Para Marcos Rolim
Consideremos o cidadão bem posto na vida
que ludibria a alfândega e se regala com equipamentos contrabandeados para si e
sua empresa. Comete um crime, ou vários, mas a deliquência não o faz criminoso.
O epíteto nefando só manchará seu colarinho branco se for flagrado pulando a
cerca. Aí sim, deixará de ser o executivo competente, o empreendedor agressivo,
atento às oportunidades e bem relacionado, ornado com sobrenome de avenida.
Passará a ostentar o nome de seu ato,contrabandista, criminoso, e será
destratado pela voz do povo:meliante, vagabundo.
Ou seja, não é o ato de praticar um crime
que faz de seu autor um criminoso, mas ser flagrado. Por isso, os pais da moça
procuram saber quem namora sua filha de um modo amplo e sensível, tentando
descobrir que valores o pretendente preza, o que ele faz, como se porta diante
das situações do dia a dia. Os pais não pedem a folha corrida do futuro genro.
Seja porque nem todo transgressor cai na malha fina da Justiça, seja porque nem
todo cidadão capturado nesse filtro merece a repulsa moral. Depende. Pode estar
envolvido sem culpa em um enredo capcioso, mas pode também ter superado o
estágio de seu desenvolvimento pessoal em que tropeçou. Culpa é diferente de
responsabilidade. Quem age com generosidade com um amigo em quem confia, pode
ser traído em sua lealdade. Por exemplo, dispondo-se a incluir em sua bagagem o
pacote que o amigo pede que seja entregue a um parente. Por que desconfiar do
amigo? Se, nesse caso, o pacote embrulha drogas, isso torna quem transporta
responsável, não culpado. A Justiça condenará o intermediário por tráfico, mas
a família da noiva apoiará o casamento, entendendo que o réu merece
solidariedade. Do mesmo modo, o que dizer daquela pessoa que assina o contrato
de aluguel como fiador e acaba obrigada a ressarcir prejuízos? Não podendo
pagar a dívida, responderá na Justiça e será responsabilizada. Quem,
entretanto, a consideraria culpada de um erro moral ou de uma violação ao pacto
social, mesmo a reconhecendo passível de responsabilização judicial?
Os juízos morais variam muito e dependem
de circunstâncias bastante específicas. Nem sempre coincidem com as decisões da
Justiça, mesmo que elas estejam certas e ainda que as Leis aplicadas sejam as
mais justas. Não se trata de paradoxo, muito menos de contardição. A moralidade
é regida por princípios mais sensíveis às variações individuais e à
singularidade de cada caso, e leva em conta as intenções e o sentido subjetivo
em uma extensão que as leis não podem fazer. Por mais que haja moralidades
distintas em uma sociedade pluralista, laica e democrática, são diferentes as
finalidades da moral e da Lei, mesmo quando compartilham referências
axiológicas. A Lei tem como objetivo definir regras do jogo para o
funcionamento estável do pacto social, tornando razoavelmente previsível a vida
em sociedade, ou melhor, transformando a previsibilidade em uma expectativa
legítima e persuasiva para a média das pessoas. A moralidade tem o objetivo de
tornar as pessoas, individualmente, melhores para si mesmas e para os outros,
fazendo da reflexão crítica sobre atos pregressos um mapa que orienta ações
futuras.
A esfera moral é espinhosa e complicada,
porque, em seu domínio, valores e comportamentos se mesclam a dinâmicas
psicológicas e afetos, mobilizando potenciais cognitivos e emocionais,
estimulando ou inibindo o engajamento em experiências construtivas ou
destrutivas de convívio. Nesse campo tão delicado, a moralidade, com
frequência, acusações culpabilizadoras tendem a deprimir a auto-estima e
reduzir a energia necessária para a desejável mudança. Portanto, em matéria de
juízos morais aplicados, muitas vezes, menos (atribuição de culpa) é mais
(chance de transformação), ou seja, demonstrações de confiança, sem prejuízo do
reconhecimento enfático do erro, estimulam a correção da rota.
Recordemo-nos: o propósito da moralidade é
melhorar as pessoas --entendendo-se este verbo de distintos pontos de vista.
Nada a ver com as Leis, cuja finalidade é estabilizar expectativas positivas,
levando cada um a supor que o futuro imediato é previsível porque há regras e
um conjunto de instituições de segurança e Justiça supostamente aptas a
garantir sua efetividade. Essa estabilização viabiliza a vigência do pacto
social, preservando o ambiente de negócios indispensável a investimentos,
mantendo firmes as molduras para a cooperação
e reduzindo a cota de medo e angústia ante as incertezas da vida.
A estrutura que descrevo articula-se sob a
forma do Estado democrático de direito, equilibrado pela divisão entre os
poderes executivo, legislativo e judiciário. David Hume dizia que só outro
poder limita o poder. Por isso, seguindo o roteiro concebido por Montesquieu e
aplicando o modelo experimentado nas primeiras democracias modernas, a
Constituição de 1988 organizou o Estado brasileiro respeitando o princípio das
tensas mas indispensáveis limitações recíprocas entre os poderes.
Nessa paisagem institucional, qual o papel
do Judiciário? Mais especificamente: quais as relações entre verdade e justiça?
Onde entra a moralidade? Como avaliar a Lei que exclui da competição eleitoral
os candidatos com “ficha-suja”, isto é, que tenham sido condenados por decisão
colegiada em primeira instância?
Os temas são complexos e exigiriam
elaboração mais longa e profunda. Não me furto, entretanto, a resumir alguns
argumentos e colocá-los em circulação, mesmo antes do recomendável tratamento
mais amudurecido, dada a urgência do debate público suscitado pela decisão do
novo partido, Rede, segundo a qual condenados em primeira instância não serão
candidatos pelo partido, como determina a Lei, mas poderão ser admitidos como
filiados, a depender da avaliação de cada caso pela direção nacional, ouvido o
conselho de ética.
Do ponto de vista estritamente legal,
nenhum problema: todo cidadão mantém a integralidade de seus direitos enquanto
sua eventual condenação esitver sub
judice, ou seja, enquanto não houver uma decisão judicial definitiva –em
outras palavras: enquanto a decisão condenatória não transitar em julgado. A
exceção diz respeito à privação provisória da liberdade, que restringe o
direito de ir e vir por motivos muito específicos e que se aplica, como o nome
diz, àqueles ainda não definitivamente condenados que representem um risco para
a sociedade, uma ameaça a testemunhas ou um obstáculo ao desenvolvimento das
investigações. Contudo, mesmo nesses casos excepcionais (que,
desafortunadamente, são mais comuns do que deveriam ser, no Brasil, hoje), o
direito ao voto e à filiação partidária permanece intocado.
O movimento pelo respeito ao direito ao
voto dos presos preventivos e provisórios tem crescido, no Brasil, exigindo que
o Estado garanta a aplicação da Lei e ofereça meios para que o exercício do
voto não continue a ser indevidamente vedado, como ainda acontece com tanta frequência
no país. A violação das disposições legais tem diminuído e mais presos têm
podido votar.
Tenhamos presente que a Lei de execuções
penais vem sendo transgredida com acintoso despudor e que a prática do voto
assinala a afirmação de milhares de cidadãos brasileiros como sujeitos de
direito, o que em nenhum momento nega sua condição de réus, que respondem a
acusações de violação de direitos alheios. A punição imposta pelo Estado não se
confunde com vingança, nem sentenças judiciais devem ser confundidas com
retribuição, a violadores, das violações perpetradas. É isso que distingue o
Estado democrático de direito de uma tirania; é isso que distingue a sentença
judicial do justiçamento.
O movimento referido deseja mais: quer
estender o direito ao voto ao preso condenado, entendendo que inclui-lo no
universo dos eleitores significa tratá-lo como membro da sociedade e corresponsável
por seu futuro. Seria educativo e uma forma de valorização potencialmente
transformadora. Os presos poderiam unir-se e eleger alguém que se comprometesse
com uma pauta contrária aos interesses gerais da sociedade? Talvez isso pudesse
acontecer, no caso de candidaturas proporcionais. Entretanto, o funcionamento
das casas legislativas impede que a proposta de um segmento social específico
se converta em Lei sem que a maioria a aprove. Se a própria dinâmica
democrática tem se mostrado insuficente para conter os lobbies, ter-se-ia de discutir mecanismos que limitassem sua
eficiência, ampliando a transparência, fortalecendo a participação e criando
freios à mercantilização do voto.
O ponto a reter é mais simples: a Lei,
hoje em vigor, não retira de quem responde a processos na Justiça, criminais ou
não, que não tenham “transitado em julgado”, o direito de participar da vida
política como cidadão que vota, manifesta-se e opina. Faria sentido que um
partido que se pretende comprometido com a Constituição e com os valores que a
regem vedasse a esse cidadão o exercício desses direitos em seu interior,
sempre, em qualquer caso, independentemente de cada circunstância e do exame
das condições singulares? A única resposta plausível e compatível com a
regência dos princípios referidos é negativa, porque, se fosse positiva,
estar-se-ia negando uma separação --que é constitutiva das democracias—entre a
justiça, a verdade e a moralidade.
Quem procura a verdade, estuda, torna-se
cientista ou filósofo, dedica-se à pesquisa. Sabe que, no horizonte, não está
propriamente a verdade, mas o conhecimento possível naquele momento histórico,
que será formulado com os conceitos, os argumentos e os recursos de verificação
mais convincentes para a comunidade científica mundial, que opera com os mesmos
critérios de avaliação da aceitabilidade das proposições formuladas. Quem
procura a verdade, em sua provisoriedade inevitável, sabe que não há ciência de
um acontecimento único, mas conhecimento da dinâmica logicamente apreensível
que rege o grupo de fenômenos dos quais determinados acontecimentos singulares
podem ser a manifestação.
Quem procura a Verdade com V maiúsculo
dedica-se à religião e até mesmo a algumas filosofias. O acontecimento único
pode adquirir aí o status de
revelação.Nesse campo, a verdade não é produto do conhecimento humano,
carregando consigo a precariedade do humano, mas dádiva transcendente[1]. Todas
as procuras e seus caminhos têm sua razão de ser e fundam sua legitimidade na
história das civilizações, cumprindo papéis relevantes, ainda que nem sempre
convergentes e harmônicos. Não raro, cientistas, tomados pela sedução da Hybris, deixam-se enganar pela vaidade e
a vontade de poder, escrevendo suas teorias com letras maiúsculas. Por outro
lado, surpreendendo a visão positivista dos que ignoram a riqueza cultural das
religiões, há fiéis que submetem o conteúdo de suas crenças ao princípio da
humildade ante o desconhecido, e recusam a intolerância ou qualquer dano ao
pluralismo.
De todo modo, ninguém, procurando a
verdade, com maiúscula ou minúscula, irá à Justiça. O poder judiciário não é o
destino de quem quer saber; é o destino de quem precisa dirimir uma desavença,
refratária à solução “natural” entre pares, quando os demais mecanismos
acessíveis não dispõem de legitimidade consensual a todas as partes envolvidas,
incluindo o terceiro vértice do confronto: a sociedade. A Justiça é o endereço
ao qual se dirigem os que precisam de uma decisão com força para dissolver o nó
--o conflito insolúvel-- que paralisaos fluxos de ação social e de cooperação.
Quando a Justiça, ante uma guerra de
versões, acolhe uma e exclui as demais, ou estabelece uma narrativa alternativa
sobre determinado fato ou série de fatos, não o faz por amor à verdade, mas por
compromisso prático. O que está em jogo não é a infinita causa da pesquisa, mas
a solução de um conflito. Solução que sirva para, reafirmando a supremacia do
Estado, por intermédio de seu braço judicial, restabelecer as condições de
vigência do pacto social, consagrado na Carta Magna, distribuindo
responsabilidades, direitos, deveres e reparações.
Claro que, à Justiça, importa descobrir o
que, de fato, aconteceu, nos casos sob exame. Evidente que a decisão mais justa
será aquela que conjugue o respeito às normas --sempre reinterpretadas—com o
endosso ao relato mais verossímil, entre as versões que competem pelo selo
oficial da justiça, o crachá da “acreditação” institucional. Mas a procura pela
restauração do fato tal como realmente aconteceu é tão vaga e subjetiva quanto
são as pesquisas sobre eventos singulares, em ambientes reconstruídos por
descrições interessadas, por mais que seja viável contar com dispositivos
tecnológicos[2].
Esses últimos na melhor das hipóteses funcionam como redutores do repertório de
narrativas alternativas plausíveis, isto é, de narrativas sustentáveis diante
da comunidade dos falantes da língua compartilhada, cuja natureza não é apenas
linguística, mas social, cultural e normativa. Por isso, trata-se antes de
retórica que interpela a inteligência e a emoção dos ouvintes –juiz, juri,
opinião pública—mobilizando reações relativas à confiabilidade e à
credibilidadedos relatos (e dos relatores), do que de articulação lógica de
proposições sobre o real com pretensões de verdade. Observe-se, contudo, que os
esforços de elucidação, que anseiam, no limite ideal, pelo estabelecimento de
um consenso, cedem ante a necessidade imperiosa, e legal, de decidir. E quem
decide olha para o passado e o presente, com vistas postas no futuro, isto é,
em suas consequências prováveis.
Nada a ver com a ciência e suas
atribuições. Nada a ver com as condições de produção da verdade.Enquanto a
ciência opõe-se à ignorância, a Justiça opõe-se ao conflito e aos riscos de
que, não dirimido, contagie o pacto e inocule imprevisibilidade na formação coletiva
das expectativas. A incerteza é o umbral da crise e, no quadro de agravamento
extremo, é o preâmbulo para a conflagração anárquica. O problema da Justiça é a
incerteza –que representa o desafio “à ordem e ao progresso”. A ciência convive
bem com a incerteza e se resigna negociar com ela e restringi-la, topicamente.
Alimenta-se da incerteza como se ela fosse o seu combustível. A Justiça oferece
um tratamento para fatos passados que dialoguem com o senso comum e acomodem
tensões, visando garantir a reprodução da ordem social no presente e no futuro.
A ciência, euquanto busca da“verdade”, não tem nenhum compromisso com o senso
comum, com a regulação de expectativas e com a ordem social. Sua procura não se
limita a prazos regimentais, nem é obrigada a seguir procedimentos pré-fixados.
A ideia de que a Justiça está engajada na
promoção do futuro da ordem social, exorcizando a instabilidade, na medida do
que lhe compete –posto que há fontes alheias à sua intervenção--, provoca
dúvidas importantes. Por exemplo, a Justiça deveria privilegiar o cumprimento
rigoroso de seus protocolos formais e do universo normativo pertinente, quando
esse viés colidir com a substância do fato em causa? O caráter exemplar e
dissuasório da Justiça criminal deve sacrificar o réu individual em nome dos
efeitos sociais de um veredito? Qual a mensagem mais valiosa para o futuro da
ordem democrática e da estabilização de expectativas positivas sobre a cooperação
e o respeito ao pacto social? A consistência inabalável no cumprimento das
regras? Ou sua flexibilização para que se faça justiça, substantivamente, ante
evidências reconhecidas pela sociedade ainda que neutralizadas nos ritos
formais?
A corrente de juristas que conhecidos
como“garantistas” sustenta que a fidelidade absoluta aos protocolos (normas e
ritos com que opera a Justiça) não só representa o esteio para a estabilização
de expectativas positivas, como corresponde mais radicalmente ao direito e,
portanto, ao que a Justiça deveria ser, reconhecendo a inocência de cada réu
individual até que os limites da razoabilidade da hipótese da inocência tenham
sido exauridos. Ninguém pode ser sacrificado em benefício utilitário de outros
fins, por mais nobres que sejam. O utilitarismo, assim concebido, fere as
garantias individuais, que constituem a matriz axiológica do Estado democrático
de direito.
Formulado em abstrato, impossível
contestar o argumento garantista. Entretanto, há casos, não poucos, em que a
estrita observância dos protocolos fere outros direitos individuais –e mesmo
aqueles reunidos em coletividade e difusos, mas nem por isso menos
significativos para as garantias individuais. Nesses casos,não cabe mais à
Justiça a opção entre ferir e não ferir garantias. Impõe-se a trágica
interrogação: quais garantias individuais seria menos danoso ferir?
Esse não é o universo desejável, nem
corresponde à realidade pressuposta pela teoria em que as regras convivem
coerentemente entre si, ordenadas por lógica sistêmica. Todavia, é o mundo real,
arena concreta em que contradições jogam, uns contra outros, valores e normas.
Na área ambiental, assim como no campo político em que atuam movimentos
sociais, os casos problemáticos multiplicam-se. Além disso, é consabido que as partes
não se chocam em uma tribuna efetivamente regida pela equidade. A desigualdade
no acesso à Justiça é uma das mais dramáticas, no país, e realimenta as demais.
O garantismo, naquilo que aporta de adesão
radical ao procedimento, comporta uma dimensão virtuosa inexcedível, mas não
tem alcance para pretender converter-se em diretriz absoluta ou horizonte
filosófico-jurídico de nosso tempo, porque faz tabula rasa da inexorável inconsistência das referências (nos
planos normativo e valorativo) e das contradições práticas,vividas sob a forma
de conflitos hermenêuticos, em meio a antagonismos de interesses historicamente
situados.
De sua parte, ao contrário do que ocorre
na esfera da Justiça, a moralidade não se constrange ante a indecidibilidade e
seus efeitos: a hesitação, a dúvida. Pelo contrário, nutre-se dos dilemas
trágicos, tão instrutivos para nos remeter à finitude, nossa condição
inescapável. Por isso, até hoje Hamlet é superior a dogmatismos prêt-à-porter. Nada mais enriquecedor,
moralmente, do que debruçar-se sobre as dificuldades objetivas que situações
concretas representam para pautas valorativas. Aprende-se que muitas vezes não
há uma solução, o que há é a escolha entre valores ou formas de violá-los,
restando apenas a redução de danos. As aporias não corróem a moralidade, não
revelam sua inaptidão para o mundo vivido. Ao contrário, mostram quão
imprescindível é a instância moral para vivermos em nosso mundo, mergulhados em
contradições, e quão inadequadas são as simplificações que degradam a
moralidade em moralismo. Quando perdemos o senso moral, perdemos a sensibilidade
para as contradições enquanto tais, ou seja, mais do que desafios cognitivos,
laboratórios experimentais para nossa auto-reinvenção e para repensar o social,
sempre de novo.
Nem sempre há contradições. Há também
convicções morais que se aplicam, no dia a dia. Como foi dito na abertura, às
vezes, o registro do julgamento moral não coincide com avaliações judiciais.
Isso significa que seria aceitável renunciar à supremacia da Justiça e trocá-la
por juízos morais, que variam ao sabor dos ventos, dos códigos culturais, das
teorias filosóficas e dos envolvimentos pessoais? Claro que não. Decisões da
Justiça existem para ser cumpridas. Esse é um postulado elementar da
democracia, para isso há a separação dos poderes. Nem hipertrofia do executivo,
nem linchamentos: o império da Lei. Por outro lado, a separação entre verdade,
justiça e moralidade demonstra que há espaço para as três modalidades de
pensamento, avaliação e decisão.
O importante é que se compreenda o
seguinte: a vigência da sentença judicial, cujo valor prático e cuja legitimidade
não estão em dúvida, pode afetar, dependendo das circunstâncias, mas não anula
a especificidade do juízo moral que se faça a respeito de cada caso. Desistir
de problematizar, no campo dos juízos morais, cada ato humano, para respeitar
uma decisão judicial seria confundir inteiramente o significado do
pronunciamento da Justiça, que requer obediência prática na esfera a que se
reporta, mas não impõe silêncio obsequioso a outras indagações, a outros
regimes de reflexão e avaliação. Uma sociedade não pode furtar-se a pensar e
repensar, moralmente, como não pode renunciar a investir em pesquisas
científicas, mesmo quando elas ameacem subverter sua autoimagem ou as crenças
hegemônicas.
Não há ofensa à Justiça, nem violação
legal, quando um partido toma a liberdade de submeter à sua própria avaliação a
conduta de uma pessoa condenada em primeira instância e conclui que ela tem as
qualidades necessárias para filiar-se.
Quem defende a tese oposta, sugere que a
decisão parcial da Justiça basta para definir o postulante à filiação não só
como responsável por alguma transgressão identificada, mas também como
moralmente inepto. Imenso equívoco. A Justiça não se pronunciou sobre o status
moral dessa pessoa. Não pode fazê-lo, nem lhe compete fazê-lo. A Justiça, vale
reiterar, não existe para produzir a verdade, nem para medir o calibre moral
dos cidadãos. A sociedade não pode ceder ao Estado, a qualquer de seus braços
ou ramificações, a preciosa e inalienável liberdade de avaliar moralmente e de
construir suas representações da verdade: nas ciências e nas filosofias, nas
religiõese nas reflexões públicas e privadas sobre a moralidade. Nos embates
que resultam da multiplicidade de teses e perspectivas sobre a verdade e a
moralidade, não cabe a intervenção judicial, a menos que eles transbordem as
fronteiras das diferenças culturais e políticas, traduzindo-se em violência e
violação de direitos. Os conflitos de ideias e avaliações morais são
irredutíveis, inconciliáveis, intermináveis e indispensáveis à vitalidade
democrática.
Pessoalmente, considero a Lei da ficha
limpa uma dupla contradição: atribuindo-se poder de excluir da competição
eleitoral a decisões judiciais de primeira instância, viola-se o princípio da
Justiça, enunciado na Constituição, segundo o qual só há condenação quando a
decisão judicial transita em julgado. Por outro lado, viola-se a soberania
popular expressa no voto, ainda de acordo com a Carta Magna. Afinal, não se
elege quem quer, quem se oferece como candidato, mas quem recebe votos
populares. Se o voto é soberano, parece um contrassenso esterilizá-lo, vetando
candidatos. Mesmo porque as Leis erram, suas aplicações falham, mas, em última
instância, a fonte de sua correção ou de sua manutenção, a fonte da
legitimidade das instituições são os eleitores. Eles constituem a ultima ratio do poder na democracia. O
risco da judicialização é esvaziar a soberania popular.
Entretanto, admito que há um clamor na
sociedade contra a corrupção e a mercantilização do voto,e que confia no filtro
judicial em primeira instância para sinalizar, demarcar e auxiliar a escolha
eleitoral –como se vivêssemos em um mundo carente de informações. O clamor
parece-me mais do que justificado, mas o método adotado, não. Seria mais
eficiente promover mudanças nas estruturas políticas e nas regras eleitorais.
Sobretudo, seria mais efetivo mobilizar a sociedade discutir política e
eleições. Mas o clamor há, a demanda é fortíssima, o ceticismo cresce e as
instituições perdem credibilidade, velozmente. É preciso considerar a dimensão
simbólica de propostas e decisões.
O que não me parece razoável é repetir o
mantra demagógico para receber aplausos fáceis. É necessário revalorizar a
política, a complexidade dos debates morais, a inalienável liberdade de pensar
fora da circunscrição judicial, não para depreciar a Justiça, mas para não
esperar dela o que ela não pode dar, e não lhe transferir o que é prerrogativa
inalienável da sociedade: a elaboração autônoma e plural de juízos morais e a
formulação independente de avaliações políticas.Ou jamais mudaremos o que
houver de errado com as leis, com a Justiça, com a política e com nossa vida
coletiva. Apesar das aparências e das perversões históricas nacionais, o Estado
nasce da sociedade –não o contrário.
A Rede pode prestar um serviço ao Brasil
se resistir ao canto de sereia da aprovação fácil, do moralismo pueril, da
ideologização maniqueísta, das dicotomias simplistas, do populismo penal, em
nome de algumas posições de princípio contra-intuitivas, difíceis e, por isso
mesmo, mais necessárias do que nunca.
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