sábado, 28 de junho de 2014

Sugadores para todos (Cláudio Gonçalves Couto)




Nos idos de março, o presidente do PMDB gaúcho, Edson Brum, proferiu a seguinte pérola da sinceridade política, crivada de ironia: "A única certeza que tenho é que o PMDB estará com o próximo presidente, ganhe Dilma, Aécio ou Campos. Por que me preocupar com isso agora?". Foi complementado nesta semana pelo presidenciável tucano, Aécio Neves, numa referência à adesão de PSD e PR à postulação da presidenta Dilma Rousseff, ao mesmo tempo que o PTB se mandava para as bandas de sua candidatura: "Muito mais gente já desembarcou e o governo ainda não percebeu. Vão sugar um pouco mais. E eu digo para eles: façam isso mesmo, suguem mais um pouquinho e depois venham para o nosso lado".

Ambas as declarações explicitam o modus operandi de nosso sistema partidário, tanto no âmbito eleitoral quanto na dimensão governativa. O PMDB é o exemplar maior de um tipo de agremiação - o partido de adesão - que aderirá a qualquer governo ou candidatura, sem maiores preocupações programáticas, desde que bem recompensado. São lábeis os limites para essa adesão pragmática tão flexível: de forma pontual, quando estiverem em jogo interesses específicos de setores sociais vinculados a determinados membros do partido (como seus financiadores de campanha e bases eleitorais), ou quando as mutantes circunstâncias da conjuntura política tornarem oportuno um rompimento justificado por questões de fundo puramente retóricas.

Afora tais circunstâncias, enquanto bem recompensados com cargos, verbas e apoios eleitorais localizados, os partidos de adesão se manterão jungidos a quem lhes favoreça. Porém, da mesma forma, saltarão do barco tão logo o custo do apoio se eleve ou haja recompensa maior por perto. Como não se prendem a nenhuma plataforma de envergadura, não lhes custa nada migrar de um governo para outro, mesmo que sejam liderados por agremiações - essas sim - dotadas de alguma consistência programática e de objetivos mais claros para as políticas públicas. Tais agremiações, por sua vez, não têm como simplesmente prescindir do apoio dos partidos de adesão, na ilusão de assim implementar suas agendas sem a necessidade de concessões e menores riscos de corrupção.

Afinal, os partidos de adesão compõem hoje mais de 50% das duas Casas do Congresso, tendo também bancadas consideráveis nas Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais. Não compõem um bloco monolítico, mas operam de forma similar. Por esta razão, exceção feita ao tamanho de cada um (e, logo, ao seu poder) não faz muita diferença obter o respaldo do PMDB, do PP, do PR, do PTB, do PSD ou de qualquer outra agremiação equivalente. Eles exigirão as mesmas coisas, oferecerão a mesma lealdade e vetarão - de forma eventual - os mesmos tipos de proposta. É por isto que o presidente do PMDB gaúcho pode dizer o que disse de forma tão singela - assim como o poderiam os presidentes das demais agremiações. Todos esses partidos (à exceção do PSD, que ainda não existia) ofereceram apoio, ministros e funcionários aos governos Sarney, Collor, Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma. Eles apoiam PT, PSDB e PSB indiscriminadamente nos governos estaduais e municipais, sendo o elemento constante às variações de partidos na chefia de governo. Apenas Collor optou deliberadamente por deixar o PMDB de fora; deu no que deu - e ele se arrependeu da estratégia, tardiamente.

As exceções se devem ou a problemas circunstanciais, verificáveis numa ou noutra localidade, ou a rivalidades entre lideranças específicas. Rompimentos verificados nesta eleição darão lugar a reaproximações logo mais à frente, tão logo se fechem as urnas e se iniciem as negociações para a composição das coalizões de governo nos âmbitos federal e estadual. É por isto que faz sentido a despreocupação de Aécio com os apoios de Dilma, bem como seu incentivo a que os partidos suguem. O tucano mineiro é sabedor de que hoje sugam de Dilma e, amanhã, caso se sagre vitorioso, sugarão dele. Decerto, não tem a menor ilusão de que, ao irem para o seu lado, abandonarão a prática sugadora. Assim como sabe que, findo seu eventual governo, sugarão de seu sucessor - seja ele aliado ou adversário.

Eis aí o maior obstáculo para que se implemente no país uma "nova política" de que tanto falam o PSB e sua hóspede, a Rede. País afora, o próprio PSB não opera de forma muito distinta dos partidos de adesão. Em São Paulo, tem sido uma rêmora fiel do PSDB, ao mesmo tempo que no âmbito nacional - onde apresentava maior consistência - mantinha-se alinhado ao PT, inclusive na oposição aos tucanos durante o governo FHC. Porém, mesmo onde o PSB controla os governos, como em Pernambuco, o recurso aos partidos de adesão estava presente. Se nova política se fazia, era por intermédio da mesma velha política que seus adversários (ou aliados) punham em prática noutras plagas.

Afinal, trata-se de um aspecto estrutural do sistema político brasileiro. O presidencialismo de coalizão visa à formação de maiorias e não se constroem maiorias sem o recurso aos partidos de adesão. E os incentivos para a aproximação também estão presentes no processo eleitoral - num jogo que não pode ser desvinculado da dinâmica governativa. Governos oferecem prebendas, presentes e futuras, para manter ou atrair aliados de campanha. Mas há também o valioso tempo de propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV. Quem não o aufere, sabe que o aliado o arrebanhará, num jogo de soma zero - o que um perde é exatamente o que o outro ganha.

Daí as alianças aparentemente esdrúxulas, mas completamente racionais, feitas neste período. Elas são mais visíveis na campanha, quando surgem as fotografias de aliados lado a lado (por vezes constrangidos). Dentre os atores relevantes, quem não saiu na foto é normalmente o perdedor da contenda que, como fazem os maus perdedores, sai do jogo criticando a conquista do adversário (só porque não foi sua) e é nisto acompanhado de seus torcedores, numa aliança de hipocrisia e autocomiseração. Normal que seja assim, afinal, no público sempre há quem se deixe iludir.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico

sexta-feira, 27 de junho de 2014

Desinteresse e reprovação (Murillo de Aragão)




Cinquenta e cinco por cento (55%) do eleitorado, de acordo com pesquisa do Ibope divulgada em 19 de junho de 2014, não está interessado ou está pouco interessado nas eleições de outubro próximo. É um número alto, já que apenas 16% dos entrevistados se disseram muito interessados.

A preocupação com o tema aumenta quando vemos que somente 25% dos jovens com 16 e 17 anos, segundo levantamento do Tribunal Superior Eleitoral, tiraram título de eleitor. O número de jovens que se cadastram como eleitores vem caindo a cada ano, pelo menos desde 2006.

Tal resultado provoca algumas reflexões. A primeira delas na direção de tentar entender por que a maioria da população não quer saber das eleições. Pontualmente, devemos considerar que o fim da Copa do Mundo e o início da propaganda eleitoral, em 19 de agosto, devem provocar maior interesse pelo processo.

Assim, mesmo com a ampla cobertura midiática de questões políticas importantes, a pesquisa evidencia que a maior parte da população não entende o processo como essencial. Como se a política fosse algo desconectado de suas vidas, como se a solução de seus problemas não passasse pelo processo político. E isso é gravíssimo.

O pior é ver o desinteresse dos jovens, que preferem não exercer seu direito de votar. Tal gesto mostra sua reprovação à política. Na reportagem do jornal O Globo que trata do assunto, publicada em 20 de junho de 2014, alguns justificam dizendo que não acreditam em candidatos que não venham do povo e, também, que não confiam em ninguém. Daí não quererem tirar o título de eleitor.

O desinteresse é "primo-irmão" da reprovação, que, atualmente, é uma tendência global. Políticos e política no mundo inteiro estão sendo mal avaliados. As razões podem ser estruturais (faltam informação, transparência, exemplos) e conjunturais (economia, inflação, emprego, escândalos, desconfiança etc). Independentemente dos motivos, as pesquisas em diversos países apontam: a política e os políticos estão sendo malvistos.

No levantamento do Ibope, chama a atenção o aumento da rejeição a todos os candidatos à Presidência. A taxa de rejeição à presidente Dilma Rousseff (PT) subiu de 38% (4 a 7 de junho) para 43% (13 a 15 de junho). Já a do
pré-candidato do PSDB, Aécio Neves, aumentou de 18% para 32%. E a do pré-candidato do PSB, Eduardo Campos, foi de 13% para 33%.

O que significa tudo isso? O primeiro ponto é que o aumento do desinteresse pelas eleições e da reprovação à política é uma ameaça à democracia. Assim, o prenúncio de um grave questionamento vem à tona. Qual o risco? Muitos. Basta examinar a história.

O processo democrático não é inexorável, apesar dos avanços da democracia no planeta. Quando vemos vândalos destruindo carros e agências bancárias sob o olhar bovino e complacente da sociedade e das autoridades, temos certeza de que as franquias democráticas estão sendo forçadas por indivíduos que defendem soluções não democráticas. O nazismo começou assim.

Sem cuidado, interesse e participação dentro do marco democrático não há garantia de que a evolução da política prosseguirá de forma clara. E, ainda, que regimes democráticos não venham a ser diretamente ameaçados por surtos autoritários. Mesmo que tais ameaças estejam disfarçadas e sejam parasitas do próprio regime democrático, como as que vemos hoje no Brasil.

Murillo de Aragão é cientista político.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Fé no poder (José de Souza Martins)



Recomeça entre nós o ciclo do aliciamento eleitoral das religiões tendo em vista as próximas eleições. Os religiosos que barganham politicamente a fé de membros de suas igrejas abusam da fé e fingem que se trata de trabalho missionário. No Getsêmani da política brasileira o galo não canta apenas três vezes, nem o mentiroso é um só. Satanás mobiliza cúmplices e banaliza a fé. Está na informalidade do calendário eleitoral paralelo.

Uma das grandes anomalias do processo político pós-ditatorial tem sido a transformação das religiões em avalistas de políticos e de partidos que não confiam no discernimento do povo e o temem. É o que subtrai do eleitor o direito de decidir conscientemente em quem votar e em que partido político confiar. A política brasileira tem sido cada vez mais política de usufrutuários de currais eleitorais de uma nova política de cabresto que mutila a concepção de cidadania, viola os princípios do regime republicano e coloca a sociedade inteira de joelhos. Igrejas e religiões têm sido cúmplices dessa usurpação. Os danos à democracia e ao regime republicano são imensos. Fala-se muito em corrupção, mas não se fala no envolvimento partidário das religiões como outra e perversa forma de corrupção, enquanto roubo da consciência política dos votantes. A fé deveria ser para iluminar e não para enganar.

Reflexos dessa deturpação já são visíveis na apelação de baixo nível em que partidos difamam os adversários para se acobertarem. Fazem-se de santos. É o retorno ao maniqueísmo deturpante que preside a política brasileira desde os pródromos das eleições presidenciais de 2002. Desde então somos dominados pelo autoritarismo de um pensamento político binário: uma cara para o diabo e outra para o povo. O País foi engolido pela farsa ideológica de que o que somos e o que expressa nosso querer político está nas polarizações, amor e ódio, pobres e ricos, negros e brancos, incultos e cultos. Isso é falso. Ninguém diz que o objetivo desse binarismo não é combater o ódio, mas disseminá-lo como motor do processo político.

Sem dúvida, este é um país que tem ricos muito ricos e pobres muito pobres. Mas tem também uma multidão distribuída por diferentes graus da classe média. Este ainda é o país da ascensão social. Basta que cada um compare o que é com o que seus avós foram. É um país de mestiços, mais do que um país de brancos e negros. Um país singular em que muito negro é branco e muito branco é negro. É também inútil teimar na tese reacionária de que há mérito em não ter estudado. É evidente que não há demérito em não ter tido acesso à escola: há injustiça. Ser culto, em qualquer lugar do mundo, é mérito e virtude, não defeito. Ironizar o diploma e a formação universitária é expressão de ignorância.

Essa mentalidade de botequim também se imiscui nas religiões para nelas infiltrar o binarismo diabólico. Para fazer supor que o incréu que na missa copia gestos dos vizinhos, ou no culto fecha os olhos, é pessoa de Deus. Pessoas de Deus não precisam fingir nem mentir. Igreja de comício é mero instrumento da mesma lógica da polarização: para os políticos que se locupletam do púlpito, fingir é mais importante do que ser. A difamação do adversário completa esse quadro. Estamos sendo empurrados para o falso confronto dos defeitos e não para o verdadeiro confronto dos méritos. Uma cultura intolerante e fascista se apossa de nossos direitos políticos e nos transforma no rebanho carneiril que decidirá não decidindo. Se isso não é ditadura, francamente, já não sei o que o é.

Uma das grandes conquistas do regime republicano brasileiro foi ter introduzido na Constituição de 1891 o princípio, que se repetiu nas Constituições subsequentes, da separação entre o Estado e as religiões. A medida foi altamente benéfica para as igrejas, que puderam devotar-se estritamente à prática religiosa, os devotos exercitando plenamente a liberdade de crença. Foi particularmente benéfica para a Igreja Católica Apostólica Romana. Até então, bispos e padres eram praticamente funcionários públicos, recebiam a côngrua, pagos pelo governo. De vários modos tinham que pedir a bênção às oligarquias, aos grandes senhores de terra e de escravos. Era o governo que nomeava os bispos. O Estado crucificava Cristo todos os dias em nome das conveniências dos poderosos. A República libertou a Igreja Católica dessa servidão e Deus mesmo ficou livre das manhas da dominação prepotente e interesseira.

Agora, com a transformação do púlpito de diferentes igrejas e religiões em palanque de comício eleitoral ou de encabrestamento do voto, a política coloca de novo o cabresto das disputas eleitorais e do poder no Cristo crucificado para que, em vez do sangue da redenção, verta votos para quem, por fazê-lo, certamente, não merece semelhante sacrifício. Mérito político só existe na decisão racional e soberana do eleitor na hora de votar, sem cabresto, livre da dominação daqueles que, fingindo religiosidade, só têm fé no poder.

*José de Souza Martins é sociólogo. Professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de 'A política do Brasil Lúmpen'
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás

terça-feira, 24 de junho de 2014

"Não se ganha eleição sem entrar no povão" (Fábio Wanderley Reis/entrevista)





Quem quiser ganhar a eleição presidencial deste ano terá que conciliar, na campanha, políticas macroeconômicas efetivas com a continuidade do atendimento aos interesses da população mais pobre, sentencia o professor Fábio Wanderley Reis, doutor em Ciência Política pela Universidade de Harvard e docente emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Em sua análise, a correlação estabelecida pelo governo Lula, a partir de 2006, entre programas sociais (como o Bolsa Família) e uma parcela considerável da população, será o maior desafio dos candidatos da oposição. "É algo muito forte, a ponto de as oposições não conseguirem encontrar um discurso alternativo". Apesar de apontar erros estratégicos do governo Dilma Rousseff, como a dificuldade da presidenta para exercer liderança, Reis — estudioso de temas como a transição democrática, o processo eleitoral e os partidos políticos — vê o cenário favorável à petista, sobretudo com a entrada de Lula na campanha: "Com o lastro da memória do apoio de Lula, as chances são claramente favoráveis a ela". Sobre o principal adversário de Dilma, Aécio Neves (PSDB), Reis acha que seu crescimento nas pesquisas "ainda não é suficiente para impor uma derrota a Dilma".

Entrevista

Como o sr. avalia o cenário para as eleições presidenciais?
Temos que ir, basicamente, para as pesquisas, que continuam a dar, apesar de pequenas variações entre os institutos, uma mensagem de vitória de Dilma Rousseff. Em alguns casos, como no Vox Populi, ela aparece ganhando no primeiro turno. Mas, como tem sido ressaltado, as coisas vão começar a se definir depois da Copa e com o programa eleitoral gratuito nas TVs, que normalmente tem importância decisiva. As perspectivas do governo federal e de Dilma como candidata são favoráveis também desse ponto de vista, já que ela terá um tempo maior de televisão e, até aqui, o que teve de avanço na oposição é algo bem relativo.

Como o sr. vê as perspectivas para o candidato do PSDB, senador Aécio Neves?
Estava claro que o crescimento de Aécio iria acontecer, na medida em que ele se tornou o candidato do PSDB e conseguiu resolver os problemas do partido em consagrar sua candidatura num cenário em que tínhamos José Serra como candidato virtual. E o PSDB é um partido com perspectiva de disputar com vigor a eleição presidencial. A tendência é de crescimento do Aécio, embora até aqui não haja indícios muito claros de que isso venha a ser suficiente para impor propriamente a derrota a Dilma.

E a candidatura de Eduardo Campos, do PSB?
A situação dele é mais negativa, pelo fato de que o lugar em que ele supostamente teria apoio natural e forte, o Nordeste, é fiel a Lula há muito tempo e tem sido fiel a Dilma, como vimos na última eleição. É uma briga contra Lula para conseguir se viabilizar como candidato. Do ponto de vista das pesquisas, tem ficado muito claro o que há de problemático nessa candidatura. Apesar da aproximação com a Marina, Eduardo Campos está onde sempre esteve. Não evoluiu.

Há quem diga que vice não elege ninguém. Isso é verdade?
Alguma ajuda a Marina terá dado, pelo menos no sentido de aumentar a visibilidade de Eduardo Campos como candidato. Mas acho que não há razão para apostar que ela veio a ser decisiva, pelo simples fato de ter ficado restrita a vice e de que ela mesma é uma candidata que tem seus problemas — o caráter evangélico e as condições efetivas de uma liderança numa perspectiva mais ampla, além da questão ambiental. A Marina tem, claramente, aspectos positivos, uma certa respeitabilidade. Mas, por outro lado, apesar dos 20 milhões de votos que ela recebeu nas últimas eleições, ela tem que dar provas disso. E, do jeito que ficaram as coisas na aproximação com Eduardo Campos, nem tudo ficou muito tranquilo, houve divergências importantes e, até aqui, não há nenhum impacto muito representativo no que se refere a aumentar o peso da candidatura de Eduardo Campos.

Apresidenta Dilma continua como favorita, mas há um movimento gradual de perda de pontos a cada nova pesquisa. Essa queda tende a continuar?
No momento em que a gente tenha o programa eleitoral na televisão, com o tempo muito maior que ela terá e com o lastro da memória do apoio de Lula, que se tornará mais claro, acho que as chances ainda são claramente favoráveis a ela — apesar de ela ser uma candidata difícil. Em princípio, ela é, antes de mais nada, um poste do Lula, uma criação dele. Há implicações relevantes do ponto de vista da liderança real que ela tem dificuldade de exercer, e esse fim de mandato tem deixado isso muito claro. Apesar disso, do ponto de vista do processo eleitoral, como candidata à reeleição, as chances são maiores para ela. E aí nós temos um conjunto de programas relacionados com a sociologia política e eleitoral do país, que são relevantes na discussão.

Programas como Bolsa Família, Minha Casa, Minha Casa, Pronatec e Prouni são cacifes eleitorais da Dilma?
São, sem dúvida, importantes. Isso toca o que eu chamo de sociologia eleitoral do país. É o fato de a questão social ter se tornado decisiva no processo da política eleitoral a partir de 2006, quando passamos a ter uma nítida correlação entre a disposição de votos dos eleitores e sua situação socioeconômica, com as posições geográficas e regionais. Dilma é fortemente apoiada no Nordeste, como o Lula era, em conexão com o próprio movimento lulista. Obviamente, houve, de modo bem claro, a emergência do PT, que conseguiu juntar uma mensagem de conteúdo ideológico, uma retórica radical, com a figura do Lula, de forte apelo popular, de origens sindicais, e ligando-se a movimentos sociais. O resultado foi a experiência inédita de ver um líder operário chegar à Presidência da República, o que seria impensável em circunstâncias mundiais um pouco antes.

Que condições proporcionaram essa mudança?
A mudança do cenário internacional é um aspecto importante dessa dinâmica. Nas condições e circunstâncias em que se criou o período lulista — com uma certa moderação e um aprendizado realístico na aproximação com os meios empresariais; moderação de perspectivas; e uma redefinição social-democratizante independente do discurso, da forma de atuação; e de programas como Bolsa Família e correlatos, que resultaram em avanços efetivos de determinadas frações do eleitorado, a questão da chamada nova classe média — tudo isso representou algo importante do ponto de vista da dinâmica eleitoral. Essa correlação que a gente passou a ter a partir de 2006 é a evidência mais nítida em termos de dados que continuam a se manifestar no apoio a Dilma, na medida em que o país cresce nos níveis de renda, educação, e se desloca de São Paulo para o Nordeste. É algo muito forte, aponto de as opo-sições não conseguirem encontrar um discurso alternativo.

A oposição não tem esse apelo?
Ainda que vejamos Aécio falar em medidas impopulares a serem adotadas, é impossível repudiar o Bolsa Família. De alguma forma, o discurso é o de incorporar. Todos os candidatos têm, de alguma forma, que entrar nisso. Nos Estados Unidos, há a expressão política do "eu também", para quando há uma política eleitoral muito forte e o que resta à oposição é incorporar isso e acrescentar algo que seja atraente. É dizer que "eu também" faço e farei isso. O que chegou a ser formulado por Fernando Henrique Cardoso, a tese de que o PSDB não tinha que se dirigir ao povão, tinha que falar com setores emergentes, já envolve o reconhecimento de que, bem ou mal, há setores emergentes em políticas que deram certo, ainda que com limitações e problemas. Não se ganha eleição, sobretudo majoritária, sem entrar no povão, porque é aí que está a maioria. O discurso e a política devem se dirigir a ele. Medidas como o Bolsa Família ou as que permitem o acesso ao crédito e aumento do salário mínimo são decisivas. O desafio administrativo que tem que ser enfrentado, pelo menos na campanha dos candidatos, é o de conseguir executar políticas que sejam economicamente efetivas e que evitem o "pibinho", que consigam criar uma dinâmica econômica mais forte, e que concilie isso a algo que dê continuidade ao atendimento direto e imediato dos interesses da população mais pobre. É muito problemático para a oposição conseguir ser efetiva no discurso que afina com a continuidade do compromisso social.

Mas temos uma insatisfação crescente no Sul e no Sudeste, que contrasta com a realidade do Nordeste que apoia Dilma...
Desde a eleição do Lula, essa po -larização vem se intensificando. Tenho visto o crescimento da oposição a Dilma em São Paulo, em níveis socioeconômicos mais altos. Essa é a própria expressão da correlação da qual falávamos. O que pode decorrer dessa insatisfação e dessa polarização do ponto de vista eleitoral? Os setores em que Dilma tem maior apoio são populares e majoritários. Por isso, há uma certa precariedade na aposta de que, na medida em que se intensifica a polarização, aumenta a chance de Dilma vir a ser derrotada. Na medida em que a briga se intensifica, setores mais baixos do eleitorado estarão propensos a trazer apoio, e não é só uma questão de ganhos materiais. Trata-se de um eleitorado via de regra desinformado, desatento politicamente, e isso envolve uma imagem tosca que contrapõe elite e povão, mesmo antes da emergência do PT como fenômeno novo que se inseriu de maneira eficaz nesse quadro. A vitória do MDB, em 1974, pode ser interpretada como uma identificação do partido com a melhoria nos níveis de renda. Em Belo Horizonte, a cada 10 votos, 9 eram para o MDB. O MDB conseguiu criar a imagem de partido do povo, partido popular.

Essa relação entre o social e as eleições teria começado com Getúlio Vargas?
Ele é parte dessa história. Muitos anos depois do desaparecimento do Getúlio, os dados ainda o mostravam como uma figura muito popular, pela consolidação das leis trabalhistas, pela imagem de "Pai dos pobres". E um ingrediente importante disso continua posto na política brasileira, embora analistas discutam até que ponto o lulismo-petismo representaria algo de natureza mais ideológica, no sentido nobre da expressão, versus essa identificação meramente pessoal. Essa é uma questão importante para se entender até que ponto, para a consolidação da estrutura partidária, a identificação lulista e sua mescla com a identificação petista — sob aspectos negativos do mensalão e a passagem pelo governo — pode se transformar numa identificação estável com partidos, de maneira a estabelecer marcas partidárias. No caso do Brasil, o PT é o grande vitorioso.

Mas ainda não surgiu o"dilmismo"...
Não. Dilma é criação do Lula, e é importante para as perspectivas eleitorais dela que o povão continue sentindo a presença do Lula.

As manifestações na Copa podem influenciar as eleições?
A leitura do significado das manifestações tem sido muito equivocada, com interpretações volun-taristas e pessoas vendo o que querem ver. Acho que houve certa mistificação disso, algo que me parece que é pura e simplesmente o resultado de novos meios de comunicação disponíveis, as redes sociais, o telefone celular etc., que têm produzido situações parecidas mundo afora. Inclusive, no momento em que aconteciam as manifestações daqui, ocorriam também as da Turquia. Em boa medida, elas são meramente uma imitação e são confusas do ponto de vista político. Não merecem a leitura de algo que significasse uma afirmação democrática. Há um claro caráter antipartidário, antipolítico e anti-institucional, sem falar da violência. Tivemos o Palácio do Itamaraty quebrado, houve uma disposição de confronto associada ao antipoliticismo. Dificilmente poderíamos falar de um componente liberal ou republicano nessas manifestações. Fica difícil imaginar que minorias dentro do movimento conseguirão se afirmar, também pelo fato de a tentativa rechaçada de se trazer o tema dos partidos para o movimento, por gente que entendia que era um tema relevante. E há um aspecto das reivindicações: já que o celular e o Facebook estão disponíveis, vamos imitar. Não vejo densidade em nada disso.

Mas não havia uma insatisfação com os serviços públicos?
Essa é a dimensão consistente da coisa, e foi o que deu partida a tudo. É o caso do Movimento do Passe Livre, que depois resistiu a se identificar com as outras manifestações que vieram na cauda. O que não quer dizer associar a ocorrência das manifestações à emergência das questões sociais que falamos antes. Quem está se mobilizando através das redes sociais é gente que se torna mais presente nos níveis socioeconômicos mais altos, e não tenho dúvidas de que esse fator da disponibilidade dos meios de comunicação foi decisivo na ocorrência da coisa, associada à confusão da banalidade que leva às manifestações. É muito claro que o que houve de mais quente nas manifestações mixou, quase desapareceu. Hoje, há gatos pingados, Black Blocs, gente que está quebrando vitrines contra o capitalismo e, ao lado disso, uma movimentação de categorias profissionais e suas reivindicações que criam embaraços no contexto da Copa. O fato é que a Copa está acontecendo sem dar atenção a isso. Como consequência das reivindicações nos protestos, a presidenta Dilma tentou implantar por decreto a Política Nacional de Participação Social, mas o Congresso e a oposição têm reagido, argumentando que o PT tem domínio sobre os movimentos sociais.
A palavra domínio é um pouco exagerada. O PT tem melhores condições que outros partidos para estar presente em conselhos sociais, essa é a história do partido. É presumível que o PT venha a ter capacidade maior de influência em movimentos análogos, mas não vejo nada muito além disso. Por outro lado, faz sentido que uma questão como essa não seja iniciativa do Executivo, que o Legislativo se manifeste a respeito. Era mais adequado que tivéssemos um projeto de lei, e não um decreto.

Mas o Congresso não deu sinais favoráveis às demandas das manifestações, nem à proposta da reforma política...
Isso é complicado, e não é de hoje. É precário supor que as pessoas beneficiárias do processo político viessem a transformar significativa e substancialmente esse processo, mudar as regras. É preciso mudar, mas temos que contar realisticamente com os embates envolvidos. Não será num estalar de dedos que se colocará uma reforma política consistente nesse país. Há algo indicativo do clima geral: a comissão criada no Congresso por Ronaldo Caiado (Comissão Especial da Reforma Política, em 2011) trouxe temas importantes e poderia estar tomando decisões sem que ninguém prestasse atenção, porque a grande imprensa divulgava as façanhas do Renan Calheiros diariamente. O clima é esse, e isso não ajuda. Os políticos votavam numa direção a tudo o que é contrário ao que acontecia de positivo no Congresso, mas os jornais contavam as falcatruas de Renan Calheiros. É o que vende jornal.

O sr. acha que o Congresso não nos representa, como muito se falou nas manifestações?
Isso é besteira. É, novamente, a manifestação do antipoliticismo. Os políticos que estão aí podem, evidentemente, ser objeto de uma denúncia, de que são corruptos, de que não nos representam. Mas não é possível prescindir deles. Não vai ser brigando e saindo no tapa no meio da rua que vamos resolver nossos problemas. Precisamos das instituições. Não adianta vir com a retórica que sonha com a democracia direta num país que tem 200 milhões de habitantes. Precisamos, sim, aprimorar a transição constitucionalista, em que a gente bem ou mal se insere, e contempla direitos civis nos quais a baderna na rua supostamente aparece como ponto negativo. Sair por aí jogando coquetel molotov nas pessoas, quebrando lojas, bens públicos, tudo isso é uma maneira tosca e inaceitável de definir a atuação política, não adianta começar por uma postura anti-institucional.

Em 2003, quando o presidente Lula assumiu, a CUT e o MST eram parceiros fortes. Hoje, o PT não controla mais o MST e a CUT perdeu força...
Quanto ao MST, as razões e irrelevância dele são bem claras. Não somos mais um país agrário há muito tempo. O tema da reforma agrária não é mais tão relevante. O MST, que já contou com a simpatia da opinião pública, perdeu esse apoio, na medida em que assumiu posições violentas, e tende a se tornar irrelevante. Ninguém imagina que o MST vai tomar de assalto o Estado. Quanto aos movimentos sindicais, esse deram para trás no mundo inteiro, não foi apenas no Brasil.

Porque?
Há bastante tempo que nos países social-democratas e nos Estados Unidos eles têm sido enfraquecidos por más razões. A leitura geral da dinâmica do capitalismo leva na direção do neoliberalismo, no sentido das crises econômicas, como a de 2008, um cenário antissindicato, anticorporativa, antiestatal. O que acontece é a política da economia da oferta versus a economia da demanda. Foi preciso criar condições para que os empresários pudessem jogar seu jogo livremente. E o fato é que não dá para pensar em fazer social-de-mocracia sem ter um Estado atuante e com movimentos sociais que deem organicidade.

O debate eleitoral corre o risco de ser moralizado por uma pauta com temas como aborto e drogas?
Uso disso, acredito que haverá. Seguramente, Aécio andou por aí fumando sua maconhazinha, experimentando ou usando com alguma assiduidade. Mas há razões respeitáveis para ser a favor do uso da maconha de forma mais ampla. Temos a figura do ex-presidente Fernando Henrique se movendo em torno da descriminalização das drogas, temos o caso do Uruguai. Ao que tudo indica, isso tende a se tornar um tema irrelevante, embora complicado de se administrar em termos de saúde pública e repressão. No nosso caso específico, teremos alguma tentativa de uso disso, mas acho que dificilmente teríamos algo como em 2010, quando se falou de maneira baixa sobre aborto.

E o mensalão?
Vai ficar para trás. Ficou até para o Joaquim Barbosa (presidente do Supremo Tribunal Federal) , que não quer saber mais disso. Existe a possibilidade de se ver o mensalão como algo positivo, na perspectiva de mostrar um braço mais comprido da atuação da Justiça brasileira, contra aquela tese de que ela só pune os três "pês" — preto, pobre e puta. Mas o que estamos vendo começa a ficar negativo até nessa perspectiva. O Joaquim Barbosa se desgastou no desdobramento das coisas e nos excessos que cometeu.

O desinteresse do cidadão no processo eleitoral, como as pesquisas mostram, tem relação com as manifestações?
Acho que as manifestações têm ajudado, sim, nessa direção. Há muita gente que se relaciona de maneira distante com a política, que não presta atenção. A medida que se começa a ter dias de manifestações supostamente antitudo na televisão, é natural que as pessoas sejam afetadas.

O número de eleitores que querem votar branco ou nulo é alto? Os indecisos podem beneficiar algum candidato?
Sobre os anos anteriores, sim, é alto. Mas é bom esperar a campanha eleitoral e o programa de TV. E não vejo qualquer indicação de que esse pessoal vá majoritariamente para o lado de Dilma, Aécio ou Campos.
(Eduardo Miranda e Paulo Henrique de Noronha –Brasil Econômico)

domingo, 22 de junho de 2014

Demografia e voto (Roberto Beling)

Deu no jornal:

Um ano após as manifestações de rua que sacudiram o país, apenas 25% dos brasileiros com 16 e 17 anos exerceram seu direito e tiraram o título de eleitor para votar em outubro. Desde 2006, esse índice registra quedas sucessivas. Naquele ano, o grupo de eleitores facultativos (com menos de 18 anos) representava 39% da população nessa faixa etária. Nas eleições de 2010, ele encolheu para 32%. Agora, segundo cruzamento de dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com informações do IBGE, o total de jovens adolescentes com título representa apenas um quarto da população nessa faixa etária.

Para demógrafos e cientistas políticos, a queda na quantidade desses registros facultativos indica a indiferença da juventude brasileira em relação às urnas. Ao que parece, aqueles que agora teriam o direito de eleger seus representantes demonstram não acreditar no sufrágio como meio de transformação de seu país.

Além disso, acompanhando o envelhecimento da população brasileira, nas eleições de outubro, o Brasil viverá um cenário totalmente novo. Pela primeira vez em sua História, o país terá mais eleitores idosos, com mais de 60 anos, do que com idades entre 16 e 24 anos. E isso pode influenciar os rumos das políticas públicas.

 Estudos demográficos e eleitorais indicam que, até 2030, os eleitores com mais de 60 anos representarão o dobro do total de jovens com título. Se a tendência se confirmar, o Brasil poderá vir a ser um país de jovens nas ruas e de idosos nas urnas.

O 'grande número' e a política (Luiz Werneck Vianna)




Desde junho de 2013 as ruas não têm dado tréguas em suas manifestações, primeiramente sob as bandeiras dos direitos, como os de acesso à saúde, à educação e à mobilidade urbana, e, nesta segunda onda dos dias presentes, com o claro registro da dimensão dos interesses. Em poucos meses, mudaram os temas e os personagens. As camadas médias, antes com massiva participação, cederam lugar a categorias de trabalhadores demandantes de melhorias salariais, por vezes à margem da orientação dos seus sindicatos, e a movimentos sociais de extração social difusa, como os do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), boa parte deles sob a influência de partidos da esquerda radicalizada.

Os diagnósticos que nos vêm da mídia são uniformes na interpretação economicista do mal-estar reinante na população, carregando nas tintas o tema da inflação, segundo eles, palavra-chave da sucessão presidencial que se avizinha. Contraditoriamente, tal diagnóstico convive sem conflito aparente com o reconhecimento por parte de analistas de diversas orientações de que, nos últimos anos, indicadores confiáveis atestariam o alcance de setores subalternos a melhores padrões de consumo e de acesso ao mercado de trabalho. Muitos deles até sustentando que tais setores já fariam parte das classes médias. Conquanto essas duas interpretações contenham seu grão de verdade, elas apontam, como é intuitivo, para direções opostas, embora guardem em comum o mesmo viés economicista e a mesma distância quanto à política.

O fato novo que temos diante de nós vem, precisamente, dessa região oculta da Lua e se manifesta na ruptura da passividade em que se mantinha o "grande número", para flertar com a linguagem de um grande autor em suas alusões ao homem comum da sociedade de massas. As duas florações da social-democracia - a do PSDB e a do PT -, no governo por duas décadas, cada qual no seu estilo, embora a do PT venha sendo a mais desenvolta na intervenção sobre a questão social, não só têm estimulado, mesmo que indiretamente, a procura por parte dos setores subalternos da porta de acesso aos direitos da cidadania, como atuado no sentido de consolidar as liberdades civis e públicas previstas na Carta Magna de 1988. Os limites em que o governo da presidente Dilma Rousseff se manteve no curso da Ação Penal 470, o processo dito do "mensalão", em que estavam envolvidos importantes dirigentes do PT, é um exemplo disso.

A passividade do "grande número" ao longo desse período - evita-se o uso do termo multidão para manter distância das ressonâncias metafísicas com que ele, ultimamente, tem sido empregado - certamente não foi indiferente às políticas bem-sucedidas dos governos social-democratas - declarados como tal ou não - que têm estado à testa da administração pública, entre os quais a do Plano Real e a do Bolsa Família, mencionado este último apenas pela sua efetividade.

Contudo, malgrado as diferenças entre PSDB e PT, inscritas no DNA de cada um deles, ambos optaram por estilos de governo tecnocráticos. No caso do PT, bem camuflado por instituições como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, logo esvaziado, e pelas reuniões informais entre o ex-presidente Lula e as lideranças sindicais. E, sobretudo, pela incorporação de movimentos sociais ao aparelho de Estado, marcas fortes dos governos de Lula. Para os setores organizados e próximos ao partido, tais práticas podiam ser vivenciadas como um sucedâneo de democracia participativa, mesmo que suas deliberações fossem, em última instância, dependentes da discrição governamental.

Quanto aos intelectuais, em que pese a forte atração que o PT exerceu sobre eles no momento de sua fundação, incluídas grandes personalidades do mundo da ciência e da cultura, eles não encontraram em sua estrutura partidária um lugar próprio para exercer influência, rebaixados à situação de massa anônima de simpatizantes. Nessa posição marginal, eles se confortaram na crença dos poderes carismáticos da sua liderança, bafejada por sua origem operária, e hoje padecem de desencanto com a revelação dos muitos malfeitos com origem na máquina governamental.

O PSDB, por sua vez, partido formado por intelectuais, não somente os deixou à deriva, como igualmente se manteve ao largo dos movimentos sociais e do sindicalismo, confiante nos louros conquistados com os êxitos do Plano Real. Assim, se o PT se recusava a vestir a carapuça da social-democracia, que lhe cabia tão bem, o PSDB assumiu-a apenas no plano do discurso, com seu núcleo duro constituído por elites de formação e trajetória tecnocráticas. Nem um nem o outro enfrentaram o desafio da "ida ao povo". Na versão petista, o sindicalismo tem-lhe feito as vezes e, na do PSDB, a massa de consumidores. Nas favelas e nos bairros populares, em termos de organização partidária - não de voto, frise-se -, em meio a um oceano de evangélicos, não se nota a presença deles.

Nessas condições, a ativação do "grande número", a que se assiste desde junho do ano passado e, ao que parece, não vai recuar nem mesmo diante da Copa do Mundo, tem encontrado à sua frente um terreno político desertificado. Nada a surpreender quanto à sua descrença na política e à selvageria de muitas de suas manifestações, fato que o governo do PT reconhece agora, de modo tardio, atabalhoado e, como sempre, vertical, com a criação por decreto dos conselhos populares de participação na administração pública.

Seja lá o que o destino reserva a essa iniciativa discricionária, que não nos chega em momento propício, já está na hora de fazer ouvidos moucos aos ideólogos do economicismo, confessos ou encapuzados, que confundem o consumidor com o cidadão e a política com o cálculo eleitoral.

* Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio.
Fonte: O Estado de S. Paulo

sábado, 21 de junho de 2014

De junho a junho (Angela Alonso)




Junho do ano passado surpreendeu. Este junho não. Em 2013, os protestos foram raio em céu azul. Em 2014, chovem no molhado, pois há um ano as manifestações se tornaram uma constante. Isto não quer dizer que sejam as mesmas. Muita coisa mudou de um junho a outro.

Mudaram os manifestantes. Em junho de 2013, foram para rua ativistas de novos e velhos movimentos sociais, mas também pessoas que nunca tinham participado de manifestações, estreantes na política. Já neste ano, prevalecem ativistas profissionais, isto é, os que se dedicam à política como atividade rotineira, engajados em movimentos consolidados e já organizados há algum tempo, como o MSTU. Os sindicatos, coadjuvantes em junho passado, recuperaram protagonismo, como se viu na greve do metrô em São Paulo. E dos "novos" ativistas de junho passado, os que persistem não são os cibernéticos - o "saímos do Facebook" - mas os com base organizacional clara e reuniões presenciais consecutivas, caso do MPL e dos comitês contra a Copa. Aliás, a prometida internacionalização do protesto, que se supunha a Copa traria, ainda não se confirmou.

Voltaram à cena os partidos. Depois da recusa virulenta a eles em junho passado, suas bandeiras tornam a tremular nas manifestações. E a colori-las de vermelho. O traço socialista, se não ausente, tímido em junho de 2013, agora povoa a maioria dos eventos, nos quais circula miríade de movimentos, sindicatos e pequenos partidos, todos à esquerda. Em junho passado, havia gente do outro lado. Esse protesto à direita do governo arrefeceu como manifestação organizada, embora siga difuso, em expressões eventuais de pequenos grupos e em manifestações públicas coletivas sem orquestração prévia, como no xingamento à presidente da República na estreia do Brasil na Copa.

A concentração do protesto de um lado do espectro político trouxe outra mudança, de dimensão. Embora sigam numerosas, as manifestações encolheram. Escrevo antes do 19 de junho, para quando se promete protesto grande, mas a maioria dos ocorridos até aqui está longe dos eventos massivos do ano passado, que rodavam na casa do milhão. À exceção dos protestos do MTST, que tem adesão crescente, parece ter havido um retorno à escala mais modesta pré-junho de 2013, quando os eventos maiores tinham 4 ou 5 mil de participantes. Não é pouco, mas é bem menos.

A volta de sindicatos e partidos à linha de frente impactou também o repertório expressivo das manifestações. Em junho de 2013 sobressaíram inovações nas formas de protestar, obra sobretudo de pequenos grupos autonomistas, como o MPL, inspirados nos movimentos por justiça global pós-Seattle, de onde trouxeram a queima de objetos, os jograis e o horizontalismo organizacional expresso na negação da figura do líder. No junho em que estamos, o novo repertório autonomista, prenhe de signos anarquistas, convive em igualdade com o velho repertório socialista - os megafones, as bandeiras, a liderança que vocaliza o movimento e se torna sua face pública, vide Boulos, do MSTU.

Isto reaparece nas formas de ação. "Pegou" a tática black bloc, o ataque a objetos representativos do Estado ou do capital, que, de elemento surpresa, virou figurinha carimbada. Mas, de outro lado, enquanto em 2013 prevaleceram as manifestações públicas presenciais na rua, neste voltou a estratégia mater do repertório socialista, a greve. A opção tornou as pautas mais focais, mas segmentou o protesto, ao mobilizar categorias específicas - motoristas de ônibus e metrô, professores, estudantes - quando em junho passado as manifestações eram transsetoriais.

Mudaram os protestos. Mudou a resposta das autoridades a eles?

A do governo federal, sim. Pré-junho de 2013, o governo Dilma incorporava temas de movimentos sociais, como o Minha Casa, Minha Vida, mas não necessariamente seus atores. O desenho das políticas ficava sob controle de técnicos, com baixa participação dos movimentos que as reivindicavam. Isto se alterou, com tentativas de ampliar o diálogo com a sociedade. Primeiro em direção atabalhoada, com a proposta natimorta de plebiscito. Em seguida, o governo passou a negociar com movimentos - seara na qual, aliás, nasceu o partido da presidente. E agora acena com projeto de fortalecimento da participação em conselhos relativos à implementação de políticas públicas. Esta resposta pode desinflar protestos, ao oferecer aos movimentos um fórum de expressão e negociação.

Outra atitude do poder público ante os protestos mudou pouco e pode reinflá-los. Depois de críticas generalizadas à ação da polícia no ano passado, ensaiaram-se modificações, como a contenção sem uso de armas e a identificação de ativistas usuais. Talvez o plano fosse uso cirúrgico da violência contra ativistas que utilizam a tática black bloc. Se esta foi a intenção, não é este o resultado. Como em junho passado, a violência transbordou, atingiu manifestantes, transeuntes, jornalistas.

No balanço de um junho a outro o que fica? Mudou a atitude do Executivo federal, que rumou para o diálogo com os movimentos sociais. Já a conduta da polícia permanece inalterada, parecida ainda àquela que levou cidadãos sem vínculos com movimentos ou partidos a engrossarem o protesto em 2013. Quanto ao protesto, estão se esmaecendo as inovações de símbolos, táticas e formas expressivas de junho passado. A criatividade deu lugar a uma rotinização das manifestações, retornaram os atores tradicionais e o velho repertório socialista. A ideia de refundação da política, tão alardeada em junho passado, está se esfumando e o próprio protesto vai perdendo sua aura.

Angela Alonso é professora livre-docente do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, diretora científica do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap)
fonte: Valor Econômico (20/06/14)

quarta-feira, 11 de junho de 2014

Algo deu errado em Sampa (Luiz Carlos Azedo)


De todas as notícias negativas para a campanha à reeleição da presidente Dilma Rousseff, até agora, a pior foi o resultado da pesquisa Datafolha em São Paulo, na qual a petista perderia a eleição no segundo turno por ampla margem. Entre os 31,8 milhões de eleitores paulistas, que representam 22% do total, Aécio Neves (PSDB) a venceria por 46% a 34%; Eduardo Campos (PSB), mesmo sem palanque local, por 43% a 34%. A pesquisa mostra que a estratégia traçada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para tomar dos tucanos o Palácio dos Bandeirantes e, simultaneamente, reeleger Dilma no primeiro turno está naufragando.

Lula tentou repetir no maior colégio eleitoral do país a mesma estratégia vitoriosa nas eleições da capital paulista, na qual conseguiu eleger o ex-ministro da Educação Fernando Haddad prefeito de São Paulo. Um ano e meio após tomar posse, o jovem administrador não conseguiu bom desempenho como gestor e amarga baixos índices de aprovação. Ou seja, é um péssimo cabo eleitoral para Dilma Rousseff. Deixou de ser também um trampolim para o ex-ministro da Saúde Alexandre Padilha, o candidato do PT ao Palácio dos Bandeirantes, que ainda não conseguiu decolar e permanece com apenas 3% dos votos. Lula acreditava que ele repetiria a performance de Haddad, quando nada porque o patamar de votos petistas estimado pelos analistas seria de 30%.

Com os desgastes do governo federal com os paulistas — tem apenas 23% de aprovação —, a rejeição de Dilma em São Paulo chega a 46%, quando a média nacional é de 32%, o quê é considerado mortal para qualquer candidato pelos marqueteiros. A opção de Dilma no estado seria uma aproximação com o candidato do PMDB, Paulo Skaf, que tem 21% da preferência. O ex-prefeito Gilberto Kassab, outro aliado, com 4% dos votos, já deriva para a oposição.

Surpreendentemente, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), em meio à onda de greves e protestos violentos, tem 44% das intenções de voto e venceria no primeiro turno. Isso é improvável, mas já não se pode dizer que é impossível. A radicalização do movimento sindical no setor público, como na greve do Metrô, parece beneficiar o tucano, que joga duro com o movimento paredista e capitaliza a insatisfação da grande massa de usuários prejudicada pelo vandalismo e pela perturbação da vida urbana.

O padrinho da candidatura de Skaf em São Paulo é o vice-presidente Michel Temer, que espera ver o outrora poderoso PMDB de Ulysses Guimarães e Orestes Quércia renascer das cinzas, como Fênix. A lógica para o Palácio do Planalto seria o PT retirar a candidatura de Padilha e apoiar Skaf, numa chapa que poderia ter o ex-ministro na vice e o senador Eduardo Suplicy como candidato a mais um mandato. Mas isso é tratado como uma capitulação pela seção paulista da legenda, que conta com lideranças eleitoralmente robustas, como a ministra da Cultura, Marta Suplicy, e o ministro da Casa Civil, Aloizio Mercadante, sem falar no ex-presidente Lula.

segunda-feira, 2 de junho de 2014

O presidencialismo de coalizão (Renato Janine Ribeiro)




Tornou-se praxe, no Brasil, acusar o presidencialismo de coalizão de todos os males da vida política e até social. Ele é responsabilizado pelas negociações que dão sobrevida a políticos fisiológicos, em troca de seu apoio no Congresso. O último a criticar esse modelo político foi Eduardo Campos, no "Roda Viva" da semana passada. Só que mudá-lo pode trazer novos problemas, em vez de vantagens.

O que é presidencialismo de coalizão? É a união de um presidente eleito com a maioria absoluta dos votos válidos - no primeiro ou segundo turno, e que por isso mesmo é fortemente representativo - e de um Congresso escolhido junto com o primeiro turno presidencial, no qual nenhum partido tem a maioria - no Brasil nem mais de 20% - dos assentos na Câmara. Negociar é inevitável. O partido ou coligação presidencial nem sempre obtém a maioria parlamentar. Assim, se um candidato com pretensões a se eleger faz, em sua campanha, alianças já duvidosas em busca de tempo no horário eleitoral, uma vez eleito fará alianças ainda mais complacentes, para ter a base legal e orçamentária de seu governo.

Mas como mudar essa situação? O único meio seria assegurar que o partido ou coligação do presidente eleito atinja maioria absoluta nas duas Casas do Congresso sozinho, sem precisar de negociações posteriores a sua eleição. Isso é viável? Se sim, a que preço?

Primeira dificuldade: o Senado se renova parcialmente - um terço este ano, dois terços daqui a quatro. Mesmo que o presidente se eleja com uma avalanche de sufrágios, não basta para mudar a maioria no Senado. E essa Casa existe, justamente, para isso: para evitar que maiorias, digamos, "circunstanciais" façam barba, cabelo e bigode. É uma Casa conservadora, que deveria retardar a aprovação de medidas muito radicais - o que, aliás, nem sempre faz, tanto que, em 1997, votou a reeleição sem dificuldades. (Lembro esse episódio porque foi uma de nossas maiores mudanças institucionais da era republicana, rompendo uma tradição que parecia cláusula pétrea no presidencialismo latino-americano - por sinal, o único presidencialismo consistente fora dos Estados Unidos).

Segunda e mais imediata: para ter maioria em qualquer das Casas, será preciso reduzir brutalmente nosso sistema partidário. O pluripartidarismo, outra tradição brasileira importante, teria que ceder a vez ao bipartidarismo. A ditadura militar tentou isso, de 1965 em diante, até com recursos baixos como as cassações e as sublegendas, mas sem êxito. Finalmente, em 1982, cedeu à realidade. Se a vontade brasileira de não se encarcerar num modelo de apenas duas opções resistiu à censura, à tortura, à ditadura, será ela vencida por uma lei eleitoral? Essa lei eleitoral passará no Congresso, expressará a vontade popular? Duvido.

É certo que a arte da governabilidade passa, mais vezes sim do que não, pelo recurso de converter uma minoria de votos na sociedade em maioria absoluta no Parlamento - com sorte, converter uma maioria relativa (mas não absoluta) em metade mais um. Na França, isso se obtém, desde a redução do mandato presidencial aos mesmos cinco anos do parlamentar, por um truque curioso: o presidente da República se elege, e em seguida dissolve a Câmara que, eleita um mês depois dele, lhe dá uma maioria quase esmagadora. Isso liquida a oposição. Queremos isso? É quase o mesmo que governar sem Parlamento.

Na Itália, é pior. Desde 2005, uma lei conhecida como Porcellum (literalmente, "porcaria") dá 54% das cadeiras na Câmara ao partido ou coligação mais votado. O codinome dado pelo cientista político Giovanni Sartori à lei, e que pegou junto ao povo, já diz tudo. A invenção é da direita. Mas em 2013, com 32% dos votos, a centro-esquerda levou 54% da Câmara, enquanto a direita de Berlusconi, com um por cento a menos, obteve 20% das cadeiras.

Mesmo a eventual adoção do voto distrital entre nós - outro sistema do qual não temos experiência no Brasil em regime democrático, tendo vigido apenas no Império e na República Velha - não criará uma maioria absoluta, se continuarmos tendo mais que dois polos políticos. Ou seja, para acabar com o presidencialismo de coalizão, precisaríamos reduzir à margem de erro tudo o que for terceira via, terceiro partido, onde só ficarão os que não receiam ser minoria, os que abrem mão do projeto de governar o país porque preferem usar a tribuna para pregar uma causa - por sinal, muitas vezes digna: verde ou socialista.

Veja-se o problema. Os dois partidos que há 20 anos disputam a hegemonia no país, e que talvez continuem essa disputa, nasceram em ruptura com o quadro político vigente. O PT era "diferente de tudo o que estava aí". Conseguiria crescer num sistema bipartidário? O PSDB era uma dissidência do PMDB. Teria lugar num sistema tal? Improvável. Renovações seriam difíceis. Por isso, o Rede ou o PSB: sem chance.

Penso que a soma de um Poder Executivo disputado em termos mais ou menos bipartidários, mas flexíveis (no qual podem despontar Marina ou Eduardo), e de um Legislativo pluripartidário expressa melhor a complexidade de nossa vida social e política.

Agora, se o problema é a corrupção, podemos enfrentá-la com outras armas, sem destruir este delicado arcabouço político: abolir o financiamento de campanhas por empresas (que, ao contrário de pessoas físicas, não são eleitores nem podem ser presas por crime eleitoral), aumentar a fiscalização, agilizar os julgamentos na Justiça Eleitoral, reduzir os candidatos que cada partido pode lançar ao Legislativo, entre outras medidas. Melhor identificar e resolver os problemas que existem, do que criar novos.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Fonte: Valor Econômico