Ex-ministra fala da pequena cidade acreana onde nasceram as reações
contra o desmatamento e hoje abriga, como pode, mais de mil haitianos
Acompanho com atenção e preocupação as notícias da grande crise que
atravessa a humanidade. Em toda parte há problemas: guerra, miséria,
falência econômica e os desastres provocados pelas mudanças no clima. As
sociedades mobilizam-se, buscam soluções, experimentam alternativas e
cobram de seus governos ações e estratégias para viver nesta era de
incertezas. Nesses movimentos e suas novas utopias procuro ancorar
minhas esperanças.
Mas meu coração - devo confessar - voltou a ficar apertado com as
notícias que chegaram de minha terra natal, onde, por estes dias,
agravou-se uma situação que já dura dois anos. Na pequena cidade de
Brasileia, no Acre, mais de mil imigrantes haitianos arrumam-se como
podem num abrigo precário e sobrevivem com alimentos doados pelo governo
estadual. São comoventes as imagens de sua pobreza e o olhar espantado
de suas inúmeras crianças, lançadas numa vertiginosa mudança que não
compreendem.
Mais dramática que a situação que encontram hoje em Brasileia é a
memória do caminho que percorreram para chegar ali. Deixam sua pequena
ilha natal em um barco que os leva até o Panamá. Daí seguem como podem,
cruzando o Equador até chegar ao Peru, depois Bolívia. Atravessam
florestas e montanhas, transportados como gado, clandestinos, explorados
por traficantes de gente, vítimas de todo tipo de violência, expostos a
doenças e acidentes, num caminho desconhecido que termina nas margens
de um rio. Do outro lado está um país luminoso, uma terra de promessas,
onde sonham refazer suas vidas e de suas famílias, devastadas por uma
longa história de desgraças.
Não preciso descrever o Haiti, que conhecemos das notícias: uma ilha no
Caribe em que uma população pobre, de origem majoritariamente africana,
viveu por longos anos sob uma das ditaduras mais cruéis e tornou-se um
símbolo mundial de miséria. Caetano Veloso, ao cantar a violência nos
guetos e prisões brasileiras, denunciou a dubiedade que vivemos, em
nossa sociedade cindida, na qual o Haiti é e não é aqui. Respiramos
aliviados por não ter sido aqui o terrível terremoto que devastou a ilha
e interrompeu milhares de vidas, entre elas a de nossa inesquecível
Zilda Arns, que lá estava em sua missão de solidariedade. Seguiram-se as
epidemias de doenças como a cólera e uma fome ainda maior, que a
passageira e superficial solidariedade do mundo não consegue saciar. De
tudo isso fogem os haitianos, em busca de um lugar não seja o Haiti.
É necessário, entretanto, que eu descreva Brasileia para um Brasil que
não se conhece. Tantas vezes estive naquela pequena e agradável cidade,
em companhia de Chico Mendes e outros companheiros de luta seringueira.
Ali nasceram os "empates" contra o desmatamento, liderados por Wilson
Pinheiro, que foi assassinado na sede do sindicato, um casarão de
madeira ao lado de uma pracinha deserta, quase um terreno baldio.
Brasileia era movimentada pelo comércio com a cidade boliviana de
Cobija, que se avistava do outro lado do rio com seus prédios de
alvenaria em antigas ruas calçadas com pedras trazidas das montanhas. Do
lado de cá, paralela ao rio, a rua do comércio de Brasileia era
adornada com árvores podadas de fícus-benjamin, em cuja sombra parávamos
para tomar raspadilha ou picolé, nos intervalos das reuniões.
Muitas vezes alertamos o governo brasileiro: antes de pavimentar a
estrada que leva ao Oceano Pacífico, era necessário proteger a floresta,
demarcar as terras indígenas, diminuir as desigualdades sociais, pois a
miséria e a violência certamente aumentariam com a exposição de uma
sociedade frágil aos tráficos intensos de uma fronteira aberta. Não
fomos ouvidos. Depois de Wilson, foram mortos vários companheiros, até
Chico Mendes. Disseram que éramos contra o progresso, a produção
agrícola, a carne farta e barata, os produtos importados que tirariam a
Amazônia do atraso.
Assim, a outrora pacata Brasileia e suas vizinhas, a boliviana Cobija e a
brasileira Epitaciolândia, assim como Xapuri, Assis Brasil, Plácido de
Castro e todas as pequenas cidades do interior e da fronteira,
transformaram-se em pontos de aglutinação do êxodo rural. Suas
periferias inchavam e desinchavam a cada ano, com as famílias expulsas a
ferro e fogo dos seringais, que ali paravam algum tempo antes de
rumarem para a capital, Rio Branco, em que formariam novas e precárias
periferias. Muito antes de chegar, o Haiti já estava aqui.
No início deste século, alguma coisa melhorou. A chegada de antigos
companheiros de Chico Mendes ao governo do Acre e do Brasil diminuiu,
por alguns anos, o ritmo da devastação e as desigualdades sociais. Os
problemas permanecem e são muitos, mas há ao menos uma estrutura básica
em que os serviços do Estado podem alcançar a população. Um alojamento
precário e três refeições por dia o governo do Acre pode dar aos
haitianos que atravessam a fronteira, algum atendimento à saúde e o
transporte dos que conseguem se legalizar para que alcancem o mercado de
trabalho em Porto Velho, Manaus ou Cuiabá.
Já se passaram dois anos desde que os primeiros imigrantes haitianos
chegaram ao Acre. Mais de 4 mil deles passaram por ali e hoje estão
espalhados pelo Brasil. O atendimento foi feito quase todo pelo governo
do Estado, pois a ajuda do governo federal foi pouca e insuficiente,
tanto no repasse de recursos quanto na articulação institucional. Nessa
semana, a situação agravou-se a ponto de o governador Tião Viana
decretar estado de emergência social e o senador Jorge Viana clamar
publicamente pela atenção dos ministros e demais autoridades nacionais.
Finalmente, foi formada uma equipe interministerial e uma força-tarefa
para acolher, atender, regularizar e encaminhar os imigrantes. Não é tão
difícil para o Brasil. Mil ou 2 mil pessoas é um número pequeno se
comparado ao volume total da migração entre o Brasil e os Estados Unidos
ou a Europa. Temos 50 mil brasileiros ali mesmo ao lado do Acre, na
Bolívia. Mais de 200 mil brasileiros vivem no Paraguai. E quantos
milhares de bolivianos e paraguaios vivem em São Paulo?
Ajuda e 'ajuda'
O Brasil é um país aberto, com sua história pontuada por grandes
imigrações e um antigo trabalho institucional com o trânsito de
populações. Pode ajudar os haitianos, começando por fornecer apoio
efetivo ao Estado do Acre e a seu povo, que é hospitaleiro, mas tem
muitas limitações. Brasileia tem pouco mais de 20 mil habitantes. Seus
equipamentos não suportam uma demanda tão grande e imediata.
Mas a ajuda que o País pode dar vai muito além do acolhimento aos
imigrantes. Ela deve distinguir-se da "ajuda" internacional que vemos
diariamente no noticiário, especialmente dirigida aos países africanos.
Uma comitiva de governantes e empresários de um país economicamente
emergente visita uma região mergulhada em crise social, oferece pequenas
dádivas destinadas mais a manter do que superar a pobreza e aproveita
para fazer bons negócios. A antiga expansão colonial disfarçada de
solidariedade.
A ajuda real deve partir da realidade sociocultural local, com a
internalização de conhecimento e tecnologia, reforço à educação,
respeito e estímulo à autonomia, investimentos com retorno para a
população local em médio e longo prazo. Não deve ser uma forma de
competição para ampliar áreas de influência, mas deve reforçar as
negociações multilaterais e os compromissos estratégicos da agenda
mundial para vencer os desafios do século.
Um imperativo ético foi construído, nos últimos séculos, e se expressa
na noção de humanidade. Vivíamos separados em povos isolados, Estados
nacionais beligerantes, economias em competição, identidades culturais
marcadas por um espírito defensivo e com necessidade de autoafirmação. A
humanidade não se sentia inteira. Tudo está mudando rapidamente, com a
interdependência econômica, a comunicação instantânea, as trocas e
misturas multiculturais. Até mesmo as guerras e revoluções do século 20
levaram a uma emergência da humanidade, transbordando os limites dos
Estados nacionais. Cada povo ou nação pode agora compreender-se como
parte de um todo, cada pessoa pode sentir-se humana ao mesmo tempo que
brasileira ou japonesa, asiática ou europeia. Realizam-se os versos de
John Donne: "Nenhum homem é uma ilha".
É como humanidade, não apenas como Estados ou sociedades, que
enfrentamos hoje nosso maior desafio: a mudança no clima do planeta em
que vivemos. Ninguém está isento; até mesmo as poucas comunidades
indígenas isoladas nos confins da floresta amazônica sofrem os efeitos
da grande mudança. E não adianta construir torres, castelos, bolhas,
qualquer tipo de abrigo ou defesa tecnológica. Foram encontrados no
litoral dos Estados Unidos objetos e até motocicletas arrastados pelo
tsunami desde o Japão. A água da chuva na Argentina vem, em nuvens, dos
rios afluentes do Amazonas. A poluição da China sopra no vento do Saara.
A Terra não tem fronteiras.
Eis o Haiti. Seus imigrantes são refugiados ambientais, como as
populações que fogem da seca, das enchentes ou do gelo, em todos os
continentes. Chegam ao Brasil pela Amazônia, justamente ao Acre, que
quase todos os anos tem de abrigar milhares de famílias desalojadas de
suas casas pelas enchentes dos rios. Talvez tenham que encontrar emprego
no Nordeste, cujo povo pede socorro numa seca que, de tão longa, já se
torna permanente. Ou no Sul castigado pelas geadas.
A responsabilidade é nossa. E também do Peru, da Bolívia, Equador,
Panamá, de todos os países em que passam os haitianos em seu roteiro de
fuga. A diplomacia brasileira precisa ajudar a liderar um esforço
internacional pela solidariedade e pela garantia dos direitos humanos
desses imigrantes.
Não há mais "eles", agora somos todos "nós". Haitianos.
* Marina Silva é ex-senadora pelo Acre e ex-ministra do Meio Ambiente
Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás (14/04/13)
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