta pode desinflar protestos, ao oferecer aos movimentos um fórum de expressão e negociação.

Outra atitude do poder público ante os protestos mudou pouco e pode reinflá-los. Depois de críticas generalizadas à ação da polícia no ano passado, ensaiaram-se modificações, como a contenção sem uso de armas e a identificação de ativistas usuais. Talvez o plano fosse uso cirúrgico da violência contra ativistas que utilizam a tática black bloc. Se esta foi a intenção, não é este o resultado. Como em junho passado, a violência transbordou, atingiu manifestantes, transeuntes, jornalistas.

No balanço de um junho a outro o que fica? Mudou a atitude do Executivo federal, que rumou para o diálogo com os movimentos sociais. Já a conduta da polícia permanece inalterada, parecida ainda àquela que levou cidadãos sem vínculos com movimentos ou partidos a engrossarem o protesto em 2013. Quanto ao protesto, estão se esmaecendo as inovações de símbolos, táticas e formas expressivas de junho passado. A criatividade deu lugar a uma rotinização das manifestações, retornaram os atores tradicionais e o velho repertório socialista. A ideia de refundação da política, tão alardeada em junho passado, está se esfumando e o próprio protesto vai perdendo sua aura.

Angela Alonso é professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, diretora científica do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
fonte: Valor Econômico (20/06/14)

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