A medida (PL 4470/12) chega também num momento em que o sistema partidário brasileiro se aproxima do numero assombroso de 50 partidos formalmente organizados ou em processo de organização, em que algumas legendas concretizam a fusão (caso do PPS e do PMN que originaram a Mobilização Democrática – MD), ou dela cogitam (caso do PSDB com o DEM), em que algumas legendas buscam inovar construindo-se a partir da sociedade (caso do REDE, capitaneado pela ex-ministra e candidata presidencial Marina Silva, principal alvo da nova legislação segundo a avaliação predominante na cena política).
Em termos de orientação em plenário praticamente todos os partidos representados votaram majoritariamente contra a medida contra migrações partidárias rumo aos novos partidos. Favoráveis à proposta, que veta o acesso ao Horário Político Eleitoral e ao Fundo `Partidário aos parlamentares que se transferem aos novos partidos, contabilizam-se 70 votos do PT, 51 do PMDB, 14 do DEM, 27 do PSD, 24 do PR, 16 do PP, 11 do PDT, 06 do PCdoB, 8 do PSC, 7 do PTB, 2 do PTdoB, 1 do PHS, 1 do PV, 1 do PRB, 1 do PRP e 1 do PHS. Contrários à medida foram 3 do PR, 2 deputados do DEM, 2 do PMDB, 3 do PDT, 01 do PT, 01 do PP, 01, do PTB, 01 do PSC, 01 do PV, 01 do PTdoB, 01 do PSL. Atestando que a clivagem situação e oposição não se verificou neste episódio (como em uma série de outros igualmente cruciais) votaram pela obstrução da medida 14 do PSDB, 12 do PSB, 04 do PV, 2 do PMDB, 2 do PPS , 2 do PSOL, 2 do PRB, 02 do PSC, 1 do PDT, 1 do PMN, 1 do PP. Abstenções foram 1 do PDT e 1 do PPS. (Fonte: CENIN - Coordenação do Sistema Eletrônico de Votação da Câmara dos Deputados)
Aqui gostaríamos de desmistificar alguns chavões e lugares comuns, muito corriqueiros entre comentaristas e analistas políticos. O principal destes clichês vem a ser o de que os partidos seriam meramente a expressão de conveniências ou personalismo das lideranças políticas. Como corolário desta visão teríamos que as legendas jamais poderiam encarnar aspirações coletivas e tampouco veicular o interesse público. Se o próprio resultado da votação não foi suficiente para desmentir esta assertiva, então apresentaremos mais abaixo resultados suplementares.
Igualmente pretendemos conectar a batalha em torno do tema da reforma política com os conflitos em andamento no seio da sociedade brasileira e aquilatar o impacto destas clivagens sobre a consistência e a qualidade da representação. É muito freqüente encontrar analises e comentários sobre estas duas ordens de eventos contextuais de uma maneira segregada (como fizemos nos dois primeiros parágrafos deste texto), como se ambos não se implicassem mutuamente.
Em termos gerais as analises existentes confundem a Lei Falcão, editada na esteira da vitoria do MDB nas eleições de 74 e sua expectativa de vencer subsequentemente, com a Reforma Partidária de dezembro de 1979 – uma das raras ocasiões em que se observou no Brasil um sistema partidário in status nascendi - que dividiu as oposições ao regime autoritário e efetivamente marcou a origem do sistema partidário atualmente em vigor. Esta última, inadvertidamente, ao rachar o MDB, veio a dar margem ao nascimento do PT dentre uma série de outros partidos de esquerda como efeito inesperado. Quanto à primeira ela teve por efeito gerar imensa apatia entre o eleitorado e esfriar o debate político.
Por trás deste tipo de analise se acha o mito de que toda reforma política implica necessariamente numa engenharia social, num esforço e num planejamento deliberado, articulado e potencialmente bem sucedido para reestruturar diversos âmbitos da vida social do país. Tanto a esquerda quanto à direita parecem compartilhar, em maior ou menor profundidade, esta visão.
É sabido na Ciência Política brasileira que, dos 513 deputados, em media apenas 5% se elegem com seus próprios votos. O restante é tudo "rateado" através do pool de candidatos e partidos coligados, o que atesta contra a autenticidade e a qualidade da representação política. Ao mesmo tempo em que tem que cooperar, dado que se situam "no mesmo barco" eleitoral os candidatos devem matar-se mutuamente para serem os mais votados dentro de uma mesma coligação. E este efeito de pulverização incrementa-se mais e mais na medida em que cada coligação por lançar ate o dobro do numero de vagas que esteja em disputa dentro de cada distrito; dai o expediente de incentivar candidaturas em variados nichos geográficos, sociais, setoriais, organizacionais etc... com fito de subtrair votos dos mais competitivos e aumentar suas próprias chances. Com respeito à personalização do voto isto é problema mundial e mesmo democracias avançadas (EUA à frente) a veem crescer como tendência em substituição ao voto partidário, ao mesmo tempo em que a própria democracia de partidos cede espaços à emergente “democracia de público”.
Ainda que corresponda a um esforço de evitar a pulverização de recursos escassos comuns (tempo de horário eleitoral e financiamentos de campanha) a legislação aprovada é sim casuística e nenhuma novidade há nisso, nem no Brasil nem em qualquer outra democracia ou regime autoritário (hegemônico ou não) conhecido. Entretanto, a implementação da clausula de barreira, instituída pela Lei n° 9096/95, foi vetada pelo STF (em ADIN n° 1.354-8, impetrada por alguns dos partidos que agora buscaram obstruir o projeto de lei: PCdoB com o apoio do PDT, PSB, PV, PSC, PSOL, PRB e PPS) que a interpretou como medida inconstitucional que afronta o direito das minorias à representação. Nesta mesma época a ventilou-se a proposta de uma "federação de partidos" i.e. um prolongamento da coligação eleitoral das microlegendas dentro do parlamento, com vistas a (potencialmente) tornar-se uma legenda unificada. Como esta não vingou e boa parte das legendas não logra ultrapassar a clausula de barreira, o impasse da fragmentação estava criado, e com ele a “tragédia dos comuns” se avizinhava.
Sobre a "não existência de partidos" isto é controvertido e no mais das vezes uma meia verdade: os partidos inexistem na arena eleitoral, mas são efetivos (em boa parte das vezes) na arena parlamentar. As votações nominais do Congresso via de regra demonstram que as bancadas seguem as indicações das lideranças, salvo em casos isolados onde nem as preferências destas nem as do Chefe do Executivo são absolutamente claras. A votação do Projeto de Lei n° 4477/12 em causa obedeceu à primeira destas lógicas, à sua regra não à sua exceção. Más Como o STF – previsivelmente e por provocação de um legislador do PSB, legenda com conhecidas ambições presidenciais - suspendeu sua tramitação não há indícios de que a fragmentação partidária se atenuará.
Doutro modo, tendo em vista tais ameaças reais a sua sobrevivência, os partidos de esquerda mencionados (PPS, PSB, PCdoB, PDT) são históricos e representam organizações partidárias previamente existentes no sistema partidário do regime 46-64, inclusive herdando seus nomes - exceto do PDT que fora anteriormente o PTB janguista, açambarcado por Ivete Vargas com incentivo dos militares, e o PPS sucessor do antigo "Partidão" que estivera na ilegalidade de 46 a 85. A sorte eleitoral entretanto não foi das melhores e estas legendas perderam espaços para as que hoje hegemonizam a política nacional.
Estas são, a saber, o PMDB (sucessor do antigo PSD de 1946/64 tanto pela amplitude geográfica, pela composição social quanto pelo comportamento político centrista); o PT (o qual subtraiu espaços aos comunistas e trabalhistas alem de abrir os seus próprios); o PFL (sucessor da antiga UDN, depois ARENA e PDS, hoje DEM, más também o jovem PSD kassabista); e o PSDB (fracionamento do PMDB pós Constituinte, composto pela inteligentzia não cooptada pelo comunismo nem pelo petismo, e extremamente hostil aos trabalhistas).
O protagonismo destes atores na aprovação da medida, como visto na contagem de votos acima, é sintomático de que agem feito organizações e não como coleções amorfas de indivíduos (o “saco de batatas” sobre o qual Marx falava). A investigação da origem dos partidos deve transcender a mera analise biográfica da trajetória e do comportamento de suas lideranças políticas, e alcançar o exame da trajetória e do comportamento dos liderados, a agenda e o programa por eles perseguido, as políticas levadas a efeito. Deve passar, para usar o jargão sociológico, da ontogênese à filogênese.
E com respeito ao imperativo de sobrevivência os partidos consolidados e representados legislativamente agem em uníssono como verdadeiras organizações, conscientes de suas necessidades e interesses: assim explica-se por que o DEM foi aparentemente salvo da extinção pelo PR e pelo arquiinimigo PT. Desta conclusão decorrem duas ironias. A primeira: o PT anteriormente fora o PL, fração do antigo PFL dele desligada, a qual incorporou os “nanicos” PST e PGT, e depois fez a fusão com o PRONA para sobreviver à clausula de barreira, transformando-se numa legenda de médio porte. A segunda: o Petismo (sob Dirceu) mantivera uma aliança explicita com o antigo PFL (sob Bornhausen) em torno do tema da reforma política até uma década atrás.
Tais constelações partidárias expressam não somente conveniências mas também em substancial medida tendências reais e abrangentes em processo na sociedade, alinhamentos e contraposições de interesses e aspirações mais ou menos profundos e duradouras. Mais do que aglomerados de interesses privados, personalismos, os partidos são e podem vir a ser veículos do interesse público e de aspirações coletivas mais ou menos abrangentes.
Foram conveniências alguns dos principais vetores formativos do sistema partidário mas não apenas isto, dado que ha movimentos sociais, tendências de opinião e grupos de interesses (organizados ou não) demandando representação e a obtendo, de modo mais ou menos imperfeito, regular ou formalizado. Os partidos brasileiros representam mal o eleitorado, não espelham corretamente as distribuições de preferências existentes na sociedade, más ainda assim, aos trancos e barrancos, as refletem.
Dentro da cena política atual vemos medidas substanciais sendo formuladas e aprovadas em referencia (pró ou contra) aos interesses de segmentos tão dispares e amplos como evangélicos, ruralistas, industriais nacionais e exportadores, banqueiros, indígenas, homossexuais, mulheres, empregadas domésticas, juventude, aposentados etc.
Pelo prisma da oferta, notamos claramente que alguns partidos se colocam de modo mais ou menos aberto como "porta vozes" das aspirações e motivações de determinados destes segmentos e em oposição aos de outros. Ainda que as alianças eleitorais, parlamentares e de governo pareçam caóticas e incoerentes, a cada momento em que são celebradas, ao fim e ao cabo as divergências se explicitam e o choque se torna inevitável. Assim está sendo p.ex. no tocante à aliança que o PT e a esquerda efetuaram com a centro-direita em 2010 e que hoje se transforma em batalhas amargas com os evangélicos e os ruralistas, no momento em que os primeiros intensificam sua militância em prol da agenda das minorias (negros, mulheres, gays, indígenas) na Comissão de Direitos Humanos. O mesmo se verifica na PEC das Domésticas que opõe o partido do governo às classes médias tradicional e emergente, simultaneamente, assim como quanto ao projeto de redução da maioridade penal.
Por certo, os grupos sociais não agenciam os partidos de modo perfeitamente coerente e regular. Tampouco a coisa se dá de modo individualizado, atomizado, como prescrevem as teorias liberais da representação política. Há quebras de contrato e decepções frequentes e a longo prazo nenhum grupo logra impor seu próprio planejamento estratégico, sua agenda ou sua própria “engenharia social” à coletividade brasileira.
Más o que tudo isto nos ensina de fato?
É muito possível, em primeiro lugar, que fracassemos se pensarmos na reforma política como algo que vai aumentar esta coerência ou regularidade no vinculo entre partidos e setores ou tendências da sociedade, diminuindo o fosso entre estes, agregando valor à representação. Reforma política não é reengenharia social.
Em segundo lugar, reforma política não é panacéia. Em outras palavras, mesmo que, num cenário absolutamente otimista, seja projetado todo um conjunto de instituições políticas, que se obtenha o consenso necessário a sua ratificação e a aderência generalizada a seus dispositivos, rotinas e práticas, ainda assim não se resolverão todos os problemas da sociedade. Estes continuarão existindo e podem se tornar mais ou menos agudos com o projeto de reforma a ser aprovado, ou ainda assim, permanecerem infensas a ele.
Por outro lado, em hipótese alguma a reforma política acarretará que um conjunto de partidos ou grupos sociais torne-se vitorioso sistemático do conflito político e das eleições (majoritárias ou proporcionais) vis à vis outros partidos e grupos. Sempre haverá, como no caso da Reforma Partidária de 1979-80, uma ou mais virtualidades que nenhum ator antecipa, ou mesmo potencialidades da situação que ninguém diagnostica a médio ou longo prazos. Este é o aprendizado ou maturidade que falta àqueles diagnósticos e analises políticas que se cingem ao prisma do mero “casuísmo” ou da antecipação das eleições presidenciais de 2014, e da maneira como estes fatos impactam as chances dos presidenciáveis.
Por fim, reforma política não é substituto de políticas econômicas e sociais estruturantes que visam uma distribuição mais equilibrada de recursos entre cidadãos. Como nos casos do Fundo Partidário e do projetado financiamento público de campanhas eleitorais – cujo mero anuncio ou cogitação, assim como a edição pelo TSE daResolução n° 23.282 de 22 de junho de 2010, fomentou a multiplicação de micropartidos potencialmente rent-seekers, “legendas de aluguel”, e encorajou a reação dos partidos já representados no Congresso no sentido de defender os recursos escassos comuns – temos que a tese da “equalização” do campo de jogo entre forças não pode ser comprada pelo seu valor de face. Não somente pela presença do famoso “Caixa Dois” (ou “dinheiro não contabilizado” no vocabulário dos que foram recentemente julgados e condenados no Supremo...).
Más também há outras assimetrias de recursos no sistema político brasileiro que não se resumem aos de natureza material. Há também assimetrias de organização que são gritantes, como também assimetrias de informação igualmente deletérias. Neste quesito o mesmo PT que se queixa da suposta “hegemonia midiática” dos conservadores e dos detentores dos meios de comunicação – fator crucial da discussão do “marco regulatório da mídia”, que assim pode ser considerada uma espécie de reforma política “extraoficial” – também a eles se equivalem ao manejar em seu favor os detentores dos meios de mobilização e organização da sociedade civil brasileira (CUT, UNE, CNBB etc).
E estas são, como dantes dito, muito mais difíceis senão impossíveis de serem corrigidas.
Não definimos o que entendemos por reforma política senão negativamente. Uma abordagem positiva da temática da reforma política, sobre o que ela efetivamente é e dos problemas que nos permitirá (ou deverá nos permitir) resolver, se não ficou implícita no que se escreveu acima, faremos em artigo posterior.
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