terça-feira, 21 de maio de 2013

Pensamento mediano (Jessé de Souza)






A professora Marilena Chauí propõe uma discussão interessante e oportuna acerca da classe média brasileira. Seu julgamento indignado é certeiro, ainda que abstrato e indiferenciado. Mais interessante que o burburinho causado é perceber a "justificação" do privilégio dessa classe para que possamos compreendê-la. Antes de tudo, o que é "privilégio"? E como ele se reproduz? Em todas as sociedades modernas, como a brasileira, os privilégios que asseguram acesso diferencial aos bens ou recursos que todos desejamos, sejam materiais, como carro e casa, sejam imateriais, como o prestígio e o charme que asseguram a conquista de um parceiro erótico, por exemplo, são explicados a partir da apropriação diferencial de certos "capitais" - que vão pré-decidir toda a competição social por todos os bens escassos, materiais e imateriais, que todos desejamos as 24 horas do dia. Esses "capitais impessoais", antes de tudo o capital econômico e o capital cultural, são, portanto, o fundamento opaco e nunca assumido de toda a dominação social injusta.

A regra básica da cegueira na qual todos vivemos é que percebemos o "capital econômico", mas nunca percebemos o "capital cultural". É que o capital cultural não são apenas os títulos escolares de prestígio que garantem à classe média seus empregos bem pagos e reconhecidos. Capital cultural é também e principalmente toda a herança imaterial e invisível, tanto emocional quanto cognitiva e moral, que recebemos desde tenra idade, sem esforço, no convívio familiar, como a habilidade para o pensamento abstrato, o estímulo à concentração - que falta às classes populares e a condenam ao fracasso escolar -, a capacidade de perceber o futuro como mais importante que o presente, etc. Isso tudo somado constrói o indivíduo das classes alta e média como "vencedor" na escola e depois no mercado de trabalho, não por seu "mérito individual", como os indivíduos dessas classes gostam de pensar, mas por uma "vantagem de sangue", familiar e de classe, como em qualquer outra sociedade tradicional do passado.

Como a herança do capital cultural, enquanto pressuposto emocional, cognitivo e moral de todo privilégio, é invisível e opaca à consciência cotidiana, a falácia do "milagre" do mérito individual pode campear á vontade. Esse falso milagre é o fundamento que legitima todo tipo de apropriação injusta de privilégios permanentes, condenando os indivíduos que tiveram o azar de nascer na família e na classe errada à miséria e à humilhação, como se alguém pudesse "escolher" ser pobre e desprezado. A dominação social moderna é produzida por um engodo, uma fraude, uma mentira compartilhada por todos os privilegiados. Mas isso acontece exatamente do mesmo modo nas sociedades que admiramos e imitamos como França, Alemanha ou Estados Unidos.

Mas o que há de especificamente perverso nas classes dominantes brasileiras que não existe nessas outras sociedades? É que no Brasil as classes média e alta não apenas repetem a distorção da realidade que permite perceber o privilégio herdado como se tivesse nascido do próprio esforço, mas também "tiram onda" de que são generosas e críticas. Essa é uma fraude que um republicano americano típico jamais faria. Como isso se tornou possível? Ainda que poucos percebam, o mundo social não é apenas dinheiro e o que o dinheiro compra. O mundo social é também construído por ideias que lhe dão compreensibilidade e orientam o comportamento prático das pessoas. O Brasil moderno tem como seu "mito fundador" - mito esse que coloniza todos os partidos políticos indistintamente - uma reformulação peculiar operada por Sérgio Buarque no "mito nacional" sintetizado por Gilberto Freyre. São de Sérgio Buarque as bases ideais do Brasil que se compreende como oposição entre um Estado ineficiente e corrupto e um mercado virtuoso, santo e eficiente.

Essa ideia absurda - afinal não existe corrupção no Estado que não seja estimulada por interesses do mercado - é hoje uma espécie de segunda pele dos brasileiros, muito especialmente nas classes médias. Por quê? Porque ela confere algo indispensável ao privilegiado que é a necessária "boa consciência" que essas classes precisam ao localizar em um "outro", que ninguém define, uma "elite abstrata" que pode ser todos e ninguém, a fonte de todo mal nacional e se eximir de toda a responsabilidade. Afinal, se todo o mal está no Estado corrupto então se pode continuar, com boa consciência e se achando uma pessoa muito legal, a explorar cotidianamente o trabalho mal pago das classes baixas, que poupa o tempo da classe média para que essa possa se dedicar a incorporar ainda mais capital cultural para reproduzir, em escala ampliada, seus próprios privilégios de classe. O fundamento do privilégio da classe média é, antes de tudo, o "conhecimento" valorizado - que exige tempo para ser apropriado - indispensável à reprodução de mercado e Estado. Essa "luta de classes", invisível e cotidiana, tipicamente brasileira, ninguém vê porque nesse mundo absurdo da irresponsabilidade social também a desigualdade é culpa da corrupção e do patrimonialismo do Estado.

A ideologia do patrimonialismo - leitura, aliás, superficial e distorcida de Max Weber compartilhada por Buarque e pela maioria dos intelectuais brasileiros de hoje - domina, com sua institucionalização partidária, escolar e midiática, toda a vida política do Brasil moderno, abrangendo, por exemplo, em igual medida, tanto o PSDB quanto o PT. Essa é a ideologia da "irresponsabilidade social praticada com boa consciência", que permite encobrir todos os conflitos verdadeiros ao criar falsas oposições e, assim, silenciar as dores e sofrimentos cotidianos de uma das sociedades mais injustas e desiguais do planeta. A nossa classe média é singularmente perversa e infantilizada, apenas por ser o suporte social mais típico de uma visão de mundo narcísica que transforma exploração em generosidade impedindo todo aprendizado possível e toda crítica. Mas a cegueira e o atraso da consciência moral comprometem a sociedade como um todo.

* Jessé de Souza, doutor em sociologia pela Universidade Heidelberg, na Alemanha, é professor da Universidade Federal de Juiz de Fora e autor de Os batalhadores brasileiros - nova classe média ou nova classe trabalhadora? (Editora UFMG)

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
19 de maio de 2013

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