segunda-feira, 29 de abril de 2013

Educação para melhorar a política (Renato Janine Ribeiro)






Como podem a educação e a cultura conduzir-nos de uma democracia de consumidores, na qual um dos grandes critérios para medir a inclusão social é o aumento nas vendas a crédito - para uma democracia em que as pessoas estejam menos presas ao consumo, com o que este tem de arriscado e perigoso: pois é efêmero e, o que é pior, torna o voto quase consequência de certas politicas governamentais? Entre elas, a irrigação de dinheiro na praça, a venda a preço baixo de mercadorias de má qualidade e, sobretudo, o fato ou suposição de que ganha votos quem esparrama o crédito pelo comércio. A confiança no governo, fator crucial para ganhar eleições, parece oscilar em função do crédito na praça.

Esta situação faz pairarem duas restrições à qualidade de nossa democracia. A primeira está no tipo de eleitor e cidadão que ela forma: seus valores principais estão no bolso. Não são valores políticos. São valores do consumo. É verdade que sustentei, anos atrás, em meu artigo "A inveja do tênis", que muitas vezes os pobres sentem maior desejo por bens de consumo, como um tênis de grife, do que pelas necessidades básicas da vida social: saúde, educação, trabalho, moradia e segurança. O consumo é forte na política atual.

A segunda restrição é que o consumo está em boa medida nas mãos do governo. Ele pode, abrindo e fechando as torneiras, influir nos resultados das eleições. A condição é marcar o ano da eleição presidencial pela expansão do crédito ao consumidor. Obviamente, nem do lado do eleitor, nem do governo, essa situação é positiva para a democracia.

O que sugiro aqui é uma crítica que lembra a dos filósofos, ao longo da história, às ilusões do consumo. Podemos viver num mundo das aparências, aturdidos por uma sucessão de prazeres - já que a natureza destes é durarem pouco, precisando ser trocados o tempo todo. Nenhuma sociedade conseguiu, antes da nossa, fornecer tantos prazeres a tantas pessoas. Mas os filósofos criticam isso. Dizem que assim se perde de vista a felicidade que, nas palavras de Rousseau, não é uma sucessão de prazeres, que sempre terminam em saciedade ou frustração, mas "um estado simples e permanente, no qual a alma se basta a si mesma". Pois é. Nada mais longe de nós, exceto daqueles, bem minoritários, que mesmo sendo ricos se orientam para o budismo ou outra sabedoria, geralmente oriental. Porque o grande problema da aposta nos prazeres (dizem os filósofos) ou no consumo (supomos hoje) é o risco, o "day after", a ressaca - e ainda a impossibilidade do autogoverno. Quem é joguete do seu desejo não se autogoverna. Quem é refém de seus prazeres não vive em democracia.

Como mudar isso? Penso que há três ingredientes fortes que podem mudar a orientação das coisas. Começo pelo esporte, mas entendendo-o, a exemplo do movimento MOVE (iniciativa internacional que no Brasil foi encampada pelo SESC de São Paulo), não como esporte competitivo, como projeto de investir milhões em atletas de escol a fim de obter medalhas olímpicas, em sua, não como gerador de espetáculo - mas como promoção da atividade física do maior número possível de pessoas. Basta um dado: por volta de 2005, nosso Ministério das Cidades queria baixar o porcentual de pessoas que vão a pé para o trabalho (por não terem dinheiro para a passagem), enquanto o Departamento de Saúde norte-americano pretendia aumentar esse porcentual (para aumentar o exercício físico dos cidadãos). Há mérito nas duas iniciativas, mas o futuro é da segunda.

Depois, a cultura. Cultura e educação são, se formos à etimologia, duas formas de indicar como o homem se separa da animalidade. Cultura se opõe a natureza. Educação significa sair de um lugar para outro, melhorando. Bebês, que são quase animais, se veem educados para se tornarem humanos. A educação tem assim um currículo, uma regularidade, que a faz ocupar mais de dez anos da vida das pessoas. Ela é absolutamente necessária. Agora, ninguém espera que a cultura tenha um currículo, uma lista de obras imprescindível, sequências necessárias a cumprir, exames a prestar. Há um aspecto obrigatório na educação e um gratuito na cultura, que colocam esta última do lado do prazer, do prazer bem usado.

Assim, dos três fatores que podem reduzir o canto de sereia do consumismo, um precisa ter um roteiro obrigatório e longo, que é a educação, enquanto os outros dois, cultura e atividade física, só funcionam se prodigarem satisfação. Precisamos dos três. Eles constituem fortes exemplos de que o dinheiro não pode tudo, até porque muito esporte e muita cultura são gratuitos, mas mais que isso: o que se ganha com eles não se perde. Esta é a enorme diferença com o consumo. O que se consome, como diz a palavra, está consumido, queimado, liquidado. Já a educação fica, assim como a cultura e a atividade física se incorporam ao sujeito. Posso esquecer todos os filmes que vi, os jogos de que participei, mas minha mente e meu corpo se enriqueceram graças a eles.

Será então o fortalecimento destas três áreas um bom antídoto ao avanço, que até parece irresistível, dos excessos nos games, nas unhas esmaltadas das moças em ascensão social, da ideia de que "my pussy é meu poder", que reduz o poder a um de seus componentes básicos, primitivos, o de que tudo gravita em torno de quem controla o acesso ao prazer sexual, o homem pela opressão, a mulher pela sedução? Nenhum desses prazeres é mau em si. A questão, e lembro Foucault, está no uso dos prazeres. Eles precisam ter seu devido lugar. E para o terem é preciso fortalecer essas três áreas que mencionei: para além do prazer, a felicidade.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

Dinheiro de todos a favor de poucos (Eugênio Bucci)






Com a publicidade governamental, agências vão ocupando o lugar das empreiteiras na arte de embaralhar interesses públicos e privados

Existe um escaninho dentro do Estado brasileiro em que o patrimonialismo não apenas sobrevive, como passa muito bem e nem nos diz obrigado. Nesse escaninho só seu, o neopatrimonialismo engorda, cresce e ocupa espaços cada vez mais espaçosos. Exibicionista, gosta de aparecer. Não se envergonha. É dado a melancias no pescoço.

O nome desse escaninho é comunicação governamental. Trata-se de rubrica muito especial da administração pública. Ostenta taxas exponenciais de crescimento. Nos governos estaduais, municipais e também no governo federal, os gastos para financiar a propaganda não param de aumentar. Na Prefeitura de São Paulo, o orçamento da publicidade oficial saltou de R$ 9,7 milhões em 2005 para R$ 126,4 milhões em 2011. No governo paulista, o ritmo de expansão não é menos intenso. Enquanto a gestão Geraldo Alckmin, de 2003 a 2006, destinou R$ 188 milhões à propaganda, a gestão José Serra, de 2007 a 2010, consumiu R$ 756 milhões no mesmo quesito - conforme revelou uma reportagem de Fernando Gallo, publicada no Estado no início deste mês. O agigantamento dos gastos das estatais paulistas acompanha a escalada: só a Sabesp, que não gastou R$ 10 milhões ao longo de 2003, ultrapassou a casa dos R$ 98 milhões em 2012.

Se as verbas da educação e da segurança se avolumassem nas mesmas taxas, a cidade e o Estado de São Paulo teriam a maior concentração de Prêmios Nobel do planeta e o governador não teria que sair por aí defendendo a redução da maioridade penal a cada novo latrocínio.

De seu lado, o Palácio do Planalto não fica para trás. Somados, os gastos da administração direta do governo federal (a Presidência da República e seus ministérios) e da administração indireta (as estatais, como Petrobrás e Banco do Brasil) vêm oscilando em torno da marca do bilhão de reais. No ano de 2009, houve um pico: R$ 1,7 bilhão. Era ano pré-eleitoral.

E não é só isso. Não é apenas por meio da propaganda paga que o erário financia a boa imagem do governo. Há outro quesito, no qual quase ninguém presta atenção: as assessorias de imprensa em escala industrial.

Agora, há uma semana, exatamente no domingo passado, o Estado publicou uma reportagem de João Domingos, Wilson Tosta e Isadora Peron que revela uma cifra eloquente: os dispêndios anuais do governo federal com as assessorias de imprensa - incluindo Presidência e ministérios - alcançam a casa dos R$ 97 milhões. E isso é apenas o aperitivo. "Cerca de 500 profissionais cuidam da imagem da administração, repassando informações oficiais a jornais, TVs, rádios e canais de internet privados", anota a reportagem. "Nas empresas estatais, como Petrobrás e Correios, a estimativa - elas não divulgam números - é de que o gasto chegue a R$ 250 milhões ao ano, com 1.200 profissionais envolvidos."

Parte desse serviço é terceirizada. Entre outras coisas, as empresas contratadas confeccionam peças em linguagem jornalística para emissoras do interior, que as reproduzem, além de atuar nas redes sociais, com o objetivo de fortalecer e difundir pontos de vista pró-governo.

Claro que um governo não apenas pode, mas deve ter assessores de imprensa. Bem preparados, esses profissionais facilitam o contato entre repórteres e autoridades. Desde que comprometidos com os princípios constitucionais da administração pública, melhoram o fluxo de informações de interesse público e contribuem para que o Estado seja mais transparente e acessível. Coisa diferente, bem diferente, é essa nova "estratégia de comunicação governamental", que leva o Estado a montar, ao lado da faraônica publicidade governamental, verdadeiras usinas de conteúdo que fabricam press releases em série com o objetivo de direcionar a opinião pública a favor da Presidência da República. Nesse caso, o que temos é o emprego do dinheiro público, dinheiro que por definição é de todos os cidadãos, para promover, direta ou indiretamente, a boa imagem de uns poucos: a imagem dos que governam.

Essa nova escola de "comunicação pública", vamos deixar bem claro, de pública não tem nada. É inteiramente privatizada, seja porque contrata empresas privadas para campanhas massivas e permanentes (muito além do que seria uma assessoria de imprensa, por assim dizer, republicana), seja porque, por meio da ferramenta da publicidade paga, transforma os governos em anunciantes comuns, comerciais. Com uma diferença nada sutil: enquanto a publicidade comercial ordinária procura vender um bem ou um serviço, a publicidade governamental não vende coisa alguma que não seja o sorriso do pessoal que manda.

Quem ganha com isso? Não é o cidadão. Quem ganha é somente o partido do governo, que turbina a própria popularidade e se cacifa para as próximas eleições. É por isso que a nova "comunicação pública" constitui uma nova modalidade de patrimonialismo, pois emprega os recursos públicos para beneficiar interesses privados (interesses partidários são interesses privados).

Depois alguns ainda se espantam quando verificam que, no Brasil, as agências de publicidade vão ocupando o lugar (que antes era só das empreiteiras) na arte macabra de embaralhar interesses públicos e privados.

* Eugênio bucci é professor da ECA-USP e da ESPM

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

Partidos para dar e vender (Marco Aurélio Nogueira)





É compreensível, ainda que não cabalmente justificável, o alvoroço causado pela aprovação na Câmara dos Deputados do projeto de lei que limita o acesso de novos partidos ao fundo partidário e ao tempo de propaganda na TV. Houve tanta falta de tato e habilidade que se abriu uma pequena crise política no País.

Sempre que se mexe com os partidos tudo sai do lugar, a começar dos interesses e planos forjados nas instâncias políticas e governamentais. Como há um calendário eleitoral e o governo se atirou de corpo e alma na batalha pela aprovação do projeto, o ambiente político ficou nervoso.

A relação entre qualidade da representação, número de partidos e mecanismos de criação de siglas merece ser sempre bem analisada. As distintas situações nacionais concretas ensejam múltiplos sistemas partidários, seja no que diz respeito às suas regras, seja quanto à maior ou menor facilidade para que se criem partidos.

Não há de antemão um número ótimo de partidos nem critérios pétreos que fundamentem uma regra para sua multiplicação. A questão de saber quantos partidos suporta uma boa representação democrática é retórica: não dá para ser respondida. Democracias de boa qualidade sobrevivem mesmo que tenham sistemas partidários fragmentados, basta que algumas grandes forças partidárias organizem a competição política.

Partidos surgem conforme cálculos e desejos que não estão em manuais. A busca de regulação do processo reflete o desejo das cúpulas de impedir que a representação se despedace e atrapalhe a governabilidade. Em especial hoje, época de muitas postulações de identidade e múltiplas agendas, o pluralismo não cabe numa divisão simples entre direita, centro e esquerda, por exemplo. Impor camisas de força não funciona e pode até afastar do jogo político as minorias não partidarizadas e sem chances de criar seus partidos.

Isso também ocorre nos países onde as tradições históricas, a cultura política e o processo de organização do Estado estabeleceram regimes fortemente polarizados entre duas forças gigantes, como nos EUA (democratas x republicanos) e na Inglaterra (conservadores x trabalhistas). Neles, ou as minorias se compõem e se diluem nos grandes partidos ou vegetam na margem do sistema, dele se excluindo. Seja como for, sistemas partidários desse tipo são produtos da realidade, não o resultado de imposições legais.

Exceção feita aos períodos ditatoriais, o Brasil sempre foi "multipartidário", sempre conviveu com a proliferação de legendas e com a dança dos parlamentares entre elas. Criar partidos tem sido uma preferência nacional, um traço de nossa vida política. Seja para acomodar novos interesses, resolver pendências ou dar vazão a apetites eleitorais.

O problema agravou-se a partir dos anos 1980, quando a sociedade ficou mais complexa e se desfez a unidade democrática contra a ditadura. Dezenas de siglas se esparramaram então pela vida política nacional, a maioria delas com existência fugaz e perfunctória. O mecanismo de criação de partidos ficou desregulado. Tomou-se mais fácil fundar uma legenda do que abrir uma conta bancária. Migrações sem critério entre os partidos tomaram-se usuais.

Fatores tópicos ajudaram a que isso ocorresse. Os partidos principais, PMDB, PT, PSDB, estruturadores do sistema, foram perdendo magnetismo e condicionando sua capacidade de atração ao uso dos recursos de poder, ampliados à medida que conquistavam governos. Desfizeram-se as identidades tradicionais e o surgimento de novas identidades fez aumentar o empenho por novos partidos. A dinâmica democrática geral foi-se mostrando mais forte do que os partidos e estes, ao chegarem aos governos, mal conseguem distinguir-se uns dos outros, fato que passou a ser percebido pela opinião pública, contagiada ela própria por uma visão antipolítica que vitima ante s de tudo os partidos e os parlamentares. Abandonados pelos cidadãos, os partidos foram se concentrando em seus próprios negócios internos, burocratizando-se. Parlamentares mais coerentes passaram a cogitar da criação de legendas mais "autênticas" para compensar a indigência partidária prevalecente. Ao mesmo tempo, políticos fisiológicos, sem espaço nos partidos existentes, sentiram-se incentivados a criar legendas à sua imagem e semelhança para assim construírem bases com que tornar viáveis suas pretensões eleitorais. Por fim, a legislação eleitoral, ao vetar as candidaturas independentes, empurrou os políticos para a multiplicação artificial de legendas. Com a valorização do tempo de propaganda na TV e sua distribuição conforme a votação obtida, o círculo fechou-se.

A discussão atual tem um que de bizarrice. Caso um parlamentar abandone seu partido por outro, leva ou não consigo a representatividade obtida nas urnas? Seus votos lhe pertencem ou são do partido? A questão é bizarra, mas faz sentido: afeta diretamente os jogos de poder. Segundo as regras vigentes (que não autorizam os partidos a apresentar listas fechadas aos eleitores), o mais lógico e que os votos fiquem com os par lamentares que os receberam. Mas os partidos os patrocinaram e podem arguir que também são tão donos dos votos.

O projeto aprovado na Câmara não proíbe a criação de partidos. Seus promotores alegaram que desejam impedir que se repitam artimanhas como a da criação do PSD, que nasceu rico graças ao "roubo" de deputados de várias siglas. Mas escolheram um péssimo momento para fazê-lo. Deram a impressão de querer atrapalhar as propostas ora em gestação, mexendo nas regras com o jogo em curso. Ninguém foi excluído, mas a medida prejudica os que desejam crescer mediante a captura de descontentes e reduz o potencial imediato de qualquer sigla que venha a surgir. Tem cara de armação, mesmo que em médio e longo prazos sobrevivam todos os partidos, e mais alguns.

Professor titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP

Fonte: O Estado de S. Paulo

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Entre Redes e MD`s: Um partido para chamar de "meu". (Rafael Gumiero de Oliveira)

Entre fusões e novas criações vivemos um verdadeiro paradoxo de representação política na organização partidária da democracia no Brasil. Explico. Acompanhamos atentamente a movimentação político-partidária em torno da criação de uma nova sigla no Brasil, a Rede Sustentabilidade (Rede) e, também, da fusão de outras duas siglas, com relativa expressão, que originarão a Mobilização Democrática (MD). Os defensores desses dois mais recentes movimentos têm atribuído suas ações a “um desejo legítimo de exercitar as garantias democráticas”, ou seja - pelo menos em tese - revigorar as opções e possibilidades democráticas; fortalecimento democrático-partidário; ampliação da participação direta da população nas decisões públicas; oxigenação das bases e estruturas políticas; renovação da cultura política brasileira; recolocação da política a serviço do bem comum, etc.. Enfim, novas possibilidades podem representar um ganho verdadeiro para a democracia e para o "fazer política" no País.
Logo, senão em algumas, em pelo menos uma coisa todos os apreciadores da democracia, que conheço, concordam: a ampliação do debate político, com novas e variadas opções de representação, é sempre salutar e benéfica ao processo democrático.
Portanto, novas opções partidárias deveriam ser do interesse do conjunto de nossa população. E por que não são? A resposta talvez esteja no paradoxo mais capilar em que vive a democracia brasileira.
Ao mesmo tempo em que há um crescente interesse por vias de participação social mais democráticas, temos acompanhado um verdadeiro declínio da importância dos partidos nas democracias contemporâneas. Alguns anunciam esse fenômeno como uma profunda "crise da democracia".  Segundo o cientista social Manuel Castells o que por alguns tem sido entendido como "crise da democracia" é o declínio das relações de identidade entre representantes e representados e a mudança para um novo modelo político. Afinal, a lógica de organização atual dos partidos políticos os têm tornado meros instrumentos a serviço de alguns poucos. Práticas como: a organização partidária em feudos políticos; o fisiologismo na ocupação de cargos públicos; o clientelismo nas relações políticas; a corrupção entranhada nas instâncias partidárias; etc., têm tratado de intensificar uma crise de intermediação e representatividade sócio-política dos partidos no Brasil.
Esse sentimento tem sido confirmado nas pesquisas de estudo eleitoral, como é o caso da respeitadíssima pesquisa de abrangência internacional ESEB, que é um estudo vinculado ao projeto internacional Comparative Study of Electoral Systems (CSES), coordenado pela Universidade de Michigan e com a participação de dezenas de instituições de vários países. A ESEB 2006, no Brasil, que foi coordenada em parceria com pesquisadores da UNICAMP, demonstrou que quase 70% da população brasileira entende que nenhum partido político representa a sua maneira de pensar.
Essas evidências demonstram que há um divórcio crescente entre os partidos e a sociedade e, portanto, o fim da centralidade dos partidos políticos. O cientista político francês Bernard Manin avalia que há uma mudança em curso, a que ele chama de passagem da "democracia de partidos" para um novo modelo, o da "democracia de público", ou seja para vias mais acessíveis e democráticas de participação política.
Para efetivamente buscar a resolução desse problema, há, em nossa visão, a necessidade de uma mudança epistemológica do que se vê como problema. Não basta gerar novos partidos ou fusões partidárias, ao contrário, talvez estaremos reforçando o problema. O problema está em seu estatuto. Não se trata de mudar a "consciência" das pessoas (ou seu voto), mas o regime político, econômico e institucional de produção dessa "verdade" de democracia partidária. É urgente uma reforma política com candidaturas independentes, sem exigência de filiação partidária, para quebrar o monopólio dos partidos sobre a vida pública, e para renovação de representação política.
Em tempos em que as lideranças políticas querem "um partido para chamar de seu", o fato, é que, entre Redes, MD`s, etc., a sociedade busca por mais espaços democráticos. Mas será que esse novo vigor na vida pública virá da movimentação partidária?

Males da democracia atual (Renato Janine Ribeiro)

Um elogio curioso à democracia deve-se a Winston Churchill, falando na Câmara dos Comuns, em novembro de 1947: "A democracia é a pior forma de governo, excetuando todas as outras que já foram testadas de tempos em tempos". É puro humor britânico. Na prática, diz que a democracia é a melhor forma de governo disponível; mas a graça está em que, mesmo assim, não é um bom regime político. É o menos ruim que podemos ter.

Hoje, quando elogiamos a democracia, parece que sua principal virtude é a transparência. Já não se enfatiza sua definição: como "poder do povo", ela dá voz a todos, gera governos que atendam à vontade da maioria, e isso sem esmagar a minoria. Hoje, a transparência parece até mais importante que a vontade do povo. Um século atrás, a Primeira Guerra Mundial marcou o auge e o apocalipse da diplomacia secreta, que levava a tratados negociados a portas fechadas, com o propósito de retaliar países inimigos. A entrada dos Estados Unidos na guerra, defendendo a autodeterminação dos povos, e a saída dos russos da guerra, divulgando os tratados sigilosos, anunciaram o fim da política internacional secreta. Ela fica difícil na democracia, o que é bom. Talvez por isso se diga, com certo exagero, que democracias nunca fazem guerra entre si. Finalmente, a transparência tem sido, talvez, o principal antídoto para o mau uso do dinheiro público.

Mas a democracia tem problemas. Estudiosos de comportamento eleitoral afirmam que as intenções de voto acompanham o crédito ao consumidor. O eleitor é racional, sim, ele não se oferece aos demagogos como uma vítima inocente - mas sua racionalidade parece estar ligada ao dinheiro que tenha no bolso para gastar. Isso favorece políticas diretamente voltadas para a satisfação de seus desejos. Assim, a importação de produtos baratos da China ajuda a aumentar o poder aquisitivo dos brasileiros mais pobres. Só que essa importação se faz em detrimento de nossa indústria. Para ganhos sociais em prazo curto, pagamos um preço econômico, a maior prazo.

Uma democracia consumista infantiliza o povo

Vejam um caso: a Europa está sacrificando sua política climática às imposições da crise econômica. Pois sacrificávamos as políticas sociais à primeira turbulência econômica, até não muito tempo atrás. Uma das mudanças do governo Lula foi tornar a política social um componente central - e irrenunciável - de todo projeto político brasileiro. Em 2010, mesmo quem atacava a Bolsa Família propôs aumentá-la. Além disso, havia um subconsumo crônico dos mais pobres em relação a produtos básicos, fosse o iogurte, fosse a geladeira. Mas a ênfase no consumo traz problemas. Um, econômico: consumir é mais popular do que poupar. Outro, cultural: a tão propalada ascensão dos mais pobres à classe C é medida em termos de renda e de acesso ao mercado. Não é avaliada em função da cultura ou da educação. Em suma, promovemos as pessoas não por algo que elas adquiriram e nunca hão de perder, ao se tornar seu patrimônio inalienável: a cultura, o conhecimento; mas por algo que é vulnerável e efêmero: o consumo.

Eleitores-consumidores votam de uma maneira específica. Premiarão o governo que lhes permitir o gozo das mercadorias e serviços. Propor políticas de longo prazo fica difícil. Ora, para ter um mínimo de eficiência, o governo tem que mirar o futuro. Daí que o Executivo tenha de ser racional, no lugar de eleitores que não o são. O governo atende o desejo consumista dos eleitores da forma mais barata que conseguir, e se vira para separar dinheiro destinado a grandes projetos estruturais - estradas, portos, universidades, usinas elétricas. O único gasto público de longo prazo que o eleitorado adora é na saúde. Nem a educação consegue igual popularidade.

Nada mais longe do iluminismo, o movimento de ideias que no século 18 fundou a democracia moderna, propondo difundir as luzes do conhecimento para melhorar a vida e a ação humana. O filósofo Kant resumiu-o numa expressão: "Sapere aude", atreve-te a saber. Disse que representava a passagem da humanidade à idade adulta. "Iluminismo é a saída do homem da sua menoridade, de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem." Recomendo que leiam seu opúsculo "O que é o iluminismo", acessível na internet. Pois, enquanto a democracia se escorar no eleitor-consumidor, ele será perpetuamente infantil. Eis um traço preocupante da política contemporânea, agudo no Brasil, mas presente também nos países ricos. E o pior é que nosso Congresso age de maneira parecida. Afirmei outro dia que o Executivo federal é o garante de nossa racionalidade. Ao não pagar emendas paroquiais ao orçamento, ao vetar leis inconvenientes, ao ter nas pastas ministeriais quadros superiores aos que dirigem as comissões parlamentares, ele atenua o impacto de demandas imediatas, populares ou parlamentares, sobre as finanças e, mais que isso, sobre a construção de nosso futuro. Teria dito FHC, quando presidente, comentando uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que perturbava as finanças públicas: "Eles não pensam no Brasil". É um pouco essa a ideia. Em nossa democracia, pensar no Brasil e em seu futuro se torna dever e ofício da Presidência da República, a quem cabe a tarefa racional de sacrificar o desejo imediato em nome do bem futuro, no lugar dos eleitores, envoltos pelo consumo, e dos parlamentares, ansiosos por serem populares.

Como mudar este quadro? Não creio que uma reforma política ou eleitoral o altere; ela terá seus méritos, mas não aqui. A única saída é melhorar a educação e, sua parceira mais que necessária, a cultura. Este é tema para a próxima coluna.

Renato Janine Ribeiro, professor da USP

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Redução da maioridade penal: uma proposta falaciosa (André Luís Callegari)


Foto: http://www.teresasurita.com
Reduzir a maioridade penal para acabar com a violência “é uma falácia”, diz André Luís Callegari à IHU On-Line. Segundo ele, a proposta não é fundamentada empiricamente e a aprovação da maioridade penal “seria uma mera transferência física do lugar de cumprimento da pena. Transferiríamos fisicamente os menores da Fundação de Atendimento Socioeducativo – FASE para o Presídio Central”, adverte em entrevista concedida por telefone.
Na avaliação dele, a discussão sobre a redução da maioridade penal apresenta algumas preocupações, e entre elas está a criação de casas prisionais para jovens menores de 16 anos. “Por um sistema biológico que o Código Penaladota, consideramos que nessa fase de 16 anos, embora o jovem tenha o direito civil de votar, ele não atingiu a maturidade plena. O que fariam os outros presos em relação a esse jovem? Todo esse aspecto social tem que ser avaliado porque nós não temos, dentro do sistema prisional, as condições de separarmos os presos primários, aqueles que estão ingressando, e os presos provisórios, que estão lá no sistema presos por uma decretação de uma prisão preventiva para uma investigação, dos presos condenados”. E conclui: “A minha pergunta sociológica é: Será que estamos fazendo bem ou mal ao reduzir a maioridade penal? Não estaremos colocando em contato com pessoas de alta periculosidade jovens que ainda têm uma chance de recuperação?”
André Luís Callegari (foto abaixo) é graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, e doutor em Direito Público e Filosofia Jurídica pela Universidad Autónoma de Madrid. É doutor honoris causa pela Universidad Autónoma de Tlaxcala e pelo Centro Univesitário del Valle del Teotihuacan, do México. Leciona na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que contexto histórico, político e social surge a proposta de reduzir a maioridade penal?
Foto: http://www.cartaforense.com.br
André Luís Callegari – Essa proposta surge de ondas de populismo penal ou de sentimentos de vingança. Atendendo ao clamor social diante de momentos históricos de aumento de um determinado crime, o legislador pensa que a melhor maneira de solucionar o problema é aumentar a lei penal. Esse é um entendimento histórico na América Latina, onde se legisla com base nos casos de comoção social. Diante do aumento de casos de criminalidade, queremos responder com aumento de pena ou redução da maioridade penal.
IHU On-Line – Quais são os argumentos favoráveis e contrários à redução da maioridade penal? Como esse tema está sendo discutido na área jurídica?
André Luís Callegari – Os argumentos favoráveis são mais emotivos e populistas. Temos de recordar que essa discussão voltou à tona por causa do assassinato de um jovem em São Paulo, em que o assaltante completaria 18 anos três dias depois. Isso acontece cotidianamente, mas como esse caso teve grande repercussão, os favoráveis dizem: “Temos de acabar com a violência, e para isso é preciso reduzir a maioridade penal”. Sabemos que essa mensagem é falaciosa, não tendo comprovação empírica. Aprovar a maioridade penal seria uma mera transferência física do lugar de cumprimento da pena. Transferiríamos fisicamente os menores da Fundação de Atendimento Socioeducativo – FASE para o Presídio Central. Temos um sistema penal falido na América Latina; a pena deveria ser ressocializadora e retributiva, mas não cumpre nenhum desses papéis. Hoje existem depósitos de presos e o Rio Grande do Sul é um exemplo disso. O Presídio Central é o novo Carandiru.
Não nos damos conta, e ninguém faz essa análise, mas muitas vezes o menor de idade cumpre uma medida socioeducativa mais dura do que uma pessoa penalmente responsável. Explico: o menor de 18 anos, quando pratica um delito, recebe a pena máxima de três anos de internação. No caso de um maior praticar um homicídio simples, a pena varia de seis a vinte anos. Se ele for condenado a seis anos e cumprir um sexto da pena, ficará preso por um ano e poderá trocar de regime, ficando no regime aberto. Quer dizer, ele sai mais cedo da prisão. Então, reduzir a maioridade penal é uma alternativa falaciosa porque queremos dar uma resposta à sociedade através do Direito Penal; esse não é o melhor caminho.
IHU On-Line – Os defensores da redução da maioridade penal argumentam que os jovens de 16 anos devem ser responsáveis pelos seus atos. Considerando a questão da responsabilidade, que alternativas existem diante dessa proposta?
André Luís Callegari – Onde o Estado não entra se estabelece outro tipo de relação. Estudos sociológicos realizados nas favelas do Rio de Janeiro demonstram por que as milícias tomaram conta. Então, não se pode atribuir tudo aoDireito Penal. Temos de dar oportunidades aos jovens que têm a violência como base de identidade social e cultural. Precisamos de políticas públicas para que eles possam ter educação, alimentação e política social. Essas medidas não são adotadas. Fala-se que o país está erradicando a miséria, mas se vende muita coisa boa e se esconde muita coisa ruim. Volto a insistir que na América Latina, quando índices de criminalidade de um determinado delito aumentam, a primeira solução do legislador não é verificar o que está acontecendo, mas dar uma resposta ao clamor social. Estatisticamente, nunca o aumento da pena ou a redução da idade penal foram a solução para o índice de criminalidade. Se assim fosse, nos países em que há pena de morte não existiriam crimes.
Há uma proposta em São Paulo de que, caso não se reduza a idade penal, se aumente o tempo de internação dos menores de três para oito anos. Aí eu pergunto: Por que se interna um menor por três anos? Porque se espera ter mais chance de recuperá-lo e reintegrá-lo à sociedade. Isso é mais difícil de acontecer com um regresso. Se aumentar o tempo de ingresso dos menores em um estabelecimento prisional com outro nome, porque a FASE tem as mesmas mazelas e problemas do presídio, a chance de recuperação será cada vez menor.
IHU On-Line – Qual a eficácia da Fundação de Atendimento Socioeducativo – FASE?
André Luís Callegari – O sistema que funciona na FASE é o mesmo sistema que funciona dentro do presídio. Existem as mesmas gangues, alguns são submetidos por força à vontade dos outros; há alguns que são forçados a assumir determinados atos infracionais lá dentro em nome dos outros; trata-se de um círculo vicioso.
Temos de pensar na política do egresso: o que é feito depois da internação? A FASE existe para reeducar e ressocializar os menores, mas muitas vezes eles nem entram socializados lá dentro. Então a proposta acaba sendo uma falácia. Seria preciso pensar num sistema que, após a saída, o menor pudesse de fato ser matriculado numa escola, ter um aprendizado técnico, ter uma oportunidade dentro da sociedade. Isso é muito difícil e esse é um investimento do Estado.
IHU On-Line – A solução é investir em outras questões, como trabalho e educação?
André Luís Callegari – Exato! O Estado tem que investir nisso. Há uma eclosão do sistema carcerário; todo mundo sabe disso. O Brasil está sendo condenado pelo Tribunal Internacional de Direitos Humanos, porque os presos estão aglomerados sem as condições mínimas de saúde, de higiene e de possibilidade de reinserção na sociedade.
É claro que o crime que aconteceu em São Paulo chocou, foi amplamente divulgado e criou essa comoção, essa sensação de impunidade. Isso acontece cotidianamente; uns são mais noticiados, outros menos. Acontece que, quando isso vem à tona com tanta força, a população evidentemente se revolta. E o que ela pede? Vingança através do Estado.
IHU On-Line – Quais as implicações sociais da redução da maioridade penal?
André Luís Callegari – A população tem de estar ciente de que todas as medidas endurecedoras que virão, caso a maioridade penal seja reduzida, não serão para casos já praticados. No aspecto sociológico, nós faríamos com que jovens de 16 anos (se fosse esse o limite estabelecido pelo legislador) ingressassem nas casas prisionais.
Aí vem outra preocupação: criaríamos uma ala especial dentro dessas casas prisionais, com um tratamento diferenciado? Porque por um sistema biológico que o Código Penal adota, consideramos que nessa fase de 16 anos, embora o jovem tenha o direito civil de votar, ele não atingiu a maturidade plena. O que fariam os outros presos em relação a esse jovem?
Todo esse aspecto social tem que ser avaliado porque nós não temos, dentro do sistema prisional, as condições de separarmos os presos primários, aqueles que estão ingressando, e os presos provisórios, que estão lá no sistema presos por uma decretação de uma prisão preventiva para uma investigação, dos presos condenados. Então, a minha pergunta sociológica é: Será que estamos fazendo bem ou mal ao reduzir a maioridade penal? Não estaremos colocando em contato com pessoas de alta periculosidade, jovens que ainda têm uma chance de recuperação?
IHU On-Line – Como resolver o problema da criminalidade e da superlotação dos presídios?
André Luís Callegari – Em primeiro lugar, temos de pensar que o Direito Penal sempre foi pensado como a última justificativa de uma sociedade. Precisamos ter outras medidas, alternativas que visem solucionar os conflitos. O Direito Penal nunca vai deixar de existir, porque é a forma de o Estado intervir na solução de conflitos.
O problema é que nós temos de ter também políticas públicas fortes nas áreas menos favorecidas e de investimentos para que essas pessoas possam ter as mesmas chances do que os outros em uma sociedade igualitária. Esse é um fato que nós não temos.
Em segundo lugar, continua existindo aquela ideia de que o Direito Penal atinge as pessoas menos favorecidas. Se fizermos um levantamento no sistema prisional brasileiro, vamos constatar que 1%, e talvez nem chegue a isso, da população carcerária são presos relativos a delitos econômicos, delitos com sistema financeiro nacional, delitos contra a ordem tributária, lavagem de dinheiro etc. 99% dos presos são de classes menos favorecidas. E isso tem uma explicação lógica: não punimos e não temos a força punitiva de atingir as classes mais altas que, também, através do desvio de dinheiro público, de recursos, de medicamentos, acabam matando indiretamente muita gente.
Acontece que esses delitos não têm repercussão, porque não são delitos de sangue, como nós dizemos, não são delitos de interesse da mídia. O que acaba acontecendo é que nós nos focamos sempre nos delitos com violência ou grave ameaça à pessoa. Como resolver esse problema? Não há uma solução mágica para isso. Efetivamente as penas não vão diminuir a criminalidade. Temos de investir para que essas pessoas saiam da zona de marginalidade e possam conviver socialmente com os mesmos direitos e garantias individuais que as outras pessoas têm.

segunda-feira, 15 de abril de 2013

O governo é melhor que o povo? (Renato Janine Ribeiro)


Será nosso governo melhor, em termos democráticos, do que o povo? Esta espantosa pergunta é inevitável para quem lê o importante relatório anual da Economist Intelligence Unit, "Democracy Index 2012", que conheci graças a Clóvis Rossi, o primeiro e até agora um dos raros a comentá-lo em nossa imprensa. Mas achei Rossi pessimista demais, ao frisar que o Brasil não melhorou de ranking nos últimos anos, continuando uma democracia com falhas ("flawed") - e pessimista de menos, ao não salientar o que mais me preocupou no levantamento: somos reprovados com notas baixas em cultura política (nota 4,38) e participação política (nota 5), justamente os pontos que mais dizem respeito ao povo do que ao governo.

Insisto: são nossas instituições políticas melhores que o povo? Não saímos mal no ranking final, pois estamos no mesmo estrato que uma das três pátrias da democracia moderna, a França, cuja média final (7,88) é pouco superior à nossa (7,12). Ela pontua pior que nós no quesito "funcionamento do governo"; empatamos (com 9,58) em "processo eleitoral e pluralismo". O que derrubou a França e a zona euro foi a atual crise econômica. Já nós, em 28 anos, passamos da ditadura à democracia.

Por que o governo é bem avaliado e também o sistema eleitoral? Há pelo menos duas definições de governo nas pátrias da democracia. Na França, o "governo" é chefiado pelo primeiro-ministro. Consiste no Poder Executivo, mas sem o Presidente da República, que tem mandato próprio e, quando há coabitação - isto é, quando ele é do partido oposto ao do "governo" -, controla as relações exteriores e a defesa. Já nos Estados Unidos, o governo tem três ramos, Executivo, Legislativo e Judiciário. Aqui, a nota dada ao governo parece incluir os três - mas, deles, o Legislativo é o menos atuante. Na verdade, a nota positiva do País se concentra nas instituições. A Constituição é boa, sendo cada vez mais aplicada, o sistema eleitoral é livre e justo.

Nossa participação política é bastante pobre

É bom, é mau as instituições serem mais consistentemente democráticas do que o povo? Instituições sólidas são cruciais para a democracia. São elas que lhe dão duração. Impedem que paixões ou vitórias momentâneas mudem tudo. Vejam como Chávez mudou por completo as instituições venezuelanas, enquanto as brasileiras são estáveis há décadas. Mas, por outro lado, é o povo que dá vida a elas. Se não houver empenho dele - e em especial se ele não tiver a convicção de que é democrático discordar, de que o adversário não é inimigo, a quem devemos destruir, nem bandido, a quem devemos privar dos direitos políticos e civis - leis e órgãos de governo serão carcaças vazias. Penso que, quase trinta anos após o fim da ditadura, a permanência da democracia se deve mais à fraqueza das tendências autoritárias, do que a uma consciência popular de que ditadura não deveríamos - nunca mais - ter.

Mas onde pontuamos mal? Vamos esmiuçar. Nosso 5 em participação política vem dos seguintes fatores, segundo o Economist: as mulheres não chegam a 10% dos assentos no Congresso; é baixo o engajamento dos cidadãos na política, sua participação em manifestações públicas, seu interesse pela política, medido em sondagens e pesquisas; poucos acompanham a política pela mídia; o voto é obrigatório; as autoridades se empenham pouco em promover a participação política. Desses itens, só o último responsabiliza diretamente o governo (o penúltimo, as instituições).

Já na cultura política, onde estaríamos ainda pior, com 4,38, discordo da avaliação do Economist. Aqui os pontos principais seriam se preferimos ter um governo militar, tecnocrata ou um ditador - não preferimos. Nem penso que os brasileiros considerem a democracia ruim para a economia; mas pode ser, sim, que não a considerem capaz de conter a criminalidade. Nesses pontos, o Brasil deveria pontuar melhor do que 4,38. Em suma, com base no relatório mas corrigindo-o neste ponto (desculpo-me pela pretensão), nossa cultura política seria fraca em dois pontos principais, estratégicos, mas talvez só neles: primeiro, a dificuldade de aceitarem, os eleitores, um real pluralismo político. Quer dizer: a dificuldade de aceitar que o "outro lado", nosso opositor nas eleições, também é decente e honesto, e que divergimos dele por convicções políticas, não porque somos do Bem e ele é do Mal. Segundo, uma crescente influência das Igrejas - cada vez mais as evangélicas - sobre o Estado e o poder público.

Deputado Feliciano. Para defendê-lo na presidência da Comissão de Direitos Humanos, alguns argumentam que ele é o legítimo representante de seu eleitorado. Errado. Primeiro: o fato de representar um segmento do eleitorado brasileiro não o credencia para representar a sociedade como um todo, incumbência dos presidentes de comissões. Segundo: mesmo nas democracias, a eleição de um representante está limitada por preceitos constitucionais, que em vários casos proíbem a pregação do ódio e da discriminação. Por exemplo, a Alemanha proíbe a atividade política de nazistas. Democracias podem barrar a propaganda do preconceito.

Uma coisa é respeitar o oponente, não o demonizar, como tenho defendido que façam petistas e tucanos. Outra coisa é sair do âmbito democrático, negando as bases da democracia. A excessiva condescendência com os anti-democratas na Alemanha, entre 1919 e 1933, destruiu seu sistema político. Quem prega contra direitos humanos básicos deve ser responsabilizado por isso. Porque, se a democracia é uma planta tenra, como dizia Otavio Mangabeira, ela deve ser protegida de quem a quer destruir.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.

Fonte: Valor Econômico

Dilma e os 40 ministros (Fernando Gabeira)

 
É muito difícil fazer a revolução, é muito difícil vencer, mas as dificuldades mesmo começam quando se chega ao governo - essa frase é de um personagem do filme A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo. Sempre me interessei pelo tema na literatura que descreve as transformações na cabeça das pessoas que alcançam o poder. O personagem de Pontecorvo referia-se a uma guerra de libertação nacional contra o colonialismo francês, algo muito mais dramático do que a vitória da esquerda brasileira em 2002.

Minha experiência no Brasil me leva a ressaltar um ponto decisivo na corrosão dos objetivos estratégicos - quando existem - dos vencedores de uma luta prolongada: o desejo patético de continuar no poder, desde o primeiro dia em que nele se instalam. A contradição entre o discurso modernizador e as atitudes do governo fica muito mais clara no período eleitoral, embora exista todo o tempo.

Dilma Rousseff convidou o empresário Jorge Gerdau para colaborar na racionalização administrativa do governo. Gerdau foi decisivo na modernização do governo do Estado do Rio de Janeiro. Temos uma dívida de gratidão com ele, que investiu dinheiro do próprio bolso no projeto. O único efeito colateral dessa operação bem-sucedida foi o aumento do prestígio do governador Sérgio Cabral. Nada de muito grave que não pudesse ser anulado com uma noitada em Paris, a bajulação do dono da Delta, guardanapos amarrados na cabeça e as mulheres exibindo os sapatos Christian Louboutin como se dançassem um passo de cancan.

Apesar de todo o trabalho de Gerdau, Dilma criou mais ministérios. Oficialmente temos 39. Com o marqueteiro João Santana funcionando como ministro especial, podemos chamá-los de a presidente e seus 40 ministros. A racionalidade foi para o espaço porque existe apenas o patético desejo de continuar no poder.

Como se não bastasse, Dilma resolveu prolongar a redução do IPI dos carros até o fim do ano. Qualquer pessoa sensata que ande pelas ruas das metrópoles brasileiras sabe que estamos chegando ao limite e a falta de mobilidade urbana é um grande desafio à produtividade nacional. Isso para não mencionar os portos, como o de Santos, com filas quilométricas de caminhões. Não conseguimos exportar nossa produção com fluidez, a mercadoria adormece no asfalto. E quando importada de avião não consegue ser liberada pela burocracia.

É surpreendente como uma esquerda que se inspirou no marxismo, mesmo sem o ter lido bem, com raríssimas exceções adota o caminho irracional com tanta naturalidade. Falando com um americano do setor de petróleo, ele se mostrou perplexo com a decisão da Petrobrás de comprar uma refinaria em Pasadena, nos EUA. O equipamento é superado, custou alguns milhões de dólares mais do que valia e nos deixou com o mico nas mãos. Não posso afirmar que essa irracionalidade esteja ligada às eleições, assim como a tentativa de entregar ilhas do patrimônio nacional ao ex-senador Gilberto Miranda. Mas se alguém ganhou dinheiro com o negócio desastroso, os dólares têm toda a possibilidade de aparecer nas campanhas.

Muitos gostam de enriquecer, comprar imóveis em Miami, alugar aviões, etc... Mas o dinheiro da campanha é sempre sagrado: the show must go on. Isso num contexto geral mais obscuro, em que eleitoralmente é possível saber quem ajuda o governo, mas, pelo fechamento do BNDES, é impossível saber quem o governo ajuda.

O trânsito para a total irracionalidade é mais nítido na esquerda venezuelana, que usa o mesmo marqueteiro do PT. Num dos anúncios criados por Santana, Hugo Chávez aparece no céu encontrando-se com Che Guevara, Simón Bolívar. Nicolás Maduro, o candidato chavista, vai mais longe: afirma que o comandante Chávez reaparece em forma de passarinho quando se reza por ele. Breve teremos passarinhos trinando nos campos verdes, a encarnação de Chávez protegendo nosso sono, aconselhando-nos nos dilemas cotidianos e, claro, batendo pesado na oposição.

Como foi possível sair da leitura de Marx para um realismo fantástico de segunda categoria? Como foi possível do caldo das teses de Marx sobre Feuerbach, mostrando a origem social do misticismo, ou do tempero de A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, a crença de que exista um canto no céu onde se encontram os ícones da esquerda latino-americana e que eles viram passarinho para nos indicarem o caminho da libertação? Mesmo sem parecer muito inteligente, não creio que Maduro leve a sério essas histórias da transfiguração de Chávez.

No caso de Lula, posso falar com mais propriedade. Ao nomear Dilma a mãe do PAC, houve uma nítida inflexão em suas ideias sobre o mundo. Lembro-me de que em 2002, na Caravana da Cidadania, ao visitarmos São Borja, onde Getúlio Vargas está enterrado, Lula hesitou em levar flores ao seu túmulo. "Não seria fortalecer um populismo desmobilizante?", perguntou. Certamente Lula não acredita que a sociedade democrática seja uma réplica da família, na qual os governantes fazem o papel dos pais e os eleitores, de filhos obedientes.

A verdade é que a esquerda no poder deixou para trás muitas convicções. Oscila entre o paternalismo e o misticismo religioso. Suas fontes não são apenas as religiões de origem cristã. Inconscientemente, já pratica o vodu, sobretudo a ouanga, um feitiço para envenenar simbolicamente os adversários por intermédio de seus sacerdotes eletrônicos. Não percebe que o destino final de seu sonho de poder é a criação de uma nação de zumbis, manipulando gadgets, povoando supermercados, mentalmente mortos por falta de oxigênio no cérebro.

Em vez de avançar por meio da prática e da autocrítica, de aprender com os próprios erros e contribuir para o alargamento do horizonte intelectual, a esquerda em alguns países latino-americanos optou pelo atraso e pela superstição simplesmente porque tem pavor de perder o governo, como se não houvesse vida fora dele. Assim, uma jovem rebelde dos anos 60 se transformou na Mãe Dilma, apoiada pelo Pai Lula, e seu 40.º ministro produz filmes sobre a esquerda no céu para os herdeiros de um passarinho chamado Chávez.

* Fernando Gabeira é jornalista.

Fonte: O Estado de S. Paulo

Em busca da Brasileia prometida (Marina Silva)

Ex-ministra fala da pequena cidade acreana onde nasceram as reações contra o desmatamento e hoje abriga, como pode, mais de mil haitianos

Acompanho com atenção e preocupação as notícias da grande crise que atravessa a humanidade. Em toda parte há problemas: guerra, miséria, falência econômica e os desastres provocados pelas mudanças no clima. As sociedades mobilizam-se, buscam soluções, experimentam alternativas e cobram de seus governos ações e estratégias para viver nesta era de incertezas. Nesses movimentos e suas novas utopias procuro ancorar minhas esperanças.

Mas meu coração - devo confessar - voltou a ficar apertado com as notícias que chegaram de minha terra natal, onde, por estes dias, agravou-se uma situação que já dura dois anos. Na pequena cidade de Brasileia, no Acre, mais de mil imigrantes haitianos arrumam-se como podem num abrigo precário e sobrevivem com alimentos doados pelo governo estadual. São comoventes as imagens de sua pobreza e o olhar espantado de suas inúmeras crianças, lançadas numa vertiginosa mudança que não compreendem.

Mais dramática que a situação que encontram hoje em Brasileia é a memória do caminho que percorreram para chegar ali. Deixam sua pequena ilha natal em um barco que os leva até o Panamá. Daí seguem como podem, cruzando o Equador até chegar ao Peru, depois Bolívia. Atravessam florestas e montanhas, transportados como gado, clandestinos, explorados por traficantes de gente, vítimas de todo tipo de violência, expostos a doenças e acidentes, num caminho desconhecido que termina nas margens de um rio. Do outro lado está um país luminoso, uma terra de promessas, onde sonham refazer suas vidas e de suas famílias, devastadas por uma longa história de desgraças.

Não preciso descrever o Haiti, que conhecemos das notícias: uma ilha no Caribe em que uma população pobre, de origem majoritariamente africana, viveu por longos anos sob uma das ditaduras mais cruéis e tornou-se um símbolo mundial de miséria. Caetano Veloso, ao cantar a violência nos guetos e prisões brasileiras, denunciou a dubiedade que vivemos, em nossa sociedade cindida, na qual o Haiti é e não é aqui. Respiramos aliviados por não ter sido aqui o terrível terremoto que devastou a ilha e interrompeu milhares de vidas, entre elas a de nossa inesquecível Zilda Arns, que lá estava em sua missão de solidariedade. Seguiram-se as epidemias de doenças como a cólera e uma fome ainda maior, que a passageira e superficial solidariedade do mundo não consegue saciar. De tudo isso fogem os haitianos, em busca de um lugar não seja o Haiti.

É necessário, entretanto, que eu descreva Brasileia para um Brasil que não se conhece. Tantas vezes estive naquela pequena e agradável cidade, em companhia de Chico Mendes e outros companheiros de luta seringueira. Ali nasceram os "empates" contra o desmatamento, liderados por Wilson Pinheiro, que foi assassinado na sede do sindicato, um casarão de madeira ao lado de uma pracinha deserta, quase um terreno baldio. Brasileia era movimentada pelo comércio com a cidade boliviana de Cobija, que se avistava do outro lado do rio com seus prédios de alvenaria em antigas ruas calçadas com pedras trazidas das montanhas. Do lado de cá, paralela ao rio, a rua do comércio de Brasileia era adornada com árvores podadas de fícus-benjamin, em cuja sombra parávamos para tomar raspadilha ou picolé, nos intervalos das reuniões.

Muitas vezes alertamos o governo brasileiro: antes de pavimentar a estrada que leva ao Oceano Pacífico, era necessário proteger a floresta, demarcar as terras indígenas, diminuir as desigualdades sociais, pois a miséria e a violência certamente aumentariam com a exposição de uma sociedade frágil aos tráficos intensos de uma fronteira aberta. Não fomos ouvidos. Depois de Wilson, foram mortos vários companheiros, até Chico Mendes. Disseram que éramos contra o progresso, a produção agrícola, a carne farta e barata, os produtos importados que tirariam a Amazônia do atraso.

Assim, a outrora pacata Brasileia e suas vizinhas, a boliviana Cobija e a brasileira Epitaciolândia, assim como Xapuri, Assis Brasil, Plácido de Castro e todas as pequenas cidades do interior e da fronteira, transformaram-se em pontos de aglutinação do êxodo rural. Suas periferias inchavam e desinchavam a cada ano, com as famílias expulsas a ferro e fogo dos seringais, que ali paravam algum tempo antes de rumarem para a capital, Rio Branco, em que formariam novas e precárias periferias. Muito antes de chegar, o Haiti já estava aqui.

No início deste século, alguma coisa melhorou. A chegada de antigos companheiros de Chico Mendes ao governo do Acre e do Brasil diminuiu, por alguns anos, o ritmo da devastação e as desigualdades sociais. Os problemas permanecem e são muitos, mas há ao menos uma estrutura básica em que os serviços do Estado podem alcançar a população. Um alojamento precário e três refeições por dia o governo do Acre pode dar aos haitianos que atravessam a fronteira, algum atendimento à saúde e o transporte dos que conseguem se legalizar para que alcancem o mercado de trabalho em Porto Velho, Manaus ou Cuiabá.

Já se passaram dois anos desde que os primeiros imigrantes haitianos chegaram ao Acre. Mais de 4 mil deles passaram por ali e hoje estão espalhados pelo Brasil. O atendimento foi feito quase todo pelo governo do Estado, pois a ajuda do governo federal foi pouca e insuficiente, tanto no repasse de recursos quanto na articulação institucional. Nessa semana, a situação agravou-se a ponto de o governador Tião Viana decretar estado de emergência social e o senador Jorge Viana clamar publicamente pela atenção dos ministros e demais autoridades nacionais.

Finalmente, foi formada uma equipe interministerial e uma força-tarefa para acolher, atender, regularizar e encaminhar os imigrantes. Não é tão difícil para o Brasil. Mil ou 2 mil pessoas é um número pequeno se comparado ao volume total da migração entre o Brasil e os Estados Unidos ou a Europa. Temos 50 mil brasileiros ali mesmo ao lado do Acre, na Bolívia. Mais de 200 mil brasileiros vivem no Paraguai. E quantos milhares de bolivianos e paraguaios vivem em São Paulo?

Ajuda e 'ajuda'

O Brasil é um país aberto, com sua história pontuada por grandes imigrações e um antigo trabalho institucional com o trânsito de populações. Pode ajudar os haitianos, começando por fornecer apoio efetivo ao Estado do Acre e a seu povo, que é hospitaleiro, mas tem muitas limitações. Brasileia tem pouco mais de 20 mil habitantes. Seus equipamentos não suportam uma demanda tão grande e imediata.

Mas a ajuda que o País pode dar vai muito além do acolhimento aos imigrantes. Ela deve distinguir-se da "ajuda" internacional que vemos diariamente no noticiário, especialmente dirigida aos países africanos. Uma comitiva de governantes e empresários de um país economicamente emergente visita uma região mergulhada em crise social, oferece pequenas dádivas destinadas mais a manter do que superar a pobreza e aproveita para fazer bons negócios. A antiga expansão colonial disfarçada de solidariedade.

A ajuda real deve partir da realidade sociocultural local, com a internalização de conhecimento e tecnologia, reforço à educação, respeito e estímulo à autonomia, investimentos com retorno para a população local em médio e longo prazo. Não deve ser uma forma de competição para ampliar áreas de influência, mas deve reforçar as negociações multilaterais e os compromissos estratégicos da agenda mundial para vencer os desafios do século.

Um imperativo ético foi construído, nos últimos séculos, e se expressa na noção de humanidade. Vivíamos separados em povos isolados, Estados nacionais beligerantes, economias em competição, identidades culturais marcadas por um espírito defensivo e com necessidade de autoafirmação. A humanidade não se sentia inteira. Tudo está mudando rapidamente, com a interdependência econômica, a comunicação instantânea, as trocas e misturas multiculturais. Até mesmo as guerras e revoluções do século 20 levaram a uma emergência da humanidade, transbordando os limites dos Estados nacionais. Cada povo ou nação pode agora compreender-se como parte de um todo, cada pessoa pode sentir-se humana ao mesmo tempo que brasileira ou japonesa, asiática ou europeia. Realizam-se os versos de John Donne: "Nenhum homem é uma ilha".

É como humanidade, não apenas como Estados ou sociedades, que enfrentamos hoje nosso maior desafio: a mudança no clima do planeta em que vivemos. Ninguém está isento; até mesmo as poucas comunidades indígenas isoladas nos confins da floresta amazônica sofrem os efeitos da grande mudança. E não adianta construir torres, castelos, bolhas, qualquer tipo de abrigo ou defesa tecnológica. Foram encontrados no litoral dos Estados Unidos objetos e até motocicletas arrastados pelo tsunami desde o Japão. A água da chuva na Argentina vem, em nuvens, dos rios afluentes do Amazonas. A poluição da China sopra no vento do Saara. A Terra não tem fronteiras.

Eis o Haiti. Seus imigrantes são refugiados ambientais, como as populações que fogem da seca, das enchentes ou do gelo, em todos os continentes. Chegam ao Brasil pela Amazônia, justamente ao Acre, que quase todos os anos tem de abrigar milhares de famílias desalojadas de suas casas pelas enchentes dos rios. Talvez tenham que encontrar emprego no Nordeste, cujo povo pede socorro numa seca que, de tão longa, já se torna permanente. Ou no Sul castigado pelas geadas.

A responsabilidade é nossa. E também do Peru, da Bolívia, Equador, Panamá, de todos os países em que passam os haitianos em seu roteiro de fuga. A diplomacia brasileira precisa ajudar a liderar um esforço internacional pela solidariedade e pela garantia dos direitos humanos desses imigrantes.

Não há mais "eles", agora somos todos "nós". Haitianos.

* Marina Silva é ex-senadora pelo Acre e ex-ministra do Meio Ambiente

Fonte: O Estado de S. Paulo / Aliás (14/04/13)

segunda-feira, 8 de abril de 2013

10 anos de PT no governo e o desafio de uma esquerda socialista de massas. (Valter Pomar)

"O governismo ainda é dominante no PT. Muita gente no Partido ainda não aprendeu a diferenciar o ser governo do ser governista. É óbvio que o PT deve defender, sustentar, apoiar seus governos. Mas o papel do PT vai além disso", constata o membro do Diretório Nacional do PT.

“O governismo ainda é dominante no PT. Muita gente no Partido ainda não aprendeu a diferenciar o ser governo do ser governista. É óbvio que o PT deve defender, sustentar, apoiar seus governos. Mas o papel do PT vai além disso. Os governos de coalizão, como foram os governos Lula e como é o governo Dilma, são governos em disputa. Cabe ao PT disputar seus governos, o que supõe perceber as diferenças entre governo e partido, evitando o governismo que confunde um e outro. E cabe ao PT disputar a sociedade, para acumular forças em favor de seu projeto programático, estratégico, histórico. Se não fizermos isso, vamos acabar transformando o programa mínimo de um governo de coalizão, no programa máximo do partido. Infelizmente, amplos setores do PT cometem este erro, consciente ou inconscientemente”.

A reflexão é do secretário executivo do Foro de São Paulo, Valter Pomar, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line, onde defende que é preciso derrotar o discurso segundo o qual nosso objetivo é ser um “país de classe média”, “assim como esta besteira sociológica e política segundo a qual nos dez anos de governo petista milhões ‘ascenderam para a classe média’. Os que melhoraram de vida, desde 2003, são na esmagadora maioria classe trabalhadora. E devem ser vistos assim, chamados por este nome e convocados a se organizar, pensar e agir como tal”.



Valter Pomar é historiador formado pela Universidade de São Paulo – USP e mestre e doutor em História Econômica pela mesma instituição. Foi secretário de Cultura, Esportes, Lazer e Turismo da prefeitura municipal de Campinas de 2001 a 2004. É membro do Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores e secretário-executivo do Foro de São Paulo.


Confira a entrevista.

IHU On-Line – De forma geral, como o senhor avalia os dez anos do PT diante do governo federal?

Valter Pomar – Eu faço uma avaliação positiva, porém crítica. Positiva, porque estamos melhor – política, econômica e socialmente – do que estávamos sob o governo FHC e porque estamos muito melhor do que estaríamos se Serra ou Alckmin tivessem vencido alguma das três últimas eleições presidenciais. Crítica, porque ainda não conseguimos superar a herança neoliberal, porque não conseguimos fazer as reformas estruturais necessárias para superar o desenvolvimentismo conservador e, principalmente, porque não estamos conseguindo implementar algumas tarefas estratégicas, a saber: a reforma política no sentido amplo da palavra, a democratização da comunicação social, a politização e organização dos setores que ascenderam socialmente durante estes dez anos, bem como das novas gerações. Tarefas nas quais o governo joga algum papel, mas que no essencial são tarefas que devem ser conduzidas pelo Partido.

IHU On-Line – O que os dez anos de governo federal encabeçado pelo PT tiveram de governo democrático-popular?

Valter Pomar – A expressão democrático-popular pode ter vários significados. Se for no sentido empregado pelas resoluções do PT nos anos 1980, a resposta é: nada. Pois governo democrático-popular, no sentido empregado por aquelas resoluções, seria aquele governo que faz reformas estruturais no país, reformas de sentido antilatifundiário, antimonopolista, anti-imperialista. Se adotarmos um ponto de vista mais amplo, segundo o qual governo democrático-popular seria aquele que adota um modelo de desenvolvimento oposto ao desenvolvimentismo conservador que vigorou no Brasil entre 1930 e 1980, poderíamos dizer que nestes dez anos ensaiamos algo nesse sentido. Mas acho que o mais adequado é reconhecer que nestes dez anos fizemos um governo de centro-esquerda, no interior do qual trabalhamos para superar a herança neoliberal.

IHU On-Line – Quais os riscos de se cair em um esquerdismo a partir das diferenças políticas existentes dentro do PT e dentro da esquerda política brasileira de forma geral?

Valter Pomar – O esquerdismo é residual no PT, mas está presente em outros setores da esquerda brasileira. De maneira muito simplificada, o esquerdismo consiste em considerar o governo Lula e/ou o Partido dos Trabalhadores como inimigo principal ou, pelo menos, como aliado do inimigo principal, como aliado do imperialismo e do grande capital. Trata-se de um equívoco similar ao que foi cometido pelos comunistas frente ao segundo governo de Vargas. Há formas mitigadas de esquerdismo, por exemplo, entre setores da intelectualidade brasileira, que organizam sua análise da realidade a partir de uma premissa falsa, a saber: a de que o PT seria a força hegemônica na sociedade brasileira, confundindo governo com poder e, por tabela, atribuindo ao Partido dos Trabalhadores a responsabilidade por uma situação que decorre da hegemonia realmente existente. É bom lembrar sempre: ainda vivemos num país marcado pela herança neoliberal, hegemonizado pelo grande capital e pelas forças de centro-direita. Isso não quer dizer, obviamente, que o PT não possa e não deva ser criticado, especialmente quanto à maneira como ele busca superar a herança neoliberal e a hegemonia da centro-direita e do grande capital.

IHU On-Line – Em que medida o governismo teve espaço nesses dez anos de esquerda no poder no Brasil?

Valter Pomar – O governismo ainda é dominante no PT. Muita gente no Partido ainda não aprendeu a diferenciar o ser governo do ser governista. É óbvio que o PT deve defender, sustentar, apoiar seus governos. Mas o papel do PT vai além disso. Os governos de coalizão, como foram os governos Lula e como é o governo Dilma, são governos em disputa. Cabe ao PT disputar seus governos, o que supõe perceber as diferenças entre governo e Partido, evitando o governismo que confunde um e outro. E cabe ao PT disputar a sociedade, para acumular forças em favor de seu projeto programático, estratégico, histórico. Se não fizermos isso, vamos acabar transformando o programa mínimo de um governo de coalizão, no programa máximo do partido. Infelizmente, amplos setores do PT cometem esse erro, consciente ou inconscientemente.

IHU On-Line – Como, nesses dez anos, a esquerda petista reagiu diante da crise do socialismo soviético e da social-democracia?

Valter Pomar – A crise do socialismo soviético foi espetacular, aguda e é um fenômeno dos anos 1980, início dos anos 1990. Já a crise da social-democracia é um processo mais lento, arrastado, crônico, que vem dos anos 1980 e se estende até hoje, haja vista o desmonte do chamado Estado de bem-estar social europeu. As duas crises foram acompanhadas pela crise do desenvolvimentismo e do nacionalismo revolucionário. E, é claro, pela ofensiva neoliberal. O resultado disso tudo foi colocar a esquerda mundial num ambiente de defensiva estratégica. Todos fomos obrigados a dar dois passos atrás. Mas alguns foram além disso, e mudaram suas posições: comunistas viraram social-democratas, revolucionários viraram reformistas, social-democratas transformaram-se em social-liberais, desenvolvimentistas viraram neoliberais, nacionalistas viraram entreguistas. De maneira geral, o PT saiu-se relativamente bem do processo, pois não rompemos os vínculos com a classe trabalhadora, não abjuramos o socialismo e a esquerda, e também por isso conseguimos, nadando contra a corrente, fazer o Partido ampliar sua força eleitoral-institucional. Agora, é evidente que dentro desses marcos houve setores do PT que não apenas mudaram de posição, também mudaram de lado. Alguns, menos relevantes, saíram do PT e passaram a fazer parte do tucanato. Outros permaneceram dentro do Partido, defendendo posições social-liberais e propondo, por exemplo, uma aproximação estratégica com o PSDB. No início do governo Lula, estes setores tiveram muita força, hoje perderam grande parte de sua influência.

IHU On-Line – Em que consiste o déficit teórico da esquerda em nosso país?

Valter Pomar – A esquerda mundial, não apenas a brasileira, possui um déficit teórico em três âmbitos principais: na compreensão do capitalismo do século XXI, na análise das experiências socialistas ocorridas no século XX e no debate acerca da estratégia. No caso específico do Brasil, isso se traduz numa baixa compreensão acerca da sociedade brasileira hoje. Prova disso é que as grandes e melhores referências de análise do Brasil seguem sendo nomes como Sérgio Buarque, Caio Prado Jr., Werneck Sodré, Celso Furtado e Florestan Fernandes. Sem entrar no mérito das contribuições de cada um, é mais do que claro que o Brasil por eles investigado é diferente do atual. E para ser mais preciso: nossa compreensão acerca das classes sociais e da luta de classes no Brasil está totalmente defasada. É em parte por isso que um partido socialista e de trabalhadores, como somos nós do PT, estamos crescentemente hegemonizados por posições desenvolvimentistas. Que são, é bom dizer, muito melhores do que o social-liberalismo. Mas são muito menos do que o PT desejava nos anos 1980 e, sobretudo, são totalmente insuficientes para enfrentar os problemas postos para o país, neste momento de crise do capitalismo mundial.

IHU On-Line – Como as transformações nas classes sociais brasileiras, principalmente a classe média, contribuem para os novos movimentos da esquerda no país?

Valter Pomar – A estrutura de classes existente na sociedade brasileira, nos anos 1970, foi revirada três vezes: primeiro pela crise do desenvolvimentismo, depois pelo neoliberalismo e, agora, pelas políticas adotadas nesta década de governos encabeçados pelo PT. A classe trabalhadora não é mais a mesma, assim como os capitalistas não são mais os mesmos. E os setores médios – termo bastante inadequado, que inclui desde trabalhadores de alta renda capazes de assalariar outros trabalhadores, até pequenos proprietários que funcionam num esquema de produção familiar – também sofreram grandes transformações.

Em minha opinião, a esquerda deve atentar para três aspectos. Primeiro, determinar melhor quem é a fração dominante na classe capitalista, ou seja, quem é nosso inimigo principal. Há um pensamento vulgar que identifica esta fração como “os banqueiros”, quando na verdade a fração dominante é financeira, com tentáculos por todos os ramos de atividade. Em segundo lugar, devemos identificar os diferentes setores da classe trabalhadora e determinar quais são os setores cuja organização é especialmente estratégica. Os metalúrgicos foram isso nos anos 1970 e 1980. E agora? Em terceiro lugar, é preciso analisar cada um dos setores que o senso comum designa como classes médias, pois ganhar para nosso lado ou pelo menos neutralizar estes setores é algo decisivo para o sucesso de um projeto democrático, popular e socialista. Tudo isso supõe, é claro, derrotar este discurso segundo o qual nosso objetivo é ser um “país de classe média”, assim como esta besteira sociológica e política segundo a qual nos dez anos de governo petista milhões “ascenderam para a classe média”. Os que melhoraram de vida, desde 2003, são na esmagadora maioria classe trabalhadora. E devem ser vistos assim, chamados por este nome e convocados a se organizar, pensar e agir como tal.

IHU On-Line – O que o senhor caracteriza como o pensamento de esquerda hoje?

Valter Pomar – Entendo que há várias esquerdas no Brasil. Do ponto de vista programático, do ponto de vista das ideias, há pelo menos quatro esquerdas. Há uma esquerda social-liberal, que está na esquerda, mas deixando de sê-lo. E há também uma esquerda desenvolvimentista, uma esquerda social-democrata e uma esquerda socialista. Esta última é minoritária, está espalhada em várias organizações distintas e, além disso, sofre grande influência do esquerdismo.
Nosso desafio é voltar a ter uma esquerda socialista de massas, que seja capaz de vincular três movimentos: as tradições populares contra o desenvolvimentismo conservador, a luta das classes trabalhadoras por políticas públicas que melhorem a vida do povo aqui e agora, e a luta socialista contra o capitalismo.
A aposta que fazemos é que, dado seus vínculos com a classe trabalhadora, o petismo já foi e ainda é quem tem melhores condições de ser esta esquerda socialista de massas, à condição de que derrotemos as posições social-liberais e que enquadremos as posições desenvolvimentistas e social-democratas existentes no interior do Partido. Se não tivermos êxito, voltaremos à condição do período pré-surgimento do PT, em que a esquerda socialista era uma força minoritária, oscilando entre o sectarismo e o adesismo.

IHU On-Line – Que tipo de reformas estruturais devem ser realizadas para que se supere o desenvolvimentismo conservador?

Valter Pomar – O desenvolvimentismo conservador produz um crescimento econômico marcado por três características principais: a dependência externa, a desigualdade social e o conservadorismo político. E sua base social atual está na aliança entre as distintas frações do empresariado capitalista, com parcelas dos setores médios e dos trabalhadores assalariados. O que chamamos de reformas estruturais? Exatamente aquelas ações que afetam, atingem, desfazem o poder econômico, político e ideológico do empresariado capitalista; e que, pelo contrário, fortalecem os setores sociais dominados. Por exemplo, reforma tributária, reforma agrária, reforma urbana, políticas sociais universalizantes, quebra dos grandes monopólios privados, democratização da comunicação social, reforma do Estado, inclusive reforma política, integração regional etc.

IHU On-Line – Como definir a esquerda política latino-americana? Nossa experiência atual tem mais a aprender com Allende ou com Che Guevara?

Valter Pomar – A esquerda latinoamericana são várias. O que nos unifica? Por um lado, a luta contra o neoliberalismo, por outro lado a defesa da integração regional. Agora, apesar das diferenças, as esquerdas latino-americanas atuam em marcos históricos distintos daqueles que, em outras épocas, permitiram adotar a insurreição, a guerra popular e a guerra de guerrilhas como vias de tomada do poder. Os processos que estamos vivendo, desde 1998, na América do Sul, principalmente, enfrentam dilemas que já foram vistos noutras situações, por exemplo, durante o governo da Unidade Popular chilena. Claro que atuamos em uma situação histórica distinta daquela existente em 1970-1973.
Porém as questões fundamentais a estudar e debater não se alteraram: a composição e o programa do bloco histórico popular; a combinação entre a presença no aparato de Estado e a construção de um contrapoder, especialmente no caso das Forças Armadas; como lidar com a atitude das classes dominantes, que, frente a ameaças a sua propriedade e a seu poder, quebram a legalidade e empurram o processo em direção a situações de ruptura; a maior ou menor maturidade do capitalismo existente em cada formação social concreta e a resultante possibilidade de tomar medidas socialistas.
A grande novidade, que incide sobre os termos da equação acima resumidos, é a constituição, entre 1998 e 2013, de uma correlação de forças na América Latina que permite limitar a ingerência externa. Enquanto exista esta situação, será possível especular teórica e praticamente acerca de uma via de tomada do poder que, ainda que também revolucionária, seja diferente da insurreição e da guerra popular. Claro que temos muito a aprender com Che. E também com Lenin, Mao etc. Mas esse aprendizado será mais útil, se entendermos que operamos numa situação histórica que tem mais parentesco com a vivida pela Unidade Popular chilena do que com a vivida pela Cuba de 1953-1959.

IHU On-Line – O que deveria ser levado em conta ao se fazer um balanço das experiências socialistas, social-democratas e nacional-desenvolvimentistas do século XX?

Valter Pomar – Tem muita coisa a levar em conta, mas o fundamental é perceber como o capitalismo se adaptou, cercou, sufocou, deformou e limitou cada uma destas experiências. Dizendo de outra maneira: para nós que defendemos superar o capitalismo, é preciso descobrir como o vírus sofre mutações que o fazem sobreviver. Claro que o problema se coloca de maneiras diferentes. O nacional-desenvolvimentismo não era anticapitalista; algumas de suas variantes buscavam ser anti-imperialistas. Já a social-democracia era originalmente anticapitalista, assim como o comunismo soviético. Ambos tiveram que construir modus vivendi com o capitalismo, sendo que no caso do comunismo soviético havia o propósito de conviver para superar em definitivo o capitalismo.
Mas o que ocorreu ao final das contas foi o contrário: o capitalismo sobreviveu. A pergunta é: por quais motivos? E o que pode ser feito para que novas tentativas de construção do socialismo não incorram no mesmo desfecho? Um bom começo é evitar o discurso da irreversibilidade dos processos revolucionários. E, principalmente, recuperar o modo de pensar clássico do marxismo acerca do capitalismo como processo contraditório, cabendo a nós desenvolver estas contradições, buscando no centro da própria engrenagem a contramola que resiste e supera. Esta “mola” é a luta política e social da classe trabalhadora: só ela permite um desenvolvimento capaz de superar, seja o neoliberalismo, seja o desenvolvimentismo conservador, seja o capitalismo.

IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Valter Pomar – Eu acrescentaria que estamos num momento fantástico, tanto da história do Brasil quanto da história regional e mundial. A crise do capitalismo, o declínio da hegemonia dos Estados Unidos, o deslocamento geopolítico em direção à Ásia, criaram uma instabilidade muito perigosa, mas ao mesmo tempo é esta instabilidade que nos permite dizer que o jogo está sendo jogado, que as alternativas estão sobre a mesa, que muito pode acontecer, inclusive nada como diria o Barão, e que as soluções estão sendo construídas aqui e agora, pelo que estamos fazendo dentro de cada país e por aquilo que cada Estado está fazendo na arena internacional. Nosso desafio como esquerda brasileira, especialmente o desafio dos petistas, é estar à altura destas circunstâncias. E fazer o que precisa ser feito, não apenas para que o povo viva melhor, não apenas para superar o neoliberalismo, não apenas para superar o desenvolvimentismo conservador, mas também para recolocar o socialismo como alternativa prática para os problemas da maioria do povo. Se nós do PT não conseguirmos isto, teremos que esperar muitas décadas para que se abra uma nova janela histórica. Agora, para conseguir isso será preciso superar uma tradição da história brasileira: a de mudar conciliando e preservando grande parte das relações sociais do passado. Sem esquerdismo, sem voluntarismo, sem desconsiderar a correlação de forças, mas também sem cair nesta desastrosa tese segundo a qual sempre é melhor um mau acordo do que uma boa briga.