terça-feira, 21 de maio de 2013

O paradigma estrutural do Estado hegemônico (Francisco Ferraz)






Quem se afastar do fluxo diário dos fatos políticos da conjuntura, em busca de elementos de maior permanência e maior presença ao longo da nossa História, vai descobrir os componentes estruturais da sociedade brasileira.

Hoje em dia, o que se encontra subjacente à práxis política e governamental é a dinâmica centrípeta em torno do Estado, que os governos do PT instituíram no País. Outra não era a lógica e a dinâmica do governo Sarney, dos governos militares, do governo Jango, dos governos de Vargas, dos governos da Velha República (à exceção de São Paulo), dos governos do Segundo e do Primeiro Impérios, do governo português de 1808, do governo português do período colonial e do Portugal que desembarcou das caravelas em 1500.

Quem chega ao Brasil no início do século 16 não é Portugal, é o Estado português. Não é qualquer Estado. É talvez o mais moderno de sua época. O Portugal que ocupou o Brasil, antes de aqui existir uma sociedade, era representado pelo Estado patrimonialista. Essa definição vincula o fato conjuntural da descoberta a um componente estrutural decisivo (*).

Não deve, pois, surpreender que hoje, já no século 21, questões do nosso dia a dia político como a interferência dos governos na economia, o exacerbado fiscalismo, o arraigado empreguismo, o exagero dos gastos públicos, a corrupção, a tara do adesismo político, a centralização administrativa sejam a reiteração de um padrão que esteve presente em todos os momentos da nossa História.

Do Estado patrimonialista português implantado no Brasil se originou o paradigma do Estado hegemônico, que implicava:

O poder para penetrar os demais setores da vida social e organizá-los de acordo com a lógica de seus princípios, sem ser por eles penetrado em igual medida; o poder para "metabolizar" as mudanças inevitáveis, adotando-as como a nova forma dos velhos padrões e subvertendo seu impacto transformador, pelo preenchimento do seu conteúdo com as mesmas pautas até então vigentes; garantindo, por este processo, a sua reprodução nos novos tempos.

Os sinais da hegemonia do Estado em relação às demais dimensões da vida social eram:

No sistema econômico - o poder para a determinação de objetivos não econômicos à atividade econômica e decidir sem constrangimentos "em que e como" aplicar os recursos.

No sistema social - ao manter a tutela da sociedade pela cooptação da cooptação das lideranças sociais.

No sistema político - pela centralização do poder e confusão do patrimônio público com o do governante.

No sistema cultural - mediante a identificação com valores e crenças compatíveis com o paradigma, ainda que dissociados - quando não antagônicos - das exigências de uma sociedade moderna.

Paradigma, para os propósitos dessa análise, é, então, uma configuração estrutural duradoura da sociedade, que se exterioriza em modelos com ele compatíveis e histórica e conjunturalmente determinados.

A mudança de modelos, pois, não produz mudanças de paradigmas estruturais. É nesse sentido que se pode dizer que a nossa História tem sido a história de diferentes modelos de organização política e econômica, gerados por um mesmo paradigma.

A permanência no tempo, por meio de sucessivas reencarnações do paradigma em diferentes modelos políticos, foi coadjuvada poderosamente pelo fato de que movimentos políticos e ideológicos, tanto de direita como de esquerda, conservadores ou revolucionários, compartilharam sempre os princípios básicos do paradigma: o estatismo, a desconfiança com o mercado, o autoritarismo e a inabalável convicção de que somente o Estado pode realizar o bem comum.

Já as mudanças paradigmáticas são precedidas de cataclismos sociais (guerras, revoluções, crises econômicas), que desestabilizam ou destroem as bases da configuração estrutural, vigentes na sociedade e no sistema de valores das pessoas, predispondo-as à mudança não mais de modelo, e, sim, de paradigma.

Nenhuma dessas condições até hoje se fez presente na história política brasileira. Se há uma linha de continuidade histórica identificável no Brasil, é a que registra o aumento do poder do Estado em relação à sociedade.

A contrapartida dessa crescente intervenção do Estado se tem revelado tanto mais insatisfatória em seus resultados quanto maior for o grau da intervenção.

Na realidade, é o paradigma do Estado hegemônico que está enfrentando sua exaustão. A lógica da centralização extremada está conduzindo ao que Tocqueville criticava na centralização política do Ancien Régime: a obstrução das artérias nas extremidades e o enfartamento do centro.

Ressalvadas, então, as óbvias variações conjunturais, há mais semelhanças estruturais entre os modelos políticos da colônia, do Império, da República, do Estado Novo, do regime de 1964 e do governo do PT que diferenças.

O paradigma do Estado hegemônico, que no período Collor, Itamar e Fernando Henrique começou a perder substância e poder - apesar de marcado por inconsistência, transigência e culpa -, recebeu dos governos Lula e Dilma o sopro renovador que o reinstalou mais uma vez na sua histórica posição hegemônica em face da sociedade.

Esse é o verdadeiro conteúdo da política brasileira no seu nível estrutural. No nível conjuntural, no dia a dia da política, outras são as questões que alimentam as controvérsias. O futuro do País depende, entretanto, deste sempre adiado desfecho do conflito estrutural.

(*) Simon Schwartzman, no seu artigo seminal Representação e cooptação política no Brasil, recuperando o insight de Raymundo Faoro (Os Donos do Poder), aplicou o conceito weberiano de patrimonialismo como variável estratégica na compreensão da organização social brasileira.

* Professor de Ciência Política na UFRGS, pós-graduado pela Universidade de Princeton,

Fonte: O Estado de S. Paulo

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