domingo, 31 de março de 2013

"PT permitiu que agenda social se dissociasse da agenda moral" (Renato Janine Ribeiro)

"A questão é: até quanto se cede? Será que o PT cedeu mais do que devia? Ou será, o que levou muitos a abandonarem o PT, que cedeu com mais gosto e satisfação do que devia?”, questiona o filósofo.


“Ele [o PT] teve pleno sucesso na inclusão social, fazendo cinquenta milhões de pessoas subirem das classes D e E para a C. Tornou esta última classe a mais numerosa do país. Inscreveu definitivamente o combate à miséria e o projeto de construção de uma sociedade de classe média nas prioridades do país; mesmo a oposição, nas últimas eleições, propôs ampliar o Bolsa Família, embora antes disso sempre o criticasse. O PT mostrou também que a esquerda pode ter competência para governar, o que na prática torna viável a alternância política no país. Finalmente, ele tomou parte na grande mudança política que guinou a América do Sul para a esquerda, construindo uma autonomia maior em face dos Estados Unidos”. 

A avaliação dos 10 anos do PT no poder no Brasil é do professor Renato Janine Ribeiro, (foto abaixo) na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
No entanto, depois de elencar os fatores positivos do governo, ele pondera: “o PT faz falta na oposição”. Para Janine Ribeiro, o partido hoje é valorizado pela sua política de inclusão social, mas não mais pelos seus princípios éticos. “Isso é preocupante, porque seu lugar ficou vazio”. E conclui: “não existe mais o partido diferente de todos os outros. Não há mais um projeto ético que procure mudar toda a sociedade brasileira. A sociedade está mudando, mas o aumento do poder de compra é mais importante, no governo do PT, do que eram as utopias petistas, por exemplo, no que se referia à cultura e à educação. O lugar da ética na política ficou vazio, e o único grupo que pode aspirar a ocupá-lo é o dos verdes. Perto disso, a hipoteca do sistema financeiro sobre a política é apenas um aspecto, não traduzindo o essencial: que se perdeu boa parte da fé na política”.

Professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo – USP, na qual se doutorou após defender mestrado na Sorbonne, Renato Janine Ribeiro tem se dedicado à análise de temas como o caráter teatral da representação política, a ideia de revolução, a democracia, a república e a cultura política brasileira. Entre suas obras destacam-se A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2000) e A universidade e a vida atual – Fellini não via filmes (Rio de Janeiro: Campus, 2003). Renato Janine Ribeiro é, desde 2004, diretor de avaliação da Fundação Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, órgão do Ministério da Educação).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os principais pontos que marcam a trajetória de 10 anos do PT na presidência da República?

Renato Janine Ribeiro – Ele teve pleno sucesso na inclusão social, fazendo cinquenta milhões de pessoas subirem das classes D e E para a C. Tornou esta última classe a mais numerosa do país. Inscreveu definitivamente o combate à miséria e o projeto de construção de uma sociedade de classe média nas prioridades do país; mesmo a oposição, nas últimas eleições, propôs ampliar o Bolsa Família, embora antes disso sempre o criticasse. O PTalternância política mostrou também que a esquerda pode ter competência para governar, o que na prática torna viável a no país; antes, sempre havia o receio de que a esquerda não tivesse quadros para dirigir o Brasil. Finalmente, ele tomou parte na grande mudança política que guinou a América do Sul para a esquerda, construindo uma autonomia maior em face dos Estados Unidos. Isso para os pontos positivos.
IHU On-Line – Quais os limites que se colocam à democracia diante de um partido que permanece por 10 anos no poder em um país como o Brasil?

Renato Janine Ribeiro – O grande ponto negativo é este: o PT faz falta na oposição. O PSDB e o movimento verde não conseguem ter a garra que os petistas tiveram nos 21 anos em que eram o partido “contra tudo o que está aí”. Além disso, o PT se adaptou bem demais, talvez, ao governo. No período entre a eleição e a posse de Lula, por exemplo, já em 2002, ele poderia ter discutido abertamente o que manteria de suas bandeiras históricas e onde faria concessões necessárias, dado que em nosso sistema político ele não teve nem poderia ter a maioria no Congresso. Mas não houve essa transparência. Daí, os problemas éticos, que não podemos esquecer.

IHU On-Line – Qual tem sido a contribuição do PT no governo federal para a consolidação da democracia no Brasil? Ou podemos dizer que a contribuição se deu no sentido contrário, permitindo com que a democracia se tornasse ainda mais sequestrada, condicionada e amputada pelo sistema financeiro?

Renato Janine Ribeiro – O PT, na oposição, tinha duas bandeiras centrais: o combate à ética e a luta contra a miséria e a pobreza. Ficava claro que lutar contra a pobreza extrema era ético, e reciprocamente. Ou seja, não se separavam a agenda moral e a social do partido. No governo, o PT foi longe na agenda social, mas permitiu que ela se dissociasse da agenda moral. Em 2006, ao fim do primeiro mandato Lula, o PSDB gravou para o candidato de oposição um jingle que clamava “por um Brasil decente”. Ora, apenas três anos antes seria impensável alguém usar a ética para atacar o PT! O mensalão mudou profundamente a imagem do PT. O partido, hoje, é valorizado pela sua política de inclusão social, mas não mais pelos seus princípios éticos. Isso é preocupante, porque seu lugar ficou vazio.

O antes e o depois do poder

Houve, creio eu, dois fenômenos que se juntaram. O PT tinha a irresponsabilidade do discurso de oposição, criticando tudo e todos, sem ter que prestar contas do que fazia porque não tinha poder. Uma vez no governo, ele foi mais eficiente do que se imaginava. Mas isso implica – e este é o segundo fenômeno – reduzir certas exigências éticas. Implica ter alianças para poder governar. Com o regime que temos, precisa-se do Congresso. A questão é: até quanto se cede? Será que o PT cedeu mais do que devia? Ou será, o que levou muitos a abandonarem o PT, que cedeu com mais gosto e satisfação do que devia? Para usar o tradicional comentário sobre alguém que faz algo “docemente constrangido”, parece que foi mais docemente do que constrangido. Os custos disso para a confiança da sociedade nos partidos foram elevados. Não existe mais o partido diferente de todos os outros. Não há mais um projeto ético que procure mudar toda a sociedade brasileira. A sociedade está mudando, mas o aumento do poder de compra é mais importante, no governo do PT, do que eram as utopias petistas, por exemplo, no que se referia à cultura e à educação. O lugar da ética na política ficou vazio, e o único grupo que pode aspirar a ocupá-lo é o dos verdes. Perto disso, a hipoteca do sistema financeiro sobre a política é apenas um aspecto, não traduzindo o essencial: que se perdeu boa parte da fé na política.

IHU On-Line – O que um governo que se apresenta como de esquerda ofereceu para o Brasil ao longo desses 10 anos?

Renato Janine Ribeiro – A inclusão social, sob as mais variadas formas. Há o aumento do poder de compra, há a expansão do ensino universitário público, há as iniciativas de Gilberto Gil para a cultura. Mas não creio que o governo seja, ou se apresente como sendo, de esquerda. É uma coalizão de centro-esquerda, no melhor dos casos. Por isso, o quinhão de utopia, de mudanças maiores, acaba sendo relativamente menor do que deveria ser.

IHU On-Line – Como tem aparecido no Brasil o desprestígio dos partidos e do modelo representativo de política?

Renato Janine Ribeiro – É possível que desde o Império se tenha, no país, uma forte convicção de que políticos são desonestos. Alguns líderes, por sinal, cresceram justamente denunciando seus adversários – Jânio, Collor e, caso excepcional porque não se trata de um indivíduo, mas de um partido, o próprio PT. Hoje, porém, a crença de que algum partido vá melhorar o país eticamente se esvaiu.

Quando à política representativa... Esta questão supõe que exista outra, que seria a democracia direta. Em um quarto de século desde que a Constituição de 1988 previu consultas diretas à população, o mecanismo foi usado em apenas duas ocasiões. Da primeira vez, para decidirmos a manutenção da república ou a volta da monarquia, uma questão ridícula, e resolvermos entre parlamentarismo e presidencialismo. Da segunda, para se proibir ou não a venda legal de armas – o que afetava talvez mil revólveres vendidos por ano, porque quase todo o comércio na área é já o ilegal. A democracia direta, que parecia promissora nos anos 1980, foi mal utilizada. Praticamente sumiu do horizonte da política. Com isso, resta a representativa, que as pessoas identificam com “a política” em geral, mas que traz um distanciamento significativo entre representantes e representados.

IHU On-Line – O que representa essa apatia política por parte da população?

Renato Janine Ribeiro – É fruto do desencanto com os políticos, da péssima discussão pública sobre a política em nosso país – que se resume em atacar grosseiramente o adversário, em vez de se construir uma ágora – e da falta de experiência histórica no sentido de acreditarmos que a mobilização popular possa resultar em algo. Tudo isso pode mudar para melhor. Ou pode ficar como está, e levar a um desencanto cada vez maior com a política – veja os sites dos grandes órgãos de imprensa, que destacam celebridades, em contraste com suas edições impressas, que estão mais próximas da pauta tradicional da política. O público quer mais os escândalos e mesmo o voyeurismo sexual do que as discussões, por vezes enfadonhas, da política. O risco disso é reconduzir sempre os mesmos. Por isso é importante melhorar o debate político, recusando o maniqueísmo, e as pessoas se mobilizarem em torno de causas importantes.

IHU On-Line – Atividades como mobilizações pela web podem indicar uma nova forma de fazer política?

Renato Janine Ribeiro – Sem dúvida indicam. Mas, para fazer uma flash mob convocada pelo Twitter, você já precisa ter uma determinada convicção difundida por muita gente. O que a internet não foi capaz de fazer, ou melhor, as pessoas que usam a internet, é uma plataforma de debate em que se possa mudar de ideia. O que é precioso na democracia é isto: você, pela discussão, mudar de ideia. Ouvir antes de decidir.

IHU On-Line – O que significa ser esquerda em nossos dias? Que exemplos podem ser citados no Brasil e na América Latina de uma “esquerda sem medo de dizer seu nome” (para citar Vladimir Safatle)?

Renato Janine Ribeiro – Não vejo esquerda com medo de dizer seu nome. O que vejo mais é um esvaziamento dos projetos tradicionais da esquerda. Há um núcleo puro e duro que ainda segue Marx. Ora, tanta coisa no cerne do pensamento dele deu errado que isso exigiria uma revisão em regra! Para Marx, o comunismo sucederia ao capitalismo não só eticamente, mas por ser um modo superior de produção. Não é o caso. Mas quem critica o pensamento de Marx, na esquerda mais radical? Isso não se faz. Então, o que temos é um certo oportunismo que faz o PT aliar-se ao grande capital, o PCdoB controlar o esporte, cooperando até com o ex-prefeito liberal de São Paulo, e assim por adiante. Ou seja, o que temos é uma ex-esquerda que age e pensa mais à direita. Por volta de 1980, quando ruíam o comunismo e o socialismo, uma alternativa estava pronta, o projeto neoliberal. Mas, quando a crise de 2008 provou que este era ruim, tinha a esquerda alguma alternativa pronta ou sequer em andamento? Não. O problema da esquerda não é de nome, é de conteúdo: ela perdeu o seu.

IHU On-Line – Em que medida podemos falar de uma integração política latino-americana, considerando a trajetória dos presidentes dos países em questão?

Renato Janine Ribeiro – Se o projeto bolivariano prosseguir, não parece que o Brasil tenha lugar nele. O PT não lhe é simpático. Uma coisa é defender Chávez e, agora, seu legado positivo, outra é importar uma tradição de conflito que não é bem nossa.

IHU On-Line – Qual a pertinência, atualidade e inspiração que a revolução bolivariana pode oferecer no sentido de pensar uma nova política, mais à esquerda?

Renato Janine Ribeiro – Sou um tanto cético a respeito. Aprovo e aplaudo a distribuição de renda promovida por Chávez e muitos outros. Mas a Venezuela continua dependente do petróleo. É melhor que a riqueza dele se espraie pelo povo, sem dúvida. Porém, como nosso vizinho poderá, um dia, ter um sistema produtivo mais rico? Como poderá sair dessa situação, que não faz bem a nenhum país produtor, de ter tanta riqueza em troca de tão pouco trabalho, basicamente extrativo? Há uma desmoralização do trabalho, quando tanto dinheiro vem da coleta e da extração.

IHU On-Line – Quais as dificuldades do PT em mediar o conflito entre os ideais de igualdade e liberdade? Por que a esquerda não consegue resolvê-lo?

Renato Janine Ribeiro – O PT optou, a meu ver, claramente por uma inclusão social que não hostilizasse a direita e o capital. Teve êxito graças a isso. Uma estratégia de enfrentamento teria provavelmente levado a derrotas eleitorais e, até mesmo, a um golpe branco, no estilo de um impeachment. Nesse sentido, essa questão não me parece sequer ter-se colocado. A liberdade empresarial convive com iniciativas fortes rumo à igualdade. Agora, liberdade e igualdade têm conteúdos muito mais amplos do que os que temos visto no Brasil. Isso pouco se discute. E não é fortuito que Lula tenha escolhido, como sucessora, a líder dentro do PT mais próxima do mundo empresarial.

IHU On-Line – Como conciliar o sonho da classe média com consumo livre para todos? Isso se viabiliza de forma prática? Quais os conflitos que aparecem aqui?

Renato Janine Ribeiro – A presidenta Dilma disse mais de uma vez que deseja fazer do Brasil um país de classe média, creio eu que como a França. É um belo sonho – e moderado. Não há nada menos marxista. Muitos pensadores marxistas têm mais horror da classe média do que da alta burguesia. O termo “pequeno burguês” era um dos palavrões mais fortes dos velhos comunistas. Os revolucionários dos anos 1960 veriam esse ideal da presidenta com péssimos olhos, porque seria uma forma – talvez eficaz – de esvaziar a possibilidade de uma revolução radical. Mas parece que está aí o nosso futuro e, na medida em que elimine a miséria e reduza a pobreza, acho-o positivo.

Porém, é claro que o consumo é inimigo do meio ambiente e corre o risco de trazer a morte para o nosso planeta. Aqui os verdes teriam uma contribuição importante a fazer. Contudo, ela ainda é incipiente. Acredito que nosso futuro político dependa muito da capacidade, extinta a miséria, vencida a pobreza, de termos uma economia sustentável.

Mas precisamos ir mais além. Precisamos pensar no mundo pós-semana de 48 ou 40 horas de trabalho. Por que não se reduz mais a jornada de trabalho? Porque se teme, penso eu, o lazer. Vivemos num mundo de ócio absolutamente não criativo. Chama-se Domenico de Masi para falar do ócio criativo, mas os mesmos que o aplaudem nada fazem para dar esse passo. Penso que estaríamos aptos para começar a construir uma sociedade em que o lazer criativo – essencialmente, cultura e atividade física – deem o tom. Mas veja a televisão no dia canônico do lazer, o domingo: ela cai ao nível mais baixo possível. Ou, repito, olhe a homepage dos sites de informação: as notícias mais lidas são as piores. O lazer, hoje, é ocupado pelo que há de menos elaborado no ser humano. É isso o que temos de mudar, é este o cerne do futuro.

Por Graziela Wolfart

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