sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

O valor da Divergência (Marco Aurélio Nogueira)



Divergir é viver. A beleza das redes é que somos instigados o tempo todo por ideias que se chocam com as nossas. Desafiam-nos. E por isso nos fazem pensar e reformular convicções. Sem elas, estagnamos ou somos sufocados por nós mesmos, por nossas certezas, fantasias e obsessões.
A divergência é a base e o sal da democracia.
Há, porém, dois requisitos nisso. Um deles é que a ênfase na divergência não deveria implicar nem o cultivo da dúvida, nem o abandono da busca de consensos e entendimentos, especialmente quando se trata de política. Hoje, no Brasil, estamos sendo incapazes de fazer esse movimento. Tudo vira plebiscito, briga de esquina e demonstração de força. Fecham-se espaços preciosos para a acumulação de impulsos reformadores.
O outro requisito é o da reciprocidade, da abertura ao diálogo. Divergentes que não estão dispostos a te ouvir ou que não querem interagir com teus argumentos não divergem de você: contrapõem-se e te contestam. Costumam ser agressivos, peremptórios e superiores, donos da verdade ou de verdades que julgam que você não alcança.
Divergir requer educação, bons argumentos e aprendizado. Não é somente algo que se saca do bolso de qualquer jeito, em nome da democracia. Requer treino, dispensa o fígado. Se o alvo é abrir uma discussão com intuito de esclarecer (e não simplesmente de denunciar erros de alguém), é preciso um pouco de método. Coisa que se aprende, em casa, nas ruas, nas reuniões e na escola. Toda roda de conversa é, desse ponto vista, pedagógica. Ensina-nos a divergir, a convergir, a buscar consensos.
A nossa é uma época de pessoas com opinião e com excesso de informação. Todos sabem algo e têm como comunicar o que sabem. Opinião não é conhecimento, mas nem sempre a distinção é clara. Muitos usam a primeira achando que estão a praticar o segundo. É a mesma história de acreditar que fazer a crítica é desancar um autor, em vez de decifrá-lo. 
O complicado de redes como o Facebook, por exemplo, é que a divergência frequentemente se traduz como pura contraposição, regra geral acrescida de adjetivações pesadas, feitas em nome do valor em si da contestação, da "firmeza de opinião" ou da necessidade compulsiva que alguns têm de marcar posição. Como todos têm "amigos" e seguidores, logo se forma uma plateia para aplaudir aquele que teve a "iniciativa democrática" de se contrapor a você. O debate termina, assim, por ficar interditado.
Sou afortunado por me relacionar bem mais com pessoas que divergem de mim (em distintos graus) do que com contestadores puros. Diferenciando uns de outros, consigo seguir em frente sem muito cansaço.
Nem todos, porém, têm essa sorte. E creio que é por isso que tanta gente se aborrece e termina por se afastar das redes.

Eleições fundamentais (José Álvaro Moisés)



Eleições são para a democracia como o oxigênio para a vida. Sem elas, não se pode dizer que o regime democrático existe, e no Brasil temos razões de sobra para celebrar a conquista das eleições diretas.

A participação dos brasileiros baseada na crença de que o voto permite influir na definição de políticas públicas cresceu e os cidadãos estão hoje mais mobilizados para exercer a sua cidadania política do que no início da democratização, embora mais críticos e mais severos no julgamento do desempenho de governos e instituições de representação.

Eleições majoritárias e proporcionais nem sempre coincidiram, mas os resultados de duas décadas e meia de ciclos eleitorais regulares, previsíveis e livres, sob controle da Justiça Eleitoral, consolidaram duas características importantes do regime democrático, a participação do "demos" e a contestação política.

No primeiro caso, a expansão do sufrágio em comparação com as últimas eleições do período democrático anterior representou a inclusão quase da totalidade da população adulta na "polity". No segundo, a competição baseada no multipartidarismo vigente, um sistema menos moderado do que suas origens prenunciavam, favoreceu a alternância no poder, embora tal como opera hoje envolva uma dúvida importante.

Nas últimas décadas, o Brasil superou impasses estruturais importantes, redefiniu os rumos de sua economia e adotou políticas sociais inovadoras, mas a sua democracia convive com um paradoxo: a adesão ao regime aumentou, mas os índices de desconfiança de instituições são muito altos, sinalizando a existência de uma cisão na percepção pública da democracia como ideal e como realização prática. A democracia representativa está em questão, em especial, o funcionamento do Parlamento e dos partidos políticos.

A desconfiança afeta menos a saudável crítica de quem governa (titulares de cargos executivos e representantes), importante para monitorar o seu grau de responsividade, e mais a descrença de como ou do modo de funcionar de instituições que devem assegurar a expressão das preferências dos eleitores e a equanimidade da competição eleitoral. O sistema supõe cooperação entre o Executivo e o Legislativo, mas no regime de separação de Poderes eles não têm as mesmas funções, e sem autonomia o Parlamento realiza mal as funções de fiscalização e controle de governos e líderes políticos.

Da mesma forma, não se espera que os partidos funcionem apenas como garantia de governabilidade no presidencialismo de coalizão --sua conexão com a sociedade é fundamental. O sistema supõe que a maioria dos partidos apoie o governo em troca de influência e cargos na administração, limitando a ação da oposição e restringindo em parte a capacidade de fiscalização do Congresso. Só a alternância no poder, se as condições de equanimidade da competição eleitoral estiverem asseguradas, evita que isso afete a qualidade da democracia.

Entre nós, isso depende basicamente do acesso dos candidatos ao horário eleitoral gratuito, o principal meio para os eleitores se informarem sobre as alternativas propostas. Um terço do tempo do horário gratuito é dividido igualmente entre todos os candidatos e dois terços proporcionalmente às bancadas dos partidos no Congresso.

Porém, os incentivos institucionais para que a maioria dos partidos apoie o governo, aumentando o seu tempo, desequilibra a competição e reduz as chances da oposição. Se não for enfrentada, a questão compromete parte das vantagens conquistadas com as eleições diretas.

José Álvaro Moisés, 68, é professor de ciência política da USP e membro do Comitê Executivo do Conselho Internacional de Ciências Sociais da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Este ano não vai ser igual àquele que passou (Luiz Werneck Vianna)



"Este ano não vai ser/ igual àquele que passou", cantava a antiga marchinha de carnaval. Não vai, é certo, mas ainda estão ressoando em surdina no novo ano as toadas que tomaram as ruas nas jornadas de junho de 2013. E, como um encontro marcado, não há quem não espere o seu retorno, embora em diverso diapasão, com os jogos da Copa do Mundo e o processo de uma sucessão presidencial competitiva. Foram fundas as marcas deixadas pelo ano que passou: além de suspender o cotidiano com as ondas de protesto das manifestações populares, trouxe à luz novos personagens e um sentimento inédito de urgência quanto a demandas, desatendidas, da população nos serviços públicos.

As manifestações, é verdade, cessaram, mas estão aí presentes os mesmos motivos, o difuso mal-estar e os protagonistas de ontem. A política e os partidos, malgrado um tumultuado esforço despendido na produção legislativa a fim de responder ao clamor por mudanças, passado o susto pelo descontrole das ruas mantêm distância da sociedade, o que mais se agrava por ser este um ano a ser dominado pelo calendário eleitoral. Pior, já se reitera o vezo de um malfadado presidencialismo de coalizão que, na forma como o praticamos, reduz o papel dos partidos a máquinas eleitorais aplicadas à reprodução da classe política que aí está, em detrimento do que deveria ser a busca de rumos para uma complexa sociedade como a nossa.

Não se aprendeu nada, não se esqueceu nada. Não à toa esse dito clássico tem sido invocado por tantos - a política está entregue, como sempre, a próceres empenhados no escambo do horário eleitoral, especialmente no interesse das cúpulas partidárias, conforme um deles declarou sem rebuços dias atrás em entrevista a um importante jornal. Mas desta vez não haverá surpresa, como no ano que passou. A Copa do Mundo tem data, assim como a têm a eleição presidencial, a dos governadores e a parlamentar, para as quais não se deve prever céu de brigadeiro, tal como já se entrevê.

Depois dos idos de junho muita água correu debaixo da ponte: tanto o Estado como o governo se preveniram, em particular em política de segurança e na tentativa de minorar as carências da população em termos dos serviços públicos, embora não faltem à cena gatilhos novos, como, entre outros, a questão dos presídios e a dos indígenas. E a sociedade teve tempo para investir na reflexão sobre aqueles surpreendentes acontecimentos, como testemunha a produção editorial dedicada a eles. Sobretudo não se mostrou insensível ao significado de que eram portadores, qual seja, o de que estamos no limiar do esgotamento de um longo ciclo e já maturam as condições para sua superação.

Vários sinais apontam para essa direção, o principal deles se faz indicar pela recusa em aceitar a reiteração do padrão de discricionariedade irrestrita na administração pública, de imemorial tradição entre nós, terreno em que o Ministério Público se vem mostrando à altura do papel constitucional que a Carta de 88 lhe destinou. O Poder Executivo, especialmente o municipal, em alguns casos significativos, vem acompanhando essa tendência, abrindo canais de participação para a população envolvida em temas do seu interesse. O julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da Ação Penal 470, com a condenação de importantes quadros do partido no governo, exerceu severa pedagogia quanto aos valores republicanos.

São mutações relevantes e em todas elas se registram ecos das manifestações espontâneas de junho que confirmaram, na tradução livre que imprimiram em suas faixas e seus galhardetes, o sentido visado por seus autores institucionais. De uma perspectiva mais larga, nem sempre perceptível a olho nu, essas são transformações que repercutem em cheio no modelo nacional-desenvolvimentista, latente na esquerda brasileira, desentranhado pelo governo do PT do baú da nossa História como resposta à crise financeira mundial de 2008, inclusive com elementos que recebeu da sua versão sob o governo Geisel, que depende visceralmente de um modelo político decisionista.

De passagem, registre-se que tal modelagem, na democracia da Carta de 88, vem sendo reproduzida pelas vias abertas pelo presidencialismo de coalizão à brasileira, ora ameaçado pela votação ainda em curso no STF de uma ação proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil com a finalidade de interditar o financiamento das competições eleitorais por parte de empresas. Sem a escora dessa peça, uma de suas vigas-mestras, o presidencialismo de coalizão somente poderia persistir em torno de programas, o que supõe ampla deliberação e adoção de rumos compartilhados, minimamente consensuais. Aí, mais um indicador de exaustão do ciclo a que ainda estamos submetidos.

A sensibilidade a esse novo estado de coisas está em todos, até mesmo, se valem os sinais, na presidente Dilma Rousseff e em sua equipe econômica, de que é exemplo sua decisão de comparecer ao encontro de Davos. Os fortes abalos da crise de 2008, que ainda sentimos, se importaram em ruínas e perdas materiais, têm devolvido vigor, aqui e alhures, a muitas lições esquecidas, como as de Marcel Mauss, Karl Polanyi e Antonio Gramsci, tão diferentes entre si, mas convergentes nos seus propósitos de regular o mercado pelo direito, por padrões eticamente orientados e pela política democrática.

Luiz Werneck Vianna é professor-pesquisador da PUC-Rio.
Fonte: O Estado de S. Paulo (26/01/14)

sábado, 25 de janeiro de 2014

Ausências, atritos e expectativas (Marco Aurélio Nogueira)



O sistema presidencialista de governo caracteriza-se por centralizar a Presidência da República e depende extraordinariamente da conduta presidencial. Se o presidente desempenha bem suas funções, o sistema funciona. Se o faz com brilho pessoal, carisma e qualidade política, melhor ainda.

No Brasil, cujo presidencialismo é complicado por um federalismo imperfeito, isso é ainda mais verdadeiro. Por aqui, presidentes fracos tendem a ser desastrosos. Não podendo dispor de contrapartidas eficientes - um Legislativo de qualidade e uma sociedade civil ativa -, sobrecarregam o sistema e rebaixam o padrão da governança, arrastando-o para a mesmice e a rotina.

Tudo isso é conhecido, mas deve ser lembrado sempre que se constata alguma deficiência de desempenho no governo federal ou algum atrito inconveniente entre os entes federados. A responsabilidade, nesse caso, recai tanto sobre a conduta, o estilo, as escolhas e a personalidade do presidente quanto sobre os defeitos do federalismo. Alcança também os governos regionais, em que o mesmo raciocínio pode ser duplicado: quanto melhores os governadores em termos políticos e funcionais, menos possibilidades de o sistema fraquejar e mais chances de o federalismo se tornar "cooperativo", para usar a boa expressão empregada recentemente pelo governador mineiro, Antonio Anastasia.

Não é difícil constatar, por exemplo, que o Brasil estava melhor quando Lula era presidente, se compararmos as coisas no interior do ciclo petista de governo. Em suma, o País funcionava melhor do que sob Dilma Rousseff. Em certos aspectos, a atual presidente vem tentando "copiar" Lula, mas sem sucesso. É impossível fazer isso, dada a envergadura do ex-presidente, seu prestígio internacional incomparável, sua personalidade exuberante e carismática. Dilma é tecnicista, dura, não tem empatia popular nem brilho e, acima de tudo, não se sente à vontade para animar o presidencialismo com a vitamina mais importante, a política. Mostra-se desconfortável seja para fazer a política miúda, das conversas e negociações de bastidores, seja para fazer a grande política, dos gestos e propostas abrangentes para o País. Além do mais, tem uma biografia pobre em termos de imagem e impacto social.

É o oposto exato de Lula, que imprimia ritmo e alma ao governo, deitava e rolava na política e do alto de sua inigualável trajetória de vida manejava bem o presidencialismo federativo. Pode não ter melhorado seu funcionamento ou reformulado o molejo institucional da governança, mas valorizou a Presidência e coordenou o governo com bons assessores e auxiliares. Era o grande articulador, quase onipresente. Fernando Henrique Cardoso também foi assim. Mas Dilma, não.

É verdade que os tempos são outros, que a coalizão presidencial perdeu densidade, os partidos pioraram e a sociedade ficou muito mais "fora de controle". Dilma, porém, não teve um "mensalão" a ameaçar-lhe a jugular. A própria oposição tem sido dócil com ela, mais por incompetência do que por opção. Seu maior desafio foram as ruas de 2013, fenômeno que, para um partido de esquerda como o PT, deveria ter sido combustível, não problema. Mas Dilma não se saiu bem do confronto, independentemente do perde-e-ganha dos índices de aprovação. Não foi à luta, propôs pouca coisa de factível, não entabulou diálogos sustentáveis com os manifestantes e suas agendas. Foi atrapalhada pelo sistema e pela mediocridade da classe política, mas não mostrou habilidade para sair do cerco. Faltou-lhe virtù.

Pode-se argumentar que não há tantas diferenças entre o governo Lula e o governo Dilma, que seriam carne da mesma carne, e que Lula é o mais importante e ativo assessor de Dilma, dividindo com ela algumas atribuições da Presidência, como, por exemplo, a da comunicação e da articulação política, além de ser o principal agente da reprodução do que há de dimensão simbólica no ciclo petista. Isso, porém, só serve para reforçar a hipótese, agregando a ela um componente ameaçador: sem Lula o governo Dilma talvez já tivesse naufragado, por falta de quem o fizesse respirar nos espaços vitais da política.

É evidente que há coisas boas no governo Dilma. Só não o reconhece quem pensa com o fígado. Seu problema não está no varejo, mas no conjunto da obra. Lula deixou uma marca. Outros presidentes antes dele também o fizeram, a começar de José Sarney com o Plano Cruzado e a Constituinte. Com Dilma, não, ela terminará seu período governamental do mesmo modo que o começou.

Não se trata de engrossar as fileiras do "volta, Lula". O tempo de Lula talvez já tenha passado, não há como simplesmente voltar a ele. Também não há como apostar que o eventual retorno do ex-presidente traria consigo a imediata requalificação da Presidência e a elevação da qualidade da governança. É impossível falar algo a esse respeito, até porque política (e governo) é correlação de forças e circunstâncias, não somente brilho pessoal ou capacidade de liderança.

Seja como for, 2014 será uma excelente oportunidade para pôr à prova esse raciocínio. Se, nele, as ruas voltarem a se mobilizar, a pressionar e a incomodar, e fizerem isso com maior envergadura política e perspectiva estatal, se os interesses organizados tiverem força, criatividade e lucidez para rever suas formas de atuação e qualificar as lutas sociais, se o debate político for depurado da baixaria e da adjetivação, descortinar um futuro para o País e abrir espaços para a cooperação inteligente dos partidos, então se poderá delinear uma situação em que os cidadãos mandarão no País, não os governantes e os políticos. O presidencialismo e o federalismo poderão ser assim aperfeiçoados, recondicionando o conjunto do sistema político.

Afinal, é com os cidadãos e as forças vivas da sociedade que os políticos precisam pactuar, pois o Estado só faz sentido se tiver na base um pacto social consistente.

*Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP.

Fonte: O Estado de S. Paulo

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Liberais na luta contra a ditadura (Luiz Carlos Azedo)



O resgate da verdade oculta nos porões da ditadura, por meio de pesquisas, reportagens e biografias, vem sendo acompanhado de uma certa glamourização da luta armada contra o regime militar e da superestimação do papel da esquerda na transição à democracia. Isso ocorre, é claro, em razão da ascensão ao poder do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o líder operário que comandou a histórica greve dos metalúrgicos do ABC de 1978, e da presença de uma ex-guerrilheira da Var Palmares Dilma Rousseff na Presidência da República. Na verdade, a força política mais importante na derrota dos militares foi o PMDB, sob o comando de um político liberal, Ulysses Guimarães, que liderou gigantescas manifestações por todo o país em defesa do restabelecimento das eleições diretas para presidente.

A campanha das Diretas Já começou pra valer em 25 de janeiro de 1984 e completará 30 anos amanhã, com o grande comício na Praça da Sé, em São Paulo, convocado pelo então governador Franco Montoro, democrata-cristão de origem, que mais tarde viria a ser um dos fundadores do PSDB. O sucesso do comício, que reuniu 300 mil pessoas, até surpreendeu os caciques da oposição que haviam aderido à campanha em favor da aprovação da emenda Dante de Oliveira, então um jovem deputado do PMDB; Fernando Henrique Cardoso (então no PMDB), Mário Covas (PMDB), Leonel Brizola (PDT), Miguel Arraes (PSB), Lula (PT) e Roberto Freire (PMDB), que já falava abertamente em nome do PCB, representavam a esquerda. O comício de Belo Horizonte reuniu 400 mil pessoas. No encerramento da campanha, os comícios da Candelária, no Rio, e do Anhangabaú, em São Paulo, reuniram 1 milhão e 1,5 milhão de pessoas, respectivamente.

Ulysses Guimarães via na aprovação da emenda das eleições diretas o fim do regime militar e, também, um meio de chegar à Presidência da República. O mandato do general João Baptista Figueiredo (PDS) se aproximava do fim. O governador do Rio de Janeiro, Leonel Brizola, chegara a propor sua prorrogação porque o ex-governador de São Paulo Paulo Maluf, então deputado federal, estava em plena ofensiva para se eleger presidente da República no colégio eleitoral como o candidato apoiado pelos militares. O movimento era uma alternativa para unificar toda a oposição, empolgou o país, com a participação de artistas, religiosos e representantes da sociedade civil. Mas, em 25 de abril de 1984, apesar de todo o apoio popular, quando foi colocada em votação, a emenda constitucional das eleições diretas não foi aprovada. Eram necessários dois terços dos votos. Foram 298 votos a favor e 65 contra e três abstenções (outros 112 deputados não compareceram). Para ser aprovada, a proposta precisava de 320 votos. A votação mostrou, porém, que a oposição tinha a chance de derrotar Maluf no colégio eleitoral e contava com inédito poder de mobilização.

Tancredo e Sarney
Logo pós a votação, a imprensa mostrou uma conversa entre Ulysses, Tancredo e o então presidente do PDS, o senador Ernani do Amaral Peixoto (RJ), que havia deixado o antigo MDB na reforma partidária para comandar o partido governista que sucedeu a antiga Arena. Eram velhos caciques do antigo PSD, que sempre jogaram no mesmo time, mas divergiam quanto à melhor maneira de transitar à democracia. Ulysses havia apostado tudo nas Diretas Já, ao contrário de Amaral, que acreditava na eleição do vice-presidente Aureliano Chaves, mas não contava com o apoio de Figueiredo à candidatura de Maluf. A única opção para derrotá-lo era eleger Tancredo Neves no colégio eleitoral.

Deu-se início então à campanha de Tancredo, para a qual uma parte da esquerda torcia o nariz. Ex-ministro da Justiça e do Interior de Getúlio Vargas, ex-primeiro-ministro da fase parlamentarista do governo Jango, o governador de Minas era um conciliador nato. Em 1978, antevendo uma transição negociada com os militares, chegara a fundar o Partido Popular com apoio da ala mais moderada do PMDB e de dissidentes da Arena, mas voltou atrás após a proibição das coligações. A campanha de Tancredo trouxe o povo de volta às ruas e consolidou a hegemonia dos liberais na transição à democracia. Foi eleito na Colégio Eleitoral em 15 de janeiro de 1985, tendo como vice José Sarney. Foram 480 votos a favor (sendo 166 oriundos de deputados do PDS), contra 180 dados a Paulo Maluf, candidato do PDS, e 26 abstenções. O PT, contrário à eleição indireta e ao acordo feito com os governistas, optara pela abstenção e expulsou três deputados que votaram em Tancredo: José Eudes (RJ), Bete Mendes (SP) e Airton Soares (SP).

Doente, Tancredo não chegou a tomar posse, morreu em 21 de abril, depois de várias cirurgias causadas por uma diverticulite. Símbolo do poder que estava sendo derrotado, quem assumiu o poder foi o vice José Sarney. As eleições diretas para presidente do Brasil só ocorreriam em 1989, após ser estabelecida na Constituição de 1988. Sarney é hoje o político mais longevo em atividade e uma espécie de fiador da aliança do PT com o PMDB.

Fonte: Correio Braziliense

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Rolezinho e roleta-russa (Eugênio Bucci)



1. Trilhas sonoras defasadas. Uma canção ecoa na cabeça das autoridades do governo federal, numa trilha sonora trazida de memória: "Tudo era apenas uma brincadeira/ E foi crescendo, crescendo, me absorvendu-u-u..."

A prática do rolezinho, que começou na planície periférica de modo quase inocente, como brincadeira juvenil, foi crescendo, crescendo, ganhou proporções de impasse político e de potencial perturbação da ordem pública e hoje atormenta os corredores planaltinos, absorvendo o tempo escasso do pessoal que bate ponto na Esplanada dos Ministérios. A esta altura, a composição de Peninha, provavelmente nos vibratos indefiníveis de Caetano Veloso, faz o fundo musical das piores paranoias das autoridades. Entre um respiro e outro, elas torcem para que outro verso da mesma letra seja igualmente verdadeiro: "Mas não tem revolta, não".

A questão é: e se tiver? E se o rolezinho for o estopim de explosivos mais devastadores? E se houver rolezaços na porta dos estádios durante a Copa do Mundo de Futebol? E se a popularidade da presidente descarrilar? "E se o oceano incendiar? E se cair neve no sertão?". Agora é a voz de Francis Hime que vem aturdir os tímpanos do poder. Os acordes que antes embalavam a imaginação romântica dos que hoje dão expedientes pragmáticos em Brasília voltam agora com sentidos assombrosos. Mano Brown tentou avisar: "Você não sabe de onde eu vim/ Você não sabe o que é sofrer".

2. Lentes cristalinas - e erradas. O poder pensou certo, mas com os referenciais invertidos. Pensou certo porque, sim, existe o risco de rolezinhos alegres e adolescentes se desdobrarem em protestos organizados que venham a ferir a cultura do consumo e do espetáculo - nada menos que o hábitat da Copa do Mundo e das eleições., Se essa cultura entrar em pane, tudo o que era previsível se vai esvanecer em incógnita. Uma roleta-russa.

O poder pensou com os referenciais invertidos porque, não, os protagonistas dos rolezinhos não estão nem aí para Dilma Rousseff ou Aécio Neves. Não são um partido. O que eles trazem é o desejo de brilhar na cena dominada pela mercadoria - a escolha do shopping como arena não é casual, em nenhum sentido. Palavras como candidatura, mandato ou legislação eleitoral não integram o seu vocabulário.

O poder pensou certo quando anteviu o curto-circuito iminente, mas apoiou-se nos referenciais invertidos quando achou que o impasse poderia ser administrado por gestores da segurança pública (ou privada).

O rolezinho não é um problema em si. É um problema além de si. O problema, nele, está fora dele. O problema é que ele abre um canal (involuntário e incendiário) entre dois mundos tragicamente incompatíveis: a periferia alijada dos direitos básicos e uma certa (e incerta) elite econômica que chafurda na ritualização gozosa de privilégios coreografados: o moço que carrega as compras para você, o manobrista em desabalada carreira pelo estacionamento subterrâneo para buscar o seu automóvel, uma babá exclusiva para passar guardanapo na boca do seu bebê.

O rolezinho transpõe (ou perfura) o muro que garante a estabilidade da sociedade brasileira: a cerca eletrificada que separa o condomínio de luxo da favela ao lado, o vidro blindado no carro importado, as fortificações à prova de bala que protegem os shoppings, a indiferença adestrada com que o cidadão de bem passa ao lado do mendigo estatelado sobre um papelão mal estendido na calçada.

O rolezinho precipita o contato corporal entre dois universos que só coexistem porque não se tocam. Traz para dentro das catedrais do consumo (primeiro, as da periferia; depois, as dos bairros supostamente elegantes) gente que não era para estar ali, no centro das atenções. Não era para estar ali desfilando na passarela principal, como se fosse milionária.

Repita-se: o pessoal que manda pensou certo, mas com os referenciais invertidos. Na visão desse pessoal, seria prudente agir para evitar contatos imediatos de enésimo grau entre esferas tão apartadas. Mas, também na visão deles, é uma inversão obtusa combater a garotada como se combate um assaltante, assim como é uma inversão
disparatada tentar neutralizar a performance (estética) dos rolezeiros com o discurso próprio da disputa política. Rolezinhos não são legendas partidárias nem falanges de criminosos. São apenas sinalizadores de uma desigualdade social que não pode mais persistir, mas essa urgência parece escapar às lentes do poder público - ainda que alguns apelem para o "diálogo" - e também do poder privado.

3. Os nomes das coisas. Inevitável: rolezinhos serão - já são - instrumentalizados por aventureiros, profetas, pios, ongueiros e ativistas. Vem complicação por aí, sobretudo porque teremos uma recidiva das manifestações de junho. A Copa vai fazer subir a temperatura e a pressão. Dizem os especialistas em futebol que os estádios estarão abarrotados de torcidas patrocinadas, de socialites, de endinheirados que pagam passagem de avião para ver uma única partida - mas estarão vazios de povo. Claro: está aberta a vaga para alguém "que sacuda e arrebente o cordão de isolamento" (Aldir Blanc).

Chamemos as coisas pelos seus nomes. Os estádios, incluídos os erguidos com dinheiro público, foram privatizados além da conta para o circo da Copa. A propósito, os shopping centers, empreendimentos indiscutivelmente privados, são em parte espaços públicos, posto que o acesso a eles é franqueado ao público. Shoppings não são clubes nominalmente fechados, ao menos por enquanto. Normalmente, quando alguém decreta que algo que tem dimensão pública é estritamente uma propriedade privada está querendo justificar a privação dos mais pobres. É esse tipo de impostura retórica que os rolezinhos furaram sem querer. Agora, ninguém mais sabe o que fazer.

Jornalista, e professor da ECA-USP e da ESPM

Fonte: O Estado de S. Paulo

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Eles querem mais diversão e arte (Luiz Carlos Azedo)



Os padrões de análise e de comportamento da nossa política não conseguem explicar o rolezinho. Provocam, porém, narrativas à esquerda e à direita que vão da tentativa de capitalizar as manifestações dos jovens de baixa renda nos shopping centers, como se fossem uma forma de contestação das desigualdades sociais, ao apelo à ordem e à consequente ação repressiva, por encarar o fenômeno como mera delinquência, ou seja, um caso de polícia. Nem uma coisa nem outra. Essa garotada das periferias e dos subúrbios resolveu zoar nos modernos templos do consumo por outros motivos, que precisam ser melhor estudados.

O antropólogo angloamericano Victor Turner (1920-1983) talvez nos ajude a entender o que se passa. Antes de se radicar nos Estados Unidos, o escocês fez seu trabalho de campo na aldeia dos Ndembu da Zâmbia, entre 1950 e 1954. Resultaram dois clássicos da antropologia social: O processo ritual (Vozes) e Floresta de símbolos (Eduff). Seus estudos nos confins da África servem de referência para a análise de certos fenômenos da sociedade pós-moderna, na qual categorias, identidades e símbolos da sociedade industrial foram desconstruídos. As "performances", por exemplo.

Nas atividades artísticas e culturais, nas disputas políticas, nas relações de trabalho, nas redes sociais e na vida mundana, ninguém se estabelece sem uma boa performance na "sociedade do espetáculo". Até que ponto nossos jovens de baixa renda, ao se organizarem em rede e se reunirem em massa nos shopping centers, não estão tentando apenas traduzir para o restante da sociedade que eles existem em seu próprio mundo, com lideranças e estilo de vida próprios? Que não querem só a comida que a renda lhes garante, mas também diversão e arte, como na música dos Titãs: "A gente quer inteiro/E não pela metade..."

Na sociedade pré-estabelecida pare esse jovens, há ritos para tudo, da festa de 15 anos ao casamento, da entrega de diplomas à posse de políticos. Na visão de Turner, porém, certos ritos de passagem, ao se realizarem, criam uma nova hierarquia entre seus participantes. Hipoteticamente, por exemplo, um preto velho, num passe de umbanda, pode soprar a fumaça do charuto na cara da madame sem perder o emprego de motorista; o mesmo ocorre num desfile de escola de samba, quando a empregada se veste da rainha e leva a patroa para desfilar como simples figurante. A propósito, tanto o samba quanto a umbanda foram muito perseguidos.

Mobilidade e status
A verdade é que mobilidade social por meio da educação e da renda, por si só, não garante um novo status para os indivíduos. O discurso oficial sobre a nova classe média diz o contrário, mas entre o marketing do Palácio do Planalto e a vida como ela é há uma grande distância. Essa mudança de status também exige reconhecimento, pois sua aceitação pela sociedade não é tão simples assim. De certa forma, o rolezinho é a teatralização e a dramatização de algo que está acontecendo com 50 milhões de jovens entre 15 e 29 anos, dos quais 10 milhões não estudam nem trabalham. O acesso dos jovens de mais baixa renda, principalmente os que trabalham, a certos bens de consumo obedece a uma vontade e uma simbologia que não estão no "manual cultural" de quem habitualmente frequenta os shopping centers. Isso nada tem ver com luta política.

Ritos levantam contradições e divergências, costumam fugir à coerência e ao senso comum. Ao mesmo tempo, são elementos de conscientização da vida social. Aquilo que a sociedade é e deve ser (a ordem vigente e sua manutenção) se legitima naquilo que ela não deve ser (as contradições expostas pelos rituais). O rolezinho não deixa de ser um rito de passagem, revela formas e características da nossa estrutura social que estavam confinadas territorialmente, em verdadeiros guetos culturais. Marca, reivindica e legitima a transição de um estado social para outro. Se não é aceito completamente, deve ser compreendido culturalmente, pois revela certas barreiras do status quo. Como todo rito de passagem, é melhor que seja bizarro (aquilo que não faz sentido) do que violento, que seria a negação expressa fisicamente ao convívio democrático. Talvez essa negação seja mais comum entre os jovens nem-nem da classe média tradicional, com seus "pegas" de automóveis e brigas em boates. Sem falar nos blacks blocs, mas aí já entraríamos em outra seara.

Fonte: Correio Braziliense

Para além da inveja do tênis (Renato Janine ribeiro)



Terminou a brincadeira de injustiça social

Na década de 1990, um sintoma aterrorizou o país: cresciam relatos de meninos que agrediam ou até matavam outros, um pouco mais ricos, para roubar um par de tênis de grife, no que parecia ser o paradigma do crime por motivo fútil. Cunhei a expressão "inveja do tênis", para explicar por que algo tão supérfluo, vaidoso ou vão quanto um item de conforto pode mobilizar paixões que a luta por grandes necessidades da vida nem sempre desperta. Sustentei que as "causas nobres", como a educação, a saúde, a segurança, o transporte, o emprego, não conseguiam gerar o investimento psicológico que um artigo de grife suscita. O caso dos rolezinhos traz de novo à tona esse tema, mas numa chave bem diferente.

Lembremos as manifestações de 2013. Em julho de 2011, Juan Arias, que há anos cobre com competência para o jornal espanhol "El país" o que acontece no Brasil, lamentava: por que investimos tanta energia na Parada Gay - que hoje, em São Paulo, rivaliza com o carnaval carioca em mobilização de libido - e não depositamos sequer uma parcela disso na luta por questões prementes, como poderiam ser as que mencionei acima? Pois as manifestações de maio e junho de 2013 devem ter realizado alguns sonhos do correspondente espanhol. Elas marcaram uma grande novidade em nosso país, com multidões indo às ruas para traduzir suas carências, suas necessidades, em direitos, em exigências, em política. Ponto para o Brasil.

Já os rolezinhos parecem voltar à lógica do tênis. O que os jovens pobres vão fazer nos shoppings é clamar por sua integração na sociedade de consumo. Querem, como todos os de sua idade, desfrutar do prazer. Há um charme nisso, que inclui o uso do verbo "pegar" (que na sua polissemia herda o lugar de outra palavra ambígua, que os mais velhos não entendiam, o "ficar" de dez anos atrás) nas convocações que circulam no Face. Mas algumas grandes mudanças precisam ser apontadas - e celebradas.

Primeira: os rolês não são ações individuais, mas coletivas. A ação coletiva tem mais chances de construir o futuro, de mudar o mundo. Segunda: as convocações claramente repudiam o crime. Os rolês são chamados para serem atos não-violentos.

Recomendo o fascinante filme "O mordomo da Casa Branca" (2013), que mostra décadas de preconceito racial vistos por um mordomo que serve a sucessivos presidentes dos Estados Unidos. Destaco uma cena. Em 1960, vários jovens negros entram numa lanchonete do Sul, sentam-se do lado proibido para os "de cor" e pedem para serem atendidos. Não o são. Acabam espancados por brancos da elite local. O pedido - educadíssimo, sem violência alguma - para "ser atendido" num lugar em que eles não são bem-vindos aproxima o caso norte-americano do brasileiro. Uma diferença é que no Brasil a segregação não é legal - mas mesmo assim existe. Outra é que nossos jovens pobres estão indo aos shoppings para rir, brincar, ocupar o espaço com sua alegria.

Daí, terceira característica: os rolezinhos são atos políticos. Com ou sem consciência disso, os participantes se reúnem - em vez de atuar sozinhos - para exigir direitos. É incrível o poder da união. Longe do que o pensamento mais conservador teme, unir forças não leva ao crime, mas afasta dele. Soluções individuais, para problemas coletivos, são as piores. São elas que levam alguns a roubar, sonegar, fraudar para resolver um problema que não é apenas deles. Já, quando a solução se torna coletiva, pode até haver a opção quadrilha; mas esta é sempre limitada: a união de bandidos não resolve problemas sociais, apenas melhora a vida de parte deles. Quando se ganha escala numa mobilização, a tendência é reivindicar soluções para todos. Não há dúvida de que a escala, como o elefante da cantiga, incomoda muita gente. Mas é esse incômodo que coloca as questões na agenda política.

Tenho plena compreensão do medo que muitos sentem quando veem entrar uma multidão de desconhecidos no shopping. Posso me colocar no lugar deles. Mas o ser humano é dotado de razão. Não pode pensar com base só no medo. A questão não é mais, apenas, a desigualdade social clamorosa, a intensa exclusão dos mais pobres, aquilo que Cristovam Buarque chama há décadas de "apartheid social". Até aí, trata-se de fatos da realidade. A questão é que, desde a democratização de 1985, essa desigualdade foi-se tornando injustificável e intolerável. Amélia, "que achava bonito não ter o que comer" (1942), é hoje apenas um verso do passado. O playboy brasileiro da opereta "La vie parisienne" (1866), ladrão e corrupto no país, homem fino na Europa, não faz mais rir. Pobres, negros, mulheres, indígenas e gays querem a plenitude de direitos, já. Passou o tempo de qualquer discurso que lhes peça paciência. Eles não acreditam mais em promessas para o futuro. Por isso é tão significativo que a bola da vez sejam os rolês. Se há algo que caracteriza o prazer, é sua imediatez. Quer-se prazer já, não daqui a dez anos. A diversão que não rolar hoje, não é a mesma que poderá rolar sábado que vem - menos ainda, quando estiverem casados, empregados, com filhos.

Um mundo acabou. Durante décadas, nos protegemos dele atrás de grades - no prédio ou no shopping, ou as grades simbólicas da escola, do hospital e do carro melhores. Isso não tem mais como durar. A boa nova é que a exigência de que isso mude, seja em junho de 2013, seja em janeiro de 2014, tem-se feito dentro da lei e com nenhuma ou pouquíssima violência. Mas o tempo urge. A brincadeira de injustiça social terminou. Quem quiser continuar jogando esse jogo só vai gerar problemas - para si e para os outros.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

sábado, 18 de janeiro de 2014

A esfinge dos rolezinhos (Luiz Carlos Azedo)



Presidenciáveis prepararam um discurso padrão para o movimento de jovens nos shoppings. Não que tudo seja óbvio. Ao contrário. O problema é que os políticos, ou não sabem exatamente o que dizer, ou simplesmente têm medo de desagradar ao eleitor, ou virar o alvo dos protestos, como nas manifestações de junho

Não confie em alguém com mais de 30 anos. Se ele for um político, redobre os cuidados. O conselho é para os integrantes dos rolezinhos, marcados nos shoppings país afora. Nada é muito sincero no mundo do poder, ainda mais quando os poderosos não sabem o que dizer ou fazer. E aqui todos os presidenciáveis do PT, PSDB e PSB se igualam no discurso “o-direito-de-circulação-tem-de-ser-preservado”, mas a “polícia-deve-agir-caso-exista-risco-de-vandalismo”.

Com as devidas proporções, os rolezinhos se assemelham às manifestações de junho do ano passado em pelo menos dois aspectos. Primeiro, as convocações são feitas pelas redes sociais. Depois, há a incapacidade dos políticos em interpretar o fenômeno. Não é lá muito fácil. Para os integrantes do Planalto, por exemplo, os rolezinhos ainda são vistos, de forma proposital, com distanciamento. A cautela é fácil de explicar.

Nada mais delicado para Dilma Rousseff do que vincular a gestão federal aos rolezinhos, como ocorreu em junho do ano passado nas manifestações. Por mais que parecesse óbvia a necessidade do pronunciamento da presidente na noite de sexta-feira, 21 de junho, tinha gente que alertava sobre riscos. As manifestações daquela época ainda estavam no início e, até então, não se sabia a extensão dos protestos. A turma que defendia a declaração da presidente ganhou. E lá foi Dilma para a televisão.

A primeira frase na época era o reconhecimento da “força da democracia” e o “desejo da juventude” de fazer o “Brasil avançar”. As palavras, apesar de estudadas — “avançar” em vez de “mudar” —, não impediram que a popularidade da presidente despencasse. Há quem considere até hoje que o discurso apenas serviu para levar Dilma para o centro dos protestos. Por mais que os governadores — principalmente o do Rio — tenham sido atingidos pelo turbilhão, ela ficou com o desgaste.

Preconceito
Hoje, escaldada, Dilma prefere o silêncio público. Assim, os ministros Gilberto Carvalho (Secretaria-Geral) e Marta Suplicy (Cultura) foram uma espécie de porta-vozes do Planalto. Enquanto Carvalho disse que os rolezinhos são uma resposta ao preconceito sofrido pelo jovem da periferia e que a repressão apenas colocaria “gasolina no fogo”, Marta defendeu abrir o diálogo com o jovem. Blá-blá-blá. As declarações de oposição de Eduardo Campos (PSB) e de Aécio Neves (PSDB) não foram melhores.

Aécio disse que o rolezinho não é uma questão de segurança, mas um “fenômeno natural”. E continuou: “Esse é um governo que lava as mãos, que coloca sobre o ombro dos estados, principalmente, a responsabilidade total da questão da segurança pública”. Campos, por sua vez, disse: “Não se pode ter um olhar só de polícia, não pode ter preconceito”. Para ele, “se em alguns desses episódios houver depredação, alguma violação de direito de outros, aí passa a ser um problema de segurança”.

Parece que governo e oposição combinaram o discurso. Ao mesmo tempo que exaltam o direito à livre circulação, mostram-se contrários à violência. O óbvio. Os políticos sabem que parte do eleitorado é contra os rolezinhos. E que, caso façam uma defesa apaixonada do movimento, possam se arrepender no futuro. Assim, preferem permanecer distantes. À espera do próximo rolezinho.
Correio Braziliense

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Campanha de limpeza (Marina Silva)



É intolerável a situação que vivemos em anos eleitorais, marcados por uma degradante agressão verbal contra candidatos e lideranças políticas. Não bastassem a indústria dos dossiês, as notinhas maldosas nos jornais e as "reportagens" encomendadas para expor fraquezas reais ou inventadas, temos agora a guerrilha virtual que cria territórios inóspitos na internet. Calúnia, difamação, injúria e ofensas formam uma espécie de enxurrada que arrasta o Brasil para o atraso onde prosperam várias modalidades de protofascismo.

Todos sabemos quem são os responsáveis por essa guerra. Eles estão na direção dos partidos mais poderosos, cujos militantes, geralmente remunerados, seguem sua pauta e comando no ataque aos alvos definidos. E chamam isso de tática e estratégia numa disputa supostamente ideológica entre esquerda e direita.

No final, todos perdem. O Brasil é derrotado. Quando as multidões foram às ruas no ano passado disseram claramente: essa política não nos representa. Na verdade, os que a fazem não representam nem a si mesmos. Não adianta ficarmos dois ou três anos nos tratando com cortesia diante das câmeras e preparando novos ataques para o período eleitoral.

Também sobre isso o Brasil necessita de um acordo, um pacto de não agressão. Críticas e divergências expostas com firmeza e veemência ajudam. Ninguém precisa ficar melindrado, o debate é próprio da democracia. Mas a linguagem chula dos desaforos anônimos ou "fakes" não devem ser estimulados nem acobertados. Assumimos um compromisso assim em 2010 e o levamos a cabo durante toda a campanha, insistindo que era um debate, não um embate. Por isso sei que é possível.

As cenas de violência que vemos nos presídios e nas ruas, o drama de milhões de pessoas nas enchentes, o caos do transporte urbano, tudo isso nos mostra a realidade e a urgência da crise civilizatória e deveria ser suficiente para nos dar um mínimo de consciência. Quem sabe, até um novo sentimento que, como ouvi do psicanalista Ricardo Goldenberg, tenha menos culpa e mais vergonha.

Ainda há tempo para o entendimento. A primeira condição é que os dirigentes assumam a responsabilidade, que de fato têm, sobre a ação de seus companheiros. A segunda é de que a decisão de manter o bom nível seja incondicional, nada de "responder na mesma altura", quer dizer, na mesma baixeza. O foco deve estar nas ideias e propostas.

Lembro de antigas campanhas, com Lula e o PT enfrentando calúnias e preconceitos em boatos, panfletos apócrifos e pichações nos muros. No Acre, pelos idos dos anos 90, criamos uma "campanha de limpeza da campanha" para combater a baixaria. Precisamos de uma assim, no Brasil.

Marina Silva, ex-senadora, foi ministra do Meio Ambiente

Fonte: Site Rede &Folha de S. Paulo

Lulismo ou "qualunquismo"? (Marcus André Melo)

Política de transferência de renda não tem intermediários


Há duas visões rivais sobre a política brasileira na era dos governos petistas. A primeira aponta para um fenômeno supostamente novo - o lulismo - que representaria um realinhamento histórico que teria ocorrido na última década. A denominação lulismo - em lugar de petismo - chama a atenção para o fato de que os votos no PT e no presidente passaram a dissociar-se. Este realinhamento se daria pela conquista dos grotões atrasados pelo PT: o eleitorado petista teria se deslocado definitivamente para as regiões mais pobres - o Nordeste, o Norte - áreas que estiveram por décadas sob controle de setores conservadores. Para isso teria contribuído a ampliação de programas sociais, como o Bolsa Família, e uma estratégia de comunicação nova - por direta e eficaz - que o presidente Lula encarnaria. A visão alternativa é que este realinhamento não teria ocorrido e a "conquista do Nordeste" seria uma mera re-atualização da patologia recorrente da política brasileira: o governismo.

Em livro clássico sobre o clientelismo no "mezzogiorno" italiano, Chubb analisou o "qualunquismo" - o governismo arraigado somado à indiferença e cinismo cívico. Prefiro esse termo para caracterizar a situação brasileira porque o termo governismo tout court pode sugerir alguma forma de identificação política com o governo. "Qualunquismo" - derivado de "qualunque", qualquer um - é uma variante invertida do "hay gobierno soy contra". Mas a ela se conjugam o cinismo, o alheamento frente ao mundo da política.

A versão forte ou maximalista do argumento do lulismo é que finalmente os pobres acordaram de seu entorpecimento histórico. A metanarrativa presente nesta visão é que - permitindo-me recorrer a um termo meio esquecido do léxico político - os pobres passaram a ter "consciência de classe".

Que suporte empírico é mobilizado para sustentar o argumento do lulismo? O primeiro é que ocorreu uma inegável reorganização territorial do voto no Brasil a partir de 2006. O voto petista efetivamente concentrou-se nos Estados mais pobres. Inferir o comportamento individual dos eleitores de dados agregados (neste caso, municípios ou Estados mais pobres) é um dos erros elementares de análise estatística, mas há evidências que os mais pobres de fato votam no PT. Uma variante é que estaria ocorrendo uma polarização de base territorial. Esse argumento ecoa algo da literatura acadêmica sobre realinhamento partidário nos EUA. Só que no Brasil não há nenhum equivalente à clivagem entre o norte e o sul nos EUA em torno da questão racial. Os quatro realinhamentos que essa literatura identifica - desde a fundação do partido democrata por Andrew Jackson até a década de 60 - tiveram ela como vetor. Não há evidências que qualquer fator regional esteja associado ao lulismo, para além de comentários preconceituosos disparados no Facebook. Nesse caso o argumento parece uma ideia fora de lugar.

O argumento do "qualunquismo" tem sido defendido com base em evidências de que o eleitor dos grotões sempre tende a apoiar quem está no governo, mesmo quando não mantém afinidades eletivas com ele. De fato, as pesquisas mostram que nas últimas cinco eleições presidenciais o voto nessas regiões tem sido invariavelmente governista. A lógica por trás do voto "qualunquista" já foi discutida há mais de 50 anos atrás por Victor Nunes Leal em "Coronelismo, enxada e voto". A dependência dos grotões frente ao governo central impelia os moradores dessas áreas a apoiarem o governo. A intensa competição política local era apenas "uma disputa para ver quem iria ter o privilégio de apoiar o governo central". Nesse sentido, o voto petista concentrado no Norte/Nordeste não representou uma "marcha para o Nordeste" mas apenas a chegada do partido ao poder. O privilégio de quem vai apoiar o governo central continuaria sendo disputado por elites atrasadas. A força intuitiva desse argumento vem do fato de que o rol dos que têm o privilégio de apoiar o governo central é assustador: uma mirada para Alagoas e Rondônia, passando pelo Pará e Maranhão, seria suficiente. Quem está na oposição só tem a oferecer ideologia e princípios: por isso o PT, como o MDB antes dele, nasceu urbano e cosmopolita. Mas os testes estatísticos sustentam esse argumento robustamente.

Embora a tese do qualunquismo seja mais persuasiva e esteja firmemente ancorada em evidências, ela é ainda insatisfatória. A conquista dos grotões não é nada mais que um reflexo da consolidação da democracia no Brasil. Quando se inaugura um mercado eleitoral competitivo - como o brasileiro - a tendência no médio e longo prazo é que ocorra um realinhamento de políticas. Essa é a essência do teorema do eleitor mediano - uma espécie de lei da gravidade da ciência política. Quando a renda é fortemente concentrada, a renda do eleitor mediano é significativamente menor do que a renda per capita. Haverá então pressões redistributivas - tanto mais fortes quanto maior o hiato de renda. Isso explica porque todos os principais contendores da disputa presidencial atual apoiam o Bolsa Família ou até prometam elevar seu escopo e valor. A política de transferências sociais é o que os cientistas políticos denominam "valence issue". Sua consensualidade - pelo menos no que se refere à redistribuição moderada de renda - implica que os políticos são avaliados apenas pela maior ou menor competência em garantir que os objetivos da política sejam atingidos. Assim não é o Nordeste, mas a maioria dos brasileiros, que tem baixa renda, que sob a democracia, apoia medidas redistributivas. O que há de novo na política nacional é a "federalização do crédito político" com a política social, o que antes só existia na fixação do salário mínimo. A política de transferência de renda não tem intermediários: o eleitor de baixa renda vota no presidente que redistribui mais e melhor (e no oligarca local que aprova a emenda ao orçamento). Mas o eleitor se defronta com um dilema: se deixar de apoiar seu candidato local que garante benefícios estará dando um tiro no próprio pé. Ele se alinhará ao que tiver mais chances - em geral o incumbente do cargo - qualunque!

Marcus André Melo é professor da UFPE, foi professor visitante da Yale University e do MIT

Fonte: Valor Econômico15/01/14

Etnografia do Rolezinho (Rosana Pinheiro Machado)

Em 2009, eu e minha colega e amiga Lucia Scalco, começamos a estudar o fenômeno dos bondes de marca. Como? A gente reunia a rapaziada, descíamos o morro e íamos juntos dar um rolezinho pelo shopping – o lugar preferido desses jovens da periferia de Porto Alegre. Eles nos mostravam as marcas e lojas preferidas. Eles contavam como faziam de tudo para adquirir esses bens (descrevemos todas as possibilidades em nossos papers). Havia uma agência (no sentido de prazer de Appadurai) impressionante nesse ato de descer até o shopping. Eles não queriam assustar, porque nem imaginavam que discriminação fosse tão grande que eles pudessem assustar. Muito pelo contrário: eles faziam um ritual de se vestir, de usar as melhores marcas e estar digno a transitar pelo shopping. Uma vez um menino disse que usava as melhores roupas e marcas para ir ao shopping para ser visto como gente. Ou seja, a roupa tentava resolver uma profunda tensão da visibilidade de sua existência. Mas noutro canto, os donos da loja se assustavam e cuidavam para ver se eles não roubavam nada. Um funcionário disse à Lucia a mais honesta frase de todas (uma honestidade que corta a alma): “não adianta eles se vestirem com marca e vierem pagar com dinheiro. pobre só usa dinheiro vivo. Eles chegam aqui e a gente na hora vê que é pobre”. Eles, no entanto, acreditavam que eram os mais adorados e empoderados clientes das lojas. Um funcionário da Nike uma vez declarou para a pesquisa: “nós nos envergonhamos desse fenômeno de apropriação da nossa marca por esses marginais”. Mas eles nos diziam: “as marcas deveriam nos pagar para fazer propaganda, porque nos as amamos. Sem marca, você é um lixo”. Quando eu mostrei o Funk dos Bens Materiais em aula, uma aluna de camadas altas comentou: “quando a gente vê a figura toda montada marca estampada, já vê que é negão favelado”. Infelizmente não me surpreendeu o fato de toda a aula ter caído na risada. Esse mesmo tipo de pessoa é aquela que ainda diz que é um absurdo comprar televisão, “pobre deveria alimentar a prole” e ponto final. No programa Papai Noel dos Correios, que eu e Lúcia analisamos, uma menina  desafiava o seu destino: “kiido papai noel: eu me comportei, eu passei de ano, eu cuido da minha vó, meu pai sumiu de casa. Eu só quero uma calça da Adidas!”. Mas vocês podem concluir que cartas como essas são relegadas por meio de uma moralidade escrota: todos os pedidos de meninas e meninos de roupas de marca eram vistos como um desaforo. Que absurdo! Afinal, pobre deve pedir material escolar e bicicleta!
Eu tenho ficado quieta nesse caso do rolezinho porque este talvez seja o assunto que mais seja caro à minha sensibilidade acadêmica e política. Esse tema é justamente o que me faz me afastar de uma certa antropologia vulgar com suas interpretações do tipo “que lindo essas pessoas se apropriam das marcas e dão novos significados e agência e bla blá blá prá boi dormir”. Mas também é este tema que me aproxima ao que a antropologia tem de melhor: ouvir as pessoas. Não há uma grande diferença do rolezinho organizado e ritualizado das idas aos shoppings mais ordinárias (ainda que a ida ao shopping pelas classes populares nunca tenha sido um ato ordinário), eu vejo uma continuidade que culmina num fenômeno político que nos revela o óbvio: a segregação de classes brasileiras  que grita e sangra. O ato de ir ao shopping é um ato político: porque esses jovens estão se apropriando de coisas e espaços que a sociedade lhes nega dia a dia. Quando eu vejo aquele medo das camadas medias, lembro daquelas pessoas que se referiram “aos negões favelados”. E há certa ironia nisso. Há contestação política nesse evento, mas também há camadas muito mais profundas por trás disso.
Eu estou acompanhando os rolezinhos e sinto certo prazer em ver aquela apropriação. Mas entre apropriação e resistência há uma abismo significativo. Adorar os símbolos de poder – no caso, as marcas – dificilmente remete à ideia de resistência que tanta gente procura encontrar nesse ato. O tema é complexo não apenas porque desvela a segregação de classe brasileira, mas porque descortina a tensão da desigualdade entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, entre o Norte e o Sul. E enquanto esses símbolos globais forem venerados entre os mais fracos, a liberdade nunca será plena e a pior das dependências será eterna: a ideológica. Por isso, para entender a relação que as periferias globais tem com as marcas e os shoppings, é preciso voltar para os estudos colonialistas e pós-colonialistas. A apropriação de espaços símbolos hegemônicos, desde Mitchell até Newell, passando por Bhabha, Rouch e Ferguson, nos mostra uma permanente tensão na apropriação que tenta resolver a brutal violência que esta por trás desse ato. O meu lado otimista, não nega o que esses jovens nos disseram: do prazer que sentem em se vestir bem e circular pelo shopping para SER VISTO. Meu lado pessimista, tende a concordar com Ferguson de que há menos subversão política e mais um apelo desesperador para pertencer à ordem global. É preciso entender o rolezinho dentro de uma perceptiva do Global South de séculos de violência praticada na tentativa de produzir corpos padronizados, desejáveis e disciplinados.
O pobre no shopping repete a mimeses de Bhabha. A classe media disciplinada vê os jovens vestindo as marcas do mercado hegemônico para qual ela serve. A classe media vê os sujeitos vestindo as mesmas marcas que ela veste (ou ainda mais caras), mas não se reconhece nos jovens cujos corpos parecem precisar ser domados. A classe media não se reconhece no Outro e sente um distúrbio profundo e perturbador por isso. Não adianta não gostar de ver a periferia no shopping. Se há poesia da política do rolezinho é que ela é um ato fruto da violência estrutural (aquela que é fruto da negação dos direitos humanos e fundamentais): ela bate e volta. Toda essa violência cotidiana produzida em deboches e recusa do Outro e, claro também por meio de cacetes da polícia, voltará a assombrar quando menos se esperar.
.oOo.
Rosana Pinheiro Machado é cientista social e antropóloga. Professora de Antropologia do Desenvolvimento da Universidade de Oxford. Escreve sobre a China, o Brasil, os BRICS e os países emergentes e em desenvolvimento em geral.

Roteiros da sucessão (Antonio Carlos de Medeiros)

Os detentores de maior capital simbólico não estão no palco, mas nos bastidores: Lula, Marina e Fernando Henrique

Os roteiros da sucessão presidencial estão sendo elaborados desde já. Diante das mudanças recentes de circunstâncias, a economia não deverá ocupar sozinha o foco dos roteiros. As campanhas e as narrativas vão ter que operar também no plano simbólico da política: poder simbólico de fazer ver e fazer crer. Estão e estarão em jogo visões de mundo. Produzindo novos discursos políticos. Ao fim e ao cabo, o teor do novo discurso que vai emergir dependerá de lutas simbólicas pelo poder simbólico.

Na economia, a disputa pelas melhores propostas para conservar e ampliar a sensação de bem-estar dos brasileiros e para reconquistar a confiança do empresariado e dos investidores estrangeiros, contendo a piora de percepção do Brasil. No discurso político, a luta simbólica por novas visões de mundo e a disputa pelo poder simbólico de fazer ver e fazer crer para transformar a visão de mundo e a ação sobre o mundo.

Trata-se de ter e conquistar capital simbólico: prestígio acumulado pela representação legítima das aspirações predominantes da sociedade. Os detentores de maior capital simbólico não estão no palco, mas nos bastidores: Lula, Marina e Fernando Henrique. Poderão eles “transferir” capital simbólico para os seus respectivos candidatos?

Para além das propostas racionais no campo da economia, a disputa pelas visões de mundo deverá trazer emoções e subjetividades. Falar para as mentes, mas também para as almas e para o imaginário social dos brasileiros. Reconstituir as narrativas e as mensagens. E demonstrar capacidade de convencimento, ter atitudes críveis, comunicar coragem de mudar, mostrar capacidade de concertação e apontar caminhos para a melhoria da governança do Brasil.

O país chega ao fim de um ciclo de estabilidade e inclusão. Agora é tempo histórico de construir nova Agenda. Qual vai ser? O ano de 2015 já está contratado: ajuste fiscal, qualidade dos serviços públicos, direção do desenvolvimento. Tudo isto resulta em geração de conflitos distributivos, em atingir fortes interesses estabelecidos. Exige muita coragem e, principalmente, muita legitimidade, vale dizer, muito capital simbólico e muito capital social.

Cuidar do pão com manteiga e, ao mesmo tempo, dos sonhos e projetos de vida e de país. No processo político-eleitoral, este ano; e depois, em 2015, na inauguração de novo governo. Novo governo que vai precisar produzir condições de concertação, condições de harmonização de grandes mudanças, muitas delas a serem pactuadas no Congresso, no Executivo, no Pacto Federativo e nos espaços de representação corporativa dos trabalhadores e dos empresários brasileiros.

Novo governo, também, que vai ter o desafio de repactuar e reorganizar as condições objetivas de governança, para possibilitar a melhoria da capacidade de entrega do governo e superar os sérios entraves e “gargalos” do processo decisório e do arcabouço institucional — inclusive a proliferação de órgãos de controle e fiscalização que não conversam entre si e que produzem um cipoal de mecanismos concorrentes e paralelos de controle. Para controlar o Leviatã, produziu-se no Brasil um novo Leviatã.

Os roteiros da sucessão presidencial precisam fazer o Brasil recuperar a confiança em si mesmo. Esta é a luta simbólica que está para ser feita, agora e depois.

Antônio Carlos de Medeiros é cientista político

Fonte: O Globo

Rolezinhos (Marco Aurélio Nogueira)

O agito começou como uma farra de adolescentes, a maioria das periferias urbanas. Fazer um rolezinho significava para eles dar um passeio na meca da modernidade, os shoppings centers, cantados em veros e prosa como o local em que se pode usufruir o que de melhor oferece o mundo moderno: coisas para comprar, comer e beber, espaços para ver e ser visto. Excluídos financeiramente das possibilidades ampliadas de consumo, e sem equipamentos culturais disponíveis para o lazer, aos jovens restaria ir aos shoppings para mostrar a cara, como se quisessem gritar “existimos, prestem atenção, vejam quem somos”.
Dar um rolê significava, em primeira instância, se divertir, ficar com os meninos e as meninas, conhecer outras pessoas, quem sabe descolar algum produto irado. Em segunda instância, mais profunda, significava postular uma identidade e um reconhecimento. Mostrar que o sistema não agrada, não preenche a vida, não dá significado existencial a ninguém.
A polícia caiu de pau, reprimiu. Aliou-se com os gerentes dos shoppings, proibiu o acesso, fez triagem ostensiva baseada na avaliação de fisionomias. Começaram a fechar os shoppings ao anúncio de novos rolês. Puseram lenha na fogueira. Não tentaram negociar. Os políticos sumiram. Os partidos silenciaram. A onda cresceu. E as redes sociais bombando com novos planos e convocações.
Com senso de oportunidade, e uma boa dose de oportunismo, alguns movimentos sociais começaram a pegar carona nos rolezinhos, não para engrossá-los ou impulsioná-los ou defendê-los, mas para se beneficiar deles para avançar suas reivindicações. De repente, os que lutam por moradia (os que agitam o movimento dos sem-teto) passaram a querer protagonizar a onda, instrumentalizá-la, fazer dela uma correia de transmissão. Quiseram converter o rolezinho social em um "rolezão popular". Melaram a farra da garotada.
É hora, pois, de começar a tratar o fenômeno com mais cuidado e sensibilidade. Seria péssimo se também ele entrasse naquela dinâmica do contra-e-a-favor, que empobrece e distorce mais que esclarece.
Olhares míopes existem por toda parte, e tudo depende do que se considera importante ou não. Generalizações são sempre míopes, mesmo quando bem-intencionadas e respaldadas em experiencias vividas. O difícil sempre é captar o todo, ligar os fios das várias ações com a estrutura da vida. É o mais difícil e o mais fundamental. Sem isso, fica-se na superfície, na impressão, na adjetivação, que tanto pode servir para deificar quanto para demonizar.
Tem gente que solta foguetes só de pensar naquela pequena massa de jovens (majoritariamente das periferias) que põem em xeque os templos de consumo e se esforçam para mostrar sua voz e sua cara. Tais pessoas aplaudem e vislumbram ali o início da redenção social ou o ataque frontal ao sistema, a derradeira pá de cal no capitalismo. Outros, também para marcar posição, vão na direção oposta: retiram qualquer dignidade dos rolezinhos e os apresentam como puros e simples atos de bandidagem e vandalismo, acrescentando coisas do tipo "quem conhece as periferias a partir de dentro sabe que lá os jovens são trabalhadores e não estão a fim de dar rolê por aí". Pensam que a criminalização resolveria o problema, se é que problema existe. Foram ajudados pelos movimentos que pegaram carona e desvirtuaram algo que prometia e poderia se converter numa interessante manifestação cultural, político-existencial.
Não é preciso "ir à periferia" para analisar movimentos que com elas se relacionam ou que nascem nelas. Conhecer por dentro é bom, e os antropólogos são figuras-chave nessa operação, juntamente com jornalistas. Mas não há nenhuma garantia de que aquele que está com os pés no chão das periferias consiga, só por causa disso, compreender melhor o que lá se passa. Erros de análise podem ser cometidos independentemente do lugar de onde falam os analistas.
É por coisas assim que as ciências sociais são tão preciosas. Elas nos ajudam a olhar o mundo com rigor e atenção. Que é precisamente o que se deveria estar a fazer.

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Ameaça endógena (Raymundo costa)



Ataque a Campos partiu de grupo próximo a Lula

O PT é um partido em dúvida sobre a melhor estratégia eleitoral a ser adotada em relação ao PSB, parceiro de outras tantas disputas presidenciais. De um lado estão aqueles focados no projeto de reeleição da presidente Dilma Rousseff; de outro, os que preferem matar no nascedouro qualquer ameaça à hegemonia conquistada pelo Partido dos Trabalhadores, nos últimos 20 anos, no campo da esquerda.

Aqueles focados na reeleição da presidente Dilma avaliam que a disputa de 2014 será tão ou mais difícil que as últimas eleições vencidas pelo PT. À exceção de 2002, em todas o Partido dos Trabalhadores esteve prestes a vencer no primeiro turno, mas por um motivo ou outro, como os aloprados em 2006, teve que se submeter ao segundo escrutínio, do qual saiu vitorioso até com folga.

Depois do tombo de junho de 2013, Dilma e seu governo recuperaram popularidade e aprovação, mas os índices continuaram distantes daqueles aferidos no primeiro semestre do ano passado. Em março, a aprovação da governante acumulou 65%, segundo pesquisa de opinião Datafolha. No momento, a presidente da República namora com a reeleição no primeiro, mas as análises do PT não descartam a hipótese da segunda rodada.

Isso tudo na atual configuração da disputa, que tem Aécio Neves e a dupla Eduardo Campos e Marina Silva como eventuais candidatos do PSDB e do PSB-Rede, respectivamente. Nada sugere que esse quadro permanecerá estável. Além de um candidato do PSOL, provavelmente o senador Randolfe Rodrigues (AP), há a incógnita chamada Joaquim Barbosa, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), que diz não ser candidato mas fala e age como se fosse. O pastor Everaldo Pereira ameaça sair pelo PSC.

PSOL e outros nanicos podem levar pontos que seriam bem-vindos a um candidato atrás da vitória no primeiro turno. Joaquim Barbosa seria uma mudança com força gravitacional suficiente para alterar o equilíbrio da eleição (as especulações mais recentes sobre o presidente do Supremo dizem que ele pode sim ser candidato, mas para disputar uma cadeira ao Senado pelo Rio de Janeiro).

Nesse contexto, uma ala do PT acha prudente preservar as relações com PSB de Eduardo Campos, um aliado histórico do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva: o PT pode precisar dele, se a eleição de outubro for para o segundo turno com Dilma e o candidato da oposição - o nome esperado é Aécio - na cédula eletrônica. Nessa turma estão ministros da presidente Dilma e integrantes da DS, uma tendência do PT hoje abrigada no grupo denominado "Mensagem".

O principal ataque do PT a Eduardo Campos foi desferido pela tendência hoje denominada "Construindo um Novo Brasil", na qual se abriga a antiga "Articulação", o chamado campo majoritário, grupo que sempre deu as cartas no partido. É da CNB a impressão digital do artigo publicado no perfil do PT em uma rede social que ameaça uma eventual reconciliação entre as siglas desavindas.

"Ao descartar a aliança com o PT e vender a alma à oposição em troca de uma probabilidade distante - a de ser presidente da República -, Campos rifou não apenas sua credibilidade política, mas se mostrou, antes de tudo, um tolo".

A decisão sobre a publicação do artigo teve origem na coordenação da tendência Construindo um Novo Brasil (CNB), entre pessoas próximas do ex-presidente Lula desde os tempos de sindicalismo. A gota d'água foi paroquial: a decisão de Campos de chamar o PSDB de Pernambuco para o governo estadual, ocupando espaços que antes eram do PT.

O artigo pegou a direção nacional do PT em férias. Realmente não era autorizado e foi considerado um "tiro no pé". Mas ninguém na cúpula tomou a iniciativa de retirá-lo do ar ou pensou em pedir desculpas a Eduardo Campos, como praticamente exigiu o PSB, em nota oficial.

O problema dessa ala do PT com o governador nem é sua associação com a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva, ambos dissidentes dos rumos que o governo tomou com a presidente Dilma. A questão é a associação do governador de Pernambuco com a oposição, ou seja o senador Aécio Neves, provável candidato do PSDB, o partido mais bem estruturado para enfrentar o PT nas eleições de outubro.

As expectativas em relação às candidaturas de Aécio e Campos eram de "canibalização". Isso pode ocorrer mais adiante, parece até mesmo inevitável. Mas pelo menos por enquanto, o que os dois têm demonstrado é uma surpreendente capacidade de se entender contra um adversário comum: o governo da presidente Dilma. A sinalização de Campos é na direção da oposição. Essa proximidade inibe quem aposta na manutenção de pontes entre o PT e o PSB.

A preocupação do PT e de seu núcleo mais duro com o avanço do PSB tem sua lógica, trata-se de uma ameaça endógena: no campo da "esquerda", os pessebistas foram os únicos a demonstrar força para avançar eleitoralmente e estabelecer concorrência direta com o PT. Em 2010 foi quem mais elegeu governadores, entre os partidos da coalizão governista. E Campos mantém o discurso social de quem foi governo com Lula e a maleabilidade de quem é capaz de conversar e se entender com a oposição.

O ex-governador José Serra foi enxotado da disputa interna pela indicação do PSDB à Presidência sob o pretexto de que o nome de Aécio Neves precisava ser lançado em janeiro, época em que PSB e Rede também confirmariam Eduardo Campos e Marina Silva. O argumento esgrimido até por aliados de Serra no PSDB era o de que Aécio não poderia perder tempo em relação a Campos e à presidente Dilma Roussef, em campanha há quase um ano. Até o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso engrossou o coro de que acusavam de atrapalhar a evolução de Aécio Neves na avenida. Serra resolveu sair do caminho e postar, em seu perfil no Facebook, uma mensagem dizendo que o PSDB deveria lançar o nome de Aécio Neves imediatamente. Pois bem, agora a direção tucana (Aécio é o presidente do partido) fala em fazer o lançamento em março. Como Serra dizia que estava combinado entre os dois. Por essas e outras é que há quem ainda duvide da candidatura Aécio.

Fonte: Valor Econômico

domingo, 12 de janeiro de 2014

A luz e as trevas na política (Gaudêncio Torquato)




"No princípio, criou Deus os céus e a terra. A terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo, mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas. Disse Deus: haja luz. E houve luz. Viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas" (Gênesis 1).

No princípio, em 10 de fevereiro de 1980, criou Luiz Inácio Lula da Silva (com a ajuda de amigos sindicalistas, intelectuais de esquerda e fatias da Igreja Católica ligadas à Teologia da Libertação) o Partido dos Trabalhadores (PT), sob a promessa de implantar na seara política, disforme e vazia, a semente do socialismo democrático, desenvolver um empreendimento trabalhista livre da tutela do Estado e resgatar a esperança do povo na representação política. Disseram eles: haja luz. Transformaram o PT em luz. Viram que a luz era boa para iluminar a sigla; e fizeram a separação entre a luz e as trevas. Para brilhar no firmamento escolheram como símbolo do partido a bandeira vermelha com uma estrela branca ao centro e o 13 como código eleitoral.

No princípio, em 25 de junho de 1988, criou um grupo de dissidentes do PMDB (entre os quais Franco Montoro, Fernando Henrique Cardoso, Mário Covas, José Serra e José Richa) o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), sob a intenção de semear o terreno árido da política com a viçosa semente do socialismo democrático e desenvolver um projeto "livre das benesses oficiais, mas perto do pulsar das ruas para fazer germinar novamente a esperança". Proclamaram: haja luz. Transformaram o PSDB em luz. Viram que a luz era boa para alumiar os caminhos do PSDB; e decidiram separar a luz das trevas. Para atrair atenção desenharam um tucano azul e amarelo como símbolo da sigla e 15 como código eleitoral.

Pois bem, esses dois entes, cuja criação aponta para semelhanças, em especial no que se refere à assepsia de condutas políticas, ao viés socialista democrático e à inovação de costumes, passaram anos e anos praticando o jogo maniqueísta, acirrando ânimos, radicalizando posições, multiplicando agressões e mobilizando alas e exércitos de filiados. Nunca se viu na contemporaneidade discurso tão agressivo quanto o que se lê e se ouve em diferentes foros de debate, a partir das próprias redes sociais. Reparte-se o território entre luz e trevas, revezando-se partidários do PT e do PSDB, principalmente, na atividade missionária de se proclamarem, ambos, defensores do bem contra o mal. A expressão maniqueísta toma corpo na estruturação de pares antagônicos do tipo reacionário/progressista, moderno/conservador, esquerda/direita, oprimido/opressor...

O dualismo verbal tem invadido, nos últimos tempos, até o campo das letras. Obras envolvendo partidos e governos, produzidas por jornalistas e protagonistas que viveram as histórias, são consideradas "detritos de lixo" ou "mentiras deslavadas" por uns e outros, petistas, tucanos, adjacentes ou simpatizantes dos dois partidos. Quem é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo? Ah, é dinossauro. Quem é a favor de cotas nas universidades e na administração pública? Esse, sim, é politicamente correto. Os contrários entram no vagão do retrocesso. E assim por diante.

É compreensível a propagação da luta de heróis contra bandidos, na esteira da concepção da eterna luta do bem contra o mal, plasmada pelo maniqueísmo, religião fundada no século 3.º da era cristã. O mito sempre se fez presente na moldura civilizatória, ganhando relevo na atualidade graças à profusão de meios - filmes, seriados de TV, histórias em quadrinhos, videogames, desenhos infantis, etc. Puxar, porém, tal acervo para a esfera da política, principalmente num país que exibe 32 siglas partidárias em funcionamento, é uma incongruência.

Pior é ver o engajamento partidário de jornalistas. Sua missão é informar, interpretar e emitir juízos de valor sobre fatos socialmente significativos. Servir de bastião de partidos, em evidente luta partidária, é transgredir a missão.

É inimaginável dividir o País em duas bandas, "nós e eles". Por que isso ocorre numa nação onde se consagram os valores da pluralidade, do debate, das liberdades? Primeiro, a recorrente pregação do PT, mesmo sob o signo do mensalão, de que é o partido da ética. Não admite erros. Ora, até as religiões reconhecem desvios. Segundo, o acirramento da competição política. Os 20 anos de poder tucano no Estado mais poderoso do País animam o PT a enxergar a possibilidade de realizar o "sonho dos sonhos do comandante Lula": governar São Paulo. E 12 anos de poder petista no comando da Nação incentivam tucanos a retomar o controle perdido para o PT.

Ademais, as visões particularistas desses entes consideram outros protagonistas como massa de manobra, secundários, mesmo que concorram à Presidência da República. Basta ler que o governador Eduardo Campos (PSB), até então considerado amigo leal do presidente Lula, acaba de levar a pecha de tolo, traidor, sem compostura política, atributos expressos no site do PT.

A paisagem social é um desenho multiforme e policromático. Um animus animandi impregna setores, núcleos e categorias profissionais. É insustentável a tese de que um partido simboliza a luz e outro, as trevas. Até porque os partidos, a começar de PT e PSDB, padecem sob uma enxurrada de denúncias. Ou será que intérpretes das agremiações não conseguem entender o grito das ruas? Enjaular os atores políticos entre as grades de errados e certos é enxergar de maneira bitolada a realidade nacional. Partidos e líderes precisam descer do pedestal da arrogância e reconhecer erros e acertos. Sem tirar o mérito de ações, programas, obras de quem quer que seja. Se uns e outros forem injustiçados pela caneta da infâmia, recorram ao altar da Justiça.

Não há entre nós, infelizmente, nenhum São Jorge partidário lutando contra o dragão da maldade. Quem assim se fizer, cairá do cavalo.

Gaudêncio Torquato, jornalista, professor titular da USP

Fonte: O Estado de S. Paulo