quinta-feira, 27 de junho de 2013

"A disputa política está nas ruas” (Rudá Ricci/entrevista)







“Trata-se de uma onda juvenil, de classe média”, que forma uma força “irresistível que carrega de tudo junto. Algo como um carnaval político e acredito que esta é a melhor maneira de analisarmos o que ocorre”, diz Rudá Ricci à IHU On-Line, ao comentar as manifestações que tomaram as ruas brasileiras.
De acordo com ele, a tensão entre os manifestantes e a polícia é acentuada porque as "polícias não estão acostumadas a este tipo de conflito de rua, de natureza democrática. Enfrentam o tráfico organizado e situações onde está nítido, para eles, onde está o divisor de águas de conduta moral. Alguns, por convicção ideológica, acreditam que se trata de baderna. Mas não duvido que tenham uma ponta de dúvida ao ver aquela massa de dezenas de milhares de pessoas que avançam pelas ruas, incluindo mães que seguram as mãos de seus filhos pequenos".
Ricci também comenta o plebiscito proposto pelo governo e afirma que "é a maneira mais inteligente de a energia que está nas ruas efetivamente se expressar e orientar a reforma política”. E dispara: "A questão, agora, é de construção de uma engenharia política adequada. Está em questão a composição e escolha dos constituintes. Teremos candidatos avulsos, não filiados a partidos?"
Confira a entrevista.
Que motivos atribui às manifestações que estão acontecendo em todo o país, e por quais razões as manifestações mais expressivas estão acontecendo em Belo Horizonte?


Rudá Ricci – Trata-se de uma onda juvenil, de classe média. Como toda onda, forma-se uma força irresistível que carrega de tudo junto. Algo como um carnaval  político e acredito que esta é a melhor maneira de analisarmos o que ocorre. Começou com a articulação do Movimento pelo Passe Livre – MPL que surgiu em 2005, em Porto Alegre, durante o Fórum Social Mundial – FSM. Este ano, já haviam realizado várias manifestações em capitais. O estopim de tudo foi a manifestação de São Paulo. A violência da PM indignou a todos e já no sábado era visível pelas redes sociais que a onda emocional se alastrava pelo país, principalmente nas regiões onde há maior nível de instrução: centro-sul do país e litoral nordestino. No início da semana seguinte, na manifestação de São Paulo, a situação já era outra, e o MPL perdeu o controle e liderança. Na quarta, teve início a disputa de pautas.
Partidos
Anonymous Brasil lançou uma pauta de cinco pontos, relativamente conservadora (ao menos os cinco pontos), e vários comitês de crítica aos gastos realizados para organização da Copa do Mundo lançaram as suas. No dia seguinte, foi a vez dos partidos. Aí veio o desastre, revelando que os maiores partidos do Brasil estão absolutamente desconectados das ruas. O presidente nacional do PT lançou uma “onda vermelha” (quando os líderes das mobilizações sugeriam branco, verde e amarelo) e colocou em risco a integridade dos militantes. Até hoje, Rui Falcãodeve desculpas aos militantes sinceros e abnegados de seu partido. O PT tinha a obrigação de estar nas ruas, mas não disputando com os manifestantes.
Depois, veio o PPS com sua propaganda gratuita, justamente quando explodia, na quinta à noite, manifestações muito violentas em Brasília e no Rio de Janeiro. Uma falta de sensibilidade e timing político revelador. O PSDBoscilou e até agora tenta ajustar o tom, já que a rua nunca foi seu forte. A onda seguinte foi promovida pela presidenteDilma, quando lança seus cinco pactos. O ponto mais importante foi o do plebiscito e reforma política. Saiu das cordas e foi para o centro do ringue. Todas as forças políticas, partidos e sociedade civil, estão se debruçando até agora para dizer o que pensam desta pauta. Até parte da imprensa esqueceu seu papel e entrou neste jogo como militante. Agora é saber como fazer a ponte entre a rua e a negociação da mudança, sem desmobilizar os manifestantes, numa ponte entre a democracia direta e a representativa.
Talvez, seja o momento do que nós, sociólogos, denominamos de “representação delegada”, aquele representante que não tem autonomia para mudar o que a assembleia que o elegeu definiu.
Como entender a violência nessas manifestações de BH? Quais são os grupos envolvidos nesses conflitos?
Rudá Ricci – Temos dois focos muito nítidos e já identificados. O primeiro, um grupo de anarquistas alimentados pela teoria da “ação direta”. Como o nome já sugere, trata-se de forçar a mudança sem os recursos indiretos (judiciário ou parlamento). Há uma vertente não violenta e outra, violenta, orientada para desestabilizar as instituições e enfrentar a lógica política e econômica dominante. O outro segmento são setores da inteligência policial. Há vários depoimentos de professores universitários e médicos que acusam estas ingerências que objetivavam provocar situações de conflito nas manifestações do último sábado. Estão disponíveis na internet, inclusive no meu blog.
Como essas manifestações “abalam” a estrutura interna da Polícia Militar?
Rudá Ricci – Não abalam, mas criam muita tensão e sentimento de orfandade entre os praças e todos os suboficiais. Algo que não é novo na história das forças de segurança pública do nosso país. No sábado passado, a tensão foi muito forte porque o Alto Comando da PM orientava para o não confronto.
Ocorre que nossas polícias não estão acostumadas a este tipo de conflito de rua, de natureza democrática. Enfrentam o tráfico organizado e situações onde está nítido, para eles, onde está o divisor de águas de conduta moral. Alguns, por convicção ideológica, acreditam que se trata de baderna. Mas não duvido que tenham uma ponta de dúvida ao ver aquela massa de dezenas de milhares de pessoas que avançam pelas ruas, incluindo mães que seguram as mãos de seus filhos pequenos.
O que seria mais correto é evitarmos o contato direto. Não há motivo algum para tentar romper a linha divisória estabelecida, mesmo que seja uma afronta à soberania nacional. A demonstração de força já foi dada. O recuo de governantes e parlamentares é nítido.
Agora é necessário ter inteligência política e saber alterar as estruturas de representação e decisão políticas. Se assegurarmos esta mudança, estes limites impostos pela FIFA nunca mais ocorrerão. Caso contrário, ficam as demonstrações infantis que se revelarão efêmeras.
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Num primeiro momento após se pronunciar sobre as manifestações, o governo propôs uma Assembleia Constituinte, mas depois desistiu e sugeriu um plebiscito com perguntas diretas sobre reforma política. Como vê essa mudança de propostas?
Rudá Ricci – Oficialmente, o governo não desistiu. Trata-se de uma leitura de alguns órgãos de imprensa. Deverá até desistir, mas isto é interpretação até o momento. Nós, da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma Política desejamos o plebiscito porque é a maneira mais inteligente de a energia que está nas ruas efetivamente se expressar e orientar a reforma política. Contudo, a constituinte exclusiva, além de não ser uma certeza jurídica, pode ser uma armadilha para que a velha estrutura da política nacional se refaça, como ocorreu no momento seguinte ao impeachment do Collor. A questão, agora, é de construção de uma engenharia política adequada. Está em questão a composição e escolha dos constituintes. Teremos candidatos avulsos, não filiados a partidos? Também se discute se o processo seria o plebiscito, a montagem do colegiado de elaboração da reforma política e, depois, um referendum. O fato é que a leitura institucionalista, que muitas vezes abomina as ruas, quer dar poderes ao atual Congresso Nacional para conduzir a reforma. Além deste Congresso ter refutado, na prática, a reforma política, sua legitimidade está sendo questionada nas ruas. O que os institucionalistas não compreendem é que podem estar ateando fogo na gasolina.
Que avaliação faz do pronunciamento da presidente na última sexta-feira? Quais foram os pontos altos e baixos do discurso?
Rudá Ricci – O ponto fraco foi o primeiro item. O que significa, afinal, equilíbrio fiscal. O Fórum Brasil do Orçamentoquestiona a base do que se denomina de responsabilidade fiscal que foi construída a partir do objetivo de pagamento da dívida externa. Algo que o Brasil não conseguiu reduzir efetivamente. Os cálculos da Auditoria Cidadã da Dívidasão muito nítidos a este respeito. O FBO lançou, anos atrás, a proposta de Lei de Responsabilidade Fiscal e Socialque redefine os princípios da responsabilidade fiscal. A proposta tramita na Câmara Federal e sugere a definição de “mínimos sociais” no ciclo orçamentário, além do monitoramento da sociedade civil sobre sua observação, sob pena do governante (nas três esferas do poder Executivo) ser responsabilizado.
O ponto forte foi a proposta de plebiscito e constituinte para a reforma política, a despeito da sua validade jurídica. A presidente voltou ao centro do ringue, justamente num momento em que todos governantes pareciam paralisados. Agora, todos discutimos esta pauta, numa evidente retomada de protagonismo do governo federal. Trata-se de interpretar o jogo político, não as tecnicalidades jurídicas. Não podemos inverter esta leitura. É possível corrigir erros técnicos, desde que tenhamos clara a estratégia e os objetivos centrais que unem os brasileiros.
Em que medida essas manifestações são também uma reação à gestão do PT no governo?
Rudá Ricci – É uma reação a todos os governos e partidos, o que inclui o PT. No caso do PT, o governo Lula cometeu dois erros políticos. Primeiro, retirou os canais sociais por onde as demandas das ruas se organizavam e eram transformadas em pautas. Estou citando ONGs, pastorais sociais, sindicatos, entidades de representação e mobilização social. Todas ingressaram na estrutura de Estado ou passaram a terceirizar serviços públicos através de convênios. Na prática, aquele canal por onde a população tinha sua insatisfação acolhida foi interditado. O segundo erro foi abdicar do papel histórico dos governos de esquerda, que é sua ação pedagógica, o confronto com valores conservadores. Veja o caso do governo Hollande, que não é marcado por uma identidade absoluta com um projeto de esquerda. Hollande enfrenta o tema do casamento homoafetivo. Mesmo enfrentando a ira de segmentos sociais, sabe que é seu papel político abrir esta reflexão e garantir direitos civis. Lula não enfrentou nenhuma agenda polêmica porque decidiu estabelecer a conciliação de interesses em sua gestão.
Dilma Rousseff insinuou que seria mais engajada, mas foi recuando ou reduzindo estas agendas como prioridades de governo. Este vácuo abriu uma enorme lacuna entre o ideário petista e o que ocorria, efetivamente, nas ruas. Há sinais claros de avanço de valores conservadores, até mesmo fundamentalistas, entre camadas populares, grande parte que teve sua condição de renda e consumo catapultadas nos últimos dez anos. Neste momento, as ruas, do ponto de vista sociológico, exigem a reconstrução destes canais de expressão social na política. E, do ponto de vista do PT, exigem que o partido se reapresente ao cotidiano dos brasileiros. O PT está colhendo os frutos de sua burocratização acelerada. Não é só a esquerda que perde com esta guinada, a própria democracia brasileira perde. É isto que as ruas nos revelam.
Como o senhor avalia a reação do Estado brasileiro diante de tais manifestações?
Rudá Ricci – Ele ainda tenta organizar a mudança de agenda. Mas a grande questão é que esta mudança altera os acordos internos com aliados e até mesmo a estrutura de comando político, que tem na figura dos deputados federais o centro da rede de relações que une agências estatais aos municípios. Os convênios estabelecidos entre prefeituras e ministérios ou bancos federais fez dos municípios uma tábula rasa, onde encontramos os mesmos programas federais do Oiapoque ao Chuí. Esta lógica está em questão, ainda que indiretamente, pelas ruas.
Como avalia o discurso presente nessas manifestações? Pode haver uma mudança política no país e no mundo de modo geral diante da crítica acerca dos partidos e da estrutura política?
Rudá Ricci – Acredito que as ondas de manifestações sociais de massa do século XXI estão dando seus recados. Os partidos revelam exaustão como estruturas de representação e não estão inseridos no cotidiano dos cidadãos. São estruturas do século XIX, afinal. Fico surpreso com o tom fatalista das vozes mais conservadoras, quase religiosa, dos que afirmam que sem partidos cairíamos no fascismo ou anarquismo. Não está em questão a necessidade de mediação social, de representação, mas se a forma partidária não seria anacrônica. O que vimos na Primavera Árabe e, agora, no Brasil, é uma forma de convocação e mobilização muito mais poderosa que as formas clássicas (ou modernas) de organização política. Aliás, não só de convocação e mobilização, mas também de vazão de demandas as mais variadas. Agora saberemos se são, também, capazes de agregar demandas e formular agendas nacionais. Mas a estrutura de rede (“structural holes”) parece ser mais eficiente e adequada à fragmentação social deste século. O certo é que vivemos uma transição. O que obriga a um olhar atento sobre tendências e possibilidades abertas. Além de nós.
(Por Patricia Fachin)

Rudá Ricci  é graduado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo  PUC, mestre em Ciência Política pela Universidade Estadual de Campinas  Unicamp e doutor em Ciências Sociais pela mesma instituição. É diretor geral do Instituto Cultiva, professor do curso de mestrado em Direito e Desenvolvimento Sustentável da Escola Superior Dom Helder Câmara, e colunista Político da Band News. É autor de Terra de Ninguém(Ed. Unicamp), Dicionário da Gestão Democrática (Ed. Autêntica), Lulismo (Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto), coautor de A Participação em São Paulo (Ed. Unesp), entre outros.

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