domingo, 31 de março de 2013

O mundo gira e a Lusitana roda (Luiz Werneck Vianna)



Vai passar. Não se sabe quando nem como - não deve ser por agora -, mas vai passar, inclusive porque já está passando. E o que está por vir não necessariamente será melhor do que o que está aí, mas, no fim deste verão, já estavam claros os sinais de uma mudança de estação. A sucessão presidencial, que era uma data distante no calendário eleitoral, mantendo todos aquietados, entretidos em suas fabulações, num salto se fez ao alcance da mão. Por que passamos de súbito de uma marcha lenta para essa aceleração do tempo?
Se o natural, o curso distendido do tempo, foi contrariado, somente o foi pela intervenção humana. E a senhora dessa decisão tem nome e sobrenome, Dilma Rousseff, a presidente da República - embora a prudência e os nossos usos e costumes recomendassem a inércia, sempre pródiga para quem já detém os cordéis do poder. Verdade que ainda são insondáveis as razões que levaram o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, titular do comando do partido hegemônico na coalizão das forças políticas que nos governa, homem de tirocínio político reconhecido, a acompanhá-la nessa precipitação dos fatos.
A transição de Lula para Dilma apenas na aparência transcorre em termos de continuidade: os estilos diferem, passa-se do reino do carisma ao da gestão, que é de difícil compreensão para ouvidos treinados na retórica política da ética de convicção, a qual reclama um ator com espírito de missão, reconhecido publicamente como tal.
Sobretudo a circunstância é outra, e a sociedade não é mais a de dez anos atrás. Há novos personagens, que, no curso da última década, adquiriram musculatura, como os pentecostais, e outros que, ao contrário, perdem forças, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), enquanto assistem à ocupação de lugares estratégicos na política e na economia por parte do agronegócio, cujos dirigentes têm desfrutado acesso privilegiado ao vértice do poder.
O sindicalismo, a joia da coroa do governo Lula, trazido juntamente com as elites empresariais para o centro de decisões no interior da máquina governamental, não somente perde o seu lugar de antes, como é confrontado - reparam com azedume alguns dos seus próceres - com a desenvoltura do papel exercido pelas principais lideranças empresariais, boa parte delas assíduas nas antessalas do Estado, alçadas à posição proeminente de partícipes de um projeto de expansão do poder da Nação, em que seus interesses particulares são interpretados como de todos.
A escalada do Partido dos Trabalhadores (PT), Lula à frente, rumo à conquista do governo, se não consistiu num processo revolucionário - a respeito desse ponto há consenso entre gregos e baianos -, manteve parentesco com alguns dos seus aspectos. A começar pela identidade social da sua liderança maior, um operário vindo do chão de fábrica, e pela ênfase com que o governo do PT se envolveu na questão social e na defesa dos direitos do mundo do trabalho, quando acabou se encontrando com a tradição do trabalhismo brasileiro, a princípio renegada por ele.
São águas passadas os primeiros anos da década petista, em que a perspectiva da ruptura cedeu lugar a um andamento de reformas ao estilo das democracias sociais europeias, especialmente com a decisão crucial de adotar a política macroeconômica do governo a que sucedia. Tal estratégia foi bem-sucedida nas dimensões da política, do social e da economia, com o alinhamento do empresariado, do sindicalismo e das massas emergentes - aspirantes ao acesso ao mundo dos direitos e do consumo - à política do governo. A esquerda, no caso, era um retrato na parede que não doía, e núcleos antigos seus logo foram defenestrados ou optaram por outros caminhos.
Consciente da sua circunstância de riscos, o PT abdicou da mobilização popular, investiu na via eleitoral e parlamentar e, a partir de uma audaciosa política de alianças com as elites políticas do Brasil profundo, atingiu capilarmente a vida municipal, aí incluída a dos rincões. O seu governo não se fixaria na agenda do moderno e dos interesses e personagens que são próprios a ela. Reeditava, dessa forma, a manobra do PMDB de décadas atrás, quando se apresentou como um partido-ônibus que todos conduziria, indistintamente.
Essa foi a obra-prima de Lula, mas que não escondia os seus pontos fracos: exigia a sua presença demiúrgica e uma acomodação minimamente satisfatória de todos com os lugares que lhes eram reservados no heterogêneo comboio que ele conduzia. Afastada a tentação de um terceiro mandato, que traria de volta o tema da ruptura institucional, alternativa evitada pelo PT no início do seu primeiro governo, Lula foi confinado aos bastidores, e a ação do tempo, porque o mundo gira e a Lusitana roda, tem feito o resto.
A crise na Federação deflagrada em torno dos royalties do petróleo e a resistência dos trabalhadores à mudança na regulação das atividades portuárias são exemplos, entre tantos outros, das novas dificuldades de acomodar interesses diferentes, assim como não é nada fácil, num país secularizado, mas com seu lastro de valores com origem na catolicidade, instalar, por simples conveniência de cálculos políticos, um pastor pentecostal de inclinação fundamentalista na presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara dos Deputados.
A antecipação da sucessão presidencial liberou o gênio da garrafa. E com a sintomática ascensão desse pastor - sinal nefasto de que todos os apetites podem ser saciados - será necessário, com certeza, prover de mais vagões o governo-ônibus pilotado pelo PT, a esta altura sem conhecer qual o itinerário a percorrer nem o seu destino final, que, decididamente, não é mais aquele anunciado no começo da viagem dos idos de 2003.
* PROFESSOR-PESQUISADOR DA PUC-RIO.
Fonte: O Estado de São Paulo (24/03/2013)

Déficits democráticos do Brasil (José Eli da Veiga)

 
 
As pesquisas ainda não revelam, mas tende a ser alta a probabilidade de segundo turno disputado por Eduardo Campos. Nesse caso, ele contará com o grosso dos que tiverem preferido Aécio. Outros cenários são possíveis, mas foi esse o que antecipou a campanha eleitoral, pois é o que embute maior incerteza sobre reeleição. E é esse que leva Dilma a já fazer o diabo no uso das vantagens advindas do controle da máquina federal.

Ao contrário do que não cansam de repetir os mais prejudicados e muitos analistas, o problema não está na antecipação da campanha em si, mas na injustiça imposta pelo arranjo que regula o processo. Se no Brasil houvesse algo semelhante às primárias dos EUA, esses quase dois anos de campanha seriam extremamente saudáveis. Porém, com a radical exclusão da cidadania na montagem dos palanques, as movimentações dos três principais pretendentes só mostram quanto o Brasil está distante da plenitude democrática.

Ainda pior é a barreira à viabilização de propostas novas, que superem a limitação programática desses três candidatos, muito diferentes no âmbito sócio-geográfico, mas nem um pouco em termos político-históricos. São três artilheiros da socialdemocracia baseados em diversas combinações de camadas sociais e estamentos regionais, mas que só divergem sobre o modo de usar o aparelho estatal na execução de idêntico projeto.

Pior é a barreira à viabilização de propostas novas, que superem a limitação dos programas dos partidos

Essa preponderância orgânica do projeto socialdemocrata se justifica pela incomparável proeza histórica que realizou nas nações que mais avançaram. Tão intensa foi a expansão da capacidade produtiva decorrente da simbiose entre movimentos trabalhistas e projetos políticos semelhantes aos do PT, PSB e PSDB, que boa parte dos seres humanos passou do reino da necessidade ao da afluência, com educação, cultura e opções de vida e escolhas antes inimagináveis. O "Estado de bem-estar social" foi a grande conquista da socialdemocracia, que infelizmente não chegou a beneficiar a grande maioria dos que vivem no Sul.

O problema é que eventual continuidade do mesmo esquema agora esbarra em dois novos obstáculos. Por um lado, ficou patente nas últimas três ou quatro décadas que tão retumbante sucesso passou a solapar os próprios fundamentos biogeofísicos da prosperidade, o que traz muitas dúvidas sobre o futuro do desenvolvimento humano, mesmo nas mais sólidas e ricas democracias do primeiro mundo.

Por outro, também ficou evidente que estão obsoletos os arranjos que haviam garantido recordes de aumento da produtividade, particularmente durante o quarto de século apelidado de "Era de Ouro" (1948-73), mesmo que ainda possam encontrar sobrevida em democracias periféricas que se tornem emergentes, como o Brasil.

Incerteza sobre o desenvolvimento e obsolescência do pacto fordista só realçam o principal conflito contemporâneo: choque entre o ainda imprescindível, mas agora fugaz crescimento econômico, e a nova obrigação de maneirar seus impactos sobre a biosfera. Além de exigir muita governança global (pois mudança climática, erosão de biodiversidade e zonas oceânicas mortas por excesso de nitrogênio não são questões que possam ser combatidas com medidas unilaterais), esse é um desafio que demanda inédita simbiose entre movimentos sociais e projetos políticos.

O primeiro sintoma do incontornável imperativo histórico de superar o programa socialdemocrata foi o surgimento de agremiações políticas diferenciadas, como o neozelandês "The Values Party" em 1972, e o britânico "People" em 1973. Iniciativas que anos depois embarcaram no projeto "verde", seduzidas pelo fenômeno alemão "Die Grünen". Todavia, embora agora existam 109 partidos nacionais pertencentes a essa corrente (globalgreens.org), apenas os verdes alemães parecem ter alguma relação simbiótica com movimentos sociais. Todos os demais se meteram no gueto dos que enaltecem valores "pós-materialistas", com perdão pelo uso de tão canhestro jargão sociológico.

A boa notícia é que a mesma ambição de superar a socialdemocracia renasce em iniciativas como o "Partido del Futuro" na Espanha, e o "Movimento 5 Stelle" na Itália. Talvez uma segunda onda, desta vez centrada em dimensão da sustentabilidade que é bem mais tangível para a maioria dos cidadãos: a do efetivo funcionamento da democracia. Em vez de caírem na cilada dos que se deixaram reduzir à dimensão ambiental - por mais importante que ela inegavelmente seja - o que esses dois novos partidos mais exigem é democracia de verdade, democracia para valer, ou "democracia, ponto", como dizem os espanhóis.

Quase idêntico ao que surgiu por aqui com a iniciativa de criação da Rede Sustentabilidade, respaldada por substancial parcela de eleitores, como mostrou a votação de Marina Silva (mas não a do PV) em 2010, e reiteram as recentes pesquisas sobre intenções de voto.

Por isso, também só pode ser profundamente antidemocrática qualquer atitude que dificulte a consolidação dessa novidade política que poderá ser equivalente neste século ao que foi a socialdemocracia no século passado.

José Eli da Veiga, professor dos programas de pós-graduação do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP) e do Instituto de Pesquisas Ecológicas (IPÊ),
Fonte: Valor Econômico

‘Deus está vivo e bem no Morro do Bumba’ (Fernando Gabeira)




Nas reuniões clandestinas dos anos 1960, Vera Silvia Magalhães, brincando, sugeria como agenda: quem somos, onde estamos e para onde vamos? No início desta campanha presidencial, creio que seria razoável abordar esse tema, desde que se desçam, passo a passo, os degraus da abstração.

Na nossa jovem democracia, os governos levam enorme vantagem na partida: arrecadam fortunas dos empresários amigos e gastam fortunas do Tesouro com propaganda sobre realizações e personalidade do governante. As despesas da viagem de Dilma Rousseff a Roma, por exemplo, deveriam ser computadas nos gastos de campanha.

Como candidata montada em milhões de reais, Dilma é um artefato urdido pelo PT, por especialistas em marketing, um cabeleireiro de origem japonesa, cirurgiões plásticos e consultores de estilo. A rigidez dos ombros, o cansaço no andar indicam que está sobrecarregada pela máscara afivelada ao seu corpo. E algumas frases desconexas revelam que gostaria de deixar de fazer sentido, como os garotos que escreveram receita de Miojo ou o hino dos Palmeiras em suas composições no Enem.

Dilma viajou para ser fotografada ao lado do papa Francisco e dizer: "O papa é argentino, mas Deus é brasileiro". Nada melhor para uma campanha: posar ao lado do papa, brincar com a rivalidade com os argentinos, voltar para Brasília ainda mais popular do que saiu. A opção pelo luxo, na Via Veneto, no momento em que a Igreja fala de humildade não importa. Uma coisa é a Igreja, outra é o governo democrático popular, sem escrúpulos pequeno-burgueses, na verdade, sem escrúpulos de ordem alguma. Não importa que os estrangeiros vejam na sua frase uma certa dificuldade nacional de superar o complexo de inferioridade. Tudo isso é problema para a minoria que não tem peso nos índices de popularidade. O povo está satisfeito, as pesquisas são favoráveis e é assim que se pretende marchar para 2014.

Lula e José Dirceu foram heróis da vitória em 2002. Dirceu hoje trabalha para empresas junto ao governo. Lula viaja prestando serviços às empreiteiras. Lembram um pouco a desilusão dos jovens rebeldes no filme O Muro, de Alan Parker, inspirado na música de Pink Floyd. Um dos ídolos da rebeldia juvenil aparece no final melancolicamente vestido como porteiro de hotel, chamando táxis, ganhando gorjetas.

Lula fazia discursos contra o amoralismo do capital, a influências das empreiteiras, e aquelas frases de comício: um sonho sonhado junto não é sonho... Confesso que aplaudia e admito uma dose de romantismo incompatível com a minha idade. Muitos ídolos do rock, pelo menos, morreram de overdose. Na esquerda brasileira, passaram a trabalhar para a Delta ou viajar a soldo da Odebrecht. A popularidade do governo intimida e os candidatos de oposição não fazem um contraponto, mas se definem como uma variação melódica.

Ao deixar o luxuoso Hotel Excelsior, em Roma, Dilma afirmou, ante as mortes em Petrópolis, que era preciso tomar medidas mais drásticas para tirar as pessoas das áreas de risco. Levar para onde? Não se construiu uma única casa popular em Petrópolis. No Morro do Bumba, em Niterói, alguns moradores foram transferidos para um quartel da PM depois da tragédia que matou 48 pessoas em 2010. Os 11 prédios do PAC construídos para abrigá-los estão caindo, antes de inaugurados. Há fendas nas paredes e vê-se que os construtores usaram material barato. Cerca de R$ 27 milhões foram para o ralo. Deus está vivo e bem no Morro do Bumba. Se fossem para os novos prédios, a armadilha cairia sobre a cabeça dos desabrigados.

Quem tem boca (no governo) vai a Roma. Depois é preciso dar uma olhada na Serra Fluminense, verter aquelas lágrimas de praxe, no melhor ângulo e na melhor luz, para as inserções na TV. A mãe do PAC deveria visitar as obras destinadas ao Morro do Bumba com o carinho com que as mães visitam os filhos no presídio, os que deram errado mas nem por isso são esquecidos.

O governo costuma dizer que a oposição mais consistente é a da imprensa. Essa é sua desgraça e sua sorte. O incessante turbilhão das notícias obriga a imprensa a mover-se sem parar para cobrir o que acaba de acontecer. Sobra pouco tempo para retirar esqueletos do armário e voltar aos personagens de nomes bizarros que povoam os escândalos nacionais. A única maneira de quebrar a hegemonia perversa que contribuiu para devastar moralmente o Congresso, estreitar nossa política externa, confinar a economia nos limites do consumismo é fortalecer uma oposição real. Ela não se pode ater ao horizonte de uma só eleição. Precisa trabalhar todos os dias, imediatamente após a contagem dos votos.

Em política não existem eleições ganhas antecipadamente. Mas é preciso não contar com milagres. Mesmo eles só favorecem os que estão de pé, os que cedo madrugam. As pesquisas dizem que a maioria dos brasileiros está contente com o governo Dilma. A sensação de bem-estar impulsiona-os a aprovar o governo e ignorar as profundas distorções que impõe ao País.

Não é a primeira nem a última vez que a minoria se coloca contra uma onda de bem-estar fundamentada apenas no aumento do consumo. No passado éramos bombardeados com a inscrição "Brasil, ame-o ou deixe-o". Agora ninguém se importa muito se você ama ou deixa o País.

O mecanismo de dominação é consentido. Nosso universo se contraiu e virou um mercado onde tudo se compra e se vende, secretarias negociam ilhas, ex-presidentes cobram dívidas de empreiteiras e, na terra arrasada do Congresso, o pastor Marco Feliciano posa fazendo uma escova progressiva. Parafraseando Dilma, são necessárias medidas mais drásticas para tirar essa gente de lá.

A única arma à nossa disposição é o voto. A ausência de uma oposição organizada e aguerrida é uma lacuna. Quando há uma base social para a oposição, dizem os historiadores, ela acaba aparecendo dentro do próprio governo. E aparece discreta, suave, como discretos e suaves são os que se lançam agora diante da milionária máquina topa-tudo do PT.



* Fernando Gabeira é jornalista.
Fonte: O Estado de  São paulo (29/03/2013)

"PT permitiu que agenda social se dissociasse da agenda moral" (Renato Janine Ribeiro)

"A questão é: até quanto se cede? Será que o PT cedeu mais do que devia? Ou será, o que levou muitos a abandonarem o PT, que cedeu com mais gosto e satisfação do que devia?”, questiona o filósofo.


“Ele [o PT] teve pleno sucesso na inclusão social, fazendo cinquenta milhões de pessoas subirem das classes D e E para a C. Tornou esta última classe a mais numerosa do país. Inscreveu definitivamente o combate à miséria e o projeto de construção de uma sociedade de classe média nas prioridades do país; mesmo a oposição, nas últimas eleições, propôs ampliar o Bolsa Família, embora antes disso sempre o criticasse. O PT mostrou também que a esquerda pode ter competência para governar, o que na prática torna viável a alternância política no país. Finalmente, ele tomou parte na grande mudança política que guinou a América do Sul para a esquerda, construindo uma autonomia maior em face dos Estados Unidos”. 

A avaliação dos 10 anos do PT no poder no Brasil é do professor Renato Janine Ribeiro, (foto abaixo) na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
No entanto, depois de elencar os fatores positivos do governo, ele pondera: “o PT faz falta na oposição”. Para Janine Ribeiro, o partido hoje é valorizado pela sua política de inclusão social, mas não mais pelos seus princípios éticos. “Isso é preocupante, porque seu lugar ficou vazio”. E conclui: “não existe mais o partido diferente de todos os outros. Não há mais um projeto ético que procure mudar toda a sociedade brasileira. A sociedade está mudando, mas o aumento do poder de compra é mais importante, no governo do PT, do que eram as utopias petistas, por exemplo, no que se referia à cultura e à educação. O lugar da ética na política ficou vazio, e o único grupo que pode aspirar a ocupá-lo é o dos verdes. Perto disso, a hipoteca do sistema financeiro sobre a política é apenas um aspecto, não traduzindo o essencial: que se perdeu boa parte da fé na política”.

Professor titular de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo – USP, na qual se doutorou após defender mestrado na Sorbonne, Renato Janine Ribeiro tem se dedicado à análise de temas como o caráter teatral da representação política, a ideia de revolução, a democracia, a república e a cultura política brasileira. Entre suas obras destacam-se A sociedade contra o social: o alto custo da vida pública no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 2000) e A universidade e a vida atual – Fellini não via filmes (Rio de Janeiro: Campus, 2003). Renato Janine Ribeiro é, desde 2004, diretor de avaliação da Fundação Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior, órgão do Ministério da Educação).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais os principais pontos que marcam a trajetória de 10 anos do PT na presidência da República?

Renato Janine Ribeiro – Ele teve pleno sucesso na inclusão social, fazendo cinquenta milhões de pessoas subirem das classes D e E para a C. Tornou esta última classe a mais numerosa do país. Inscreveu definitivamente o combate à miséria e o projeto de construção de uma sociedade de classe média nas prioridades do país; mesmo a oposição, nas últimas eleições, propôs ampliar o Bolsa Família, embora antes disso sempre o criticasse. O PTalternância política mostrou também que a esquerda pode ter competência para governar, o que na prática torna viável a no país; antes, sempre havia o receio de que a esquerda não tivesse quadros para dirigir o Brasil. Finalmente, ele tomou parte na grande mudança política que guinou a América do Sul para a esquerda, construindo uma autonomia maior em face dos Estados Unidos. Isso para os pontos positivos.
IHU On-Line – Quais os limites que se colocam à democracia diante de um partido que permanece por 10 anos no poder em um país como o Brasil?

Renato Janine Ribeiro – O grande ponto negativo é este: o PT faz falta na oposição. O PSDB e o movimento verde não conseguem ter a garra que os petistas tiveram nos 21 anos em que eram o partido “contra tudo o que está aí”. Além disso, o PT se adaptou bem demais, talvez, ao governo. No período entre a eleição e a posse de Lula, por exemplo, já em 2002, ele poderia ter discutido abertamente o que manteria de suas bandeiras históricas e onde faria concessões necessárias, dado que em nosso sistema político ele não teve nem poderia ter a maioria no Congresso. Mas não houve essa transparência. Daí, os problemas éticos, que não podemos esquecer.

IHU On-Line – Qual tem sido a contribuição do PT no governo federal para a consolidação da democracia no Brasil? Ou podemos dizer que a contribuição se deu no sentido contrário, permitindo com que a democracia se tornasse ainda mais sequestrada, condicionada e amputada pelo sistema financeiro?

Renato Janine Ribeiro – O PT, na oposição, tinha duas bandeiras centrais: o combate à ética e a luta contra a miséria e a pobreza. Ficava claro que lutar contra a pobreza extrema era ético, e reciprocamente. Ou seja, não se separavam a agenda moral e a social do partido. No governo, o PT foi longe na agenda social, mas permitiu que ela se dissociasse da agenda moral. Em 2006, ao fim do primeiro mandato Lula, o PSDB gravou para o candidato de oposição um jingle que clamava “por um Brasil decente”. Ora, apenas três anos antes seria impensável alguém usar a ética para atacar o PT! O mensalão mudou profundamente a imagem do PT. O partido, hoje, é valorizado pela sua política de inclusão social, mas não mais pelos seus princípios éticos. Isso é preocupante, porque seu lugar ficou vazio.

O antes e o depois do poder

Houve, creio eu, dois fenômenos que se juntaram. O PT tinha a irresponsabilidade do discurso de oposição, criticando tudo e todos, sem ter que prestar contas do que fazia porque não tinha poder. Uma vez no governo, ele foi mais eficiente do que se imaginava. Mas isso implica – e este é o segundo fenômeno – reduzir certas exigências éticas. Implica ter alianças para poder governar. Com o regime que temos, precisa-se do Congresso. A questão é: até quanto se cede? Será que o PT cedeu mais do que devia? Ou será, o que levou muitos a abandonarem o PT, que cedeu com mais gosto e satisfação do que devia? Para usar o tradicional comentário sobre alguém que faz algo “docemente constrangido”, parece que foi mais docemente do que constrangido. Os custos disso para a confiança da sociedade nos partidos foram elevados. Não existe mais o partido diferente de todos os outros. Não há mais um projeto ético que procure mudar toda a sociedade brasileira. A sociedade está mudando, mas o aumento do poder de compra é mais importante, no governo do PT, do que eram as utopias petistas, por exemplo, no que se referia à cultura e à educação. O lugar da ética na política ficou vazio, e o único grupo que pode aspirar a ocupá-lo é o dos verdes. Perto disso, a hipoteca do sistema financeiro sobre a política é apenas um aspecto, não traduzindo o essencial: que se perdeu boa parte da fé na política.

IHU On-Line – O que um governo que se apresenta como de esquerda ofereceu para o Brasil ao longo desses 10 anos?

Renato Janine Ribeiro – A inclusão social, sob as mais variadas formas. Há o aumento do poder de compra, há a expansão do ensino universitário público, há as iniciativas de Gilberto Gil para a cultura. Mas não creio que o governo seja, ou se apresente como sendo, de esquerda. É uma coalizão de centro-esquerda, no melhor dos casos. Por isso, o quinhão de utopia, de mudanças maiores, acaba sendo relativamente menor do que deveria ser.

IHU On-Line – Como tem aparecido no Brasil o desprestígio dos partidos e do modelo representativo de política?

Renato Janine Ribeiro – É possível que desde o Império se tenha, no país, uma forte convicção de que políticos são desonestos. Alguns líderes, por sinal, cresceram justamente denunciando seus adversários – Jânio, Collor e, caso excepcional porque não se trata de um indivíduo, mas de um partido, o próprio PT. Hoje, porém, a crença de que algum partido vá melhorar o país eticamente se esvaiu.

Quando à política representativa... Esta questão supõe que exista outra, que seria a democracia direta. Em um quarto de século desde que a Constituição de 1988 previu consultas diretas à população, o mecanismo foi usado em apenas duas ocasiões. Da primeira vez, para decidirmos a manutenção da república ou a volta da monarquia, uma questão ridícula, e resolvermos entre parlamentarismo e presidencialismo. Da segunda, para se proibir ou não a venda legal de armas – o que afetava talvez mil revólveres vendidos por ano, porque quase todo o comércio na área é já o ilegal. A democracia direta, que parecia promissora nos anos 1980, foi mal utilizada. Praticamente sumiu do horizonte da política. Com isso, resta a representativa, que as pessoas identificam com “a política” em geral, mas que traz um distanciamento significativo entre representantes e representados.

IHU On-Line – O que representa essa apatia política por parte da população?

Renato Janine Ribeiro – É fruto do desencanto com os políticos, da péssima discussão pública sobre a política em nosso país – que se resume em atacar grosseiramente o adversário, em vez de se construir uma ágora – e da falta de experiência histórica no sentido de acreditarmos que a mobilização popular possa resultar em algo. Tudo isso pode mudar para melhor. Ou pode ficar como está, e levar a um desencanto cada vez maior com a política – veja os sites dos grandes órgãos de imprensa, que destacam celebridades, em contraste com suas edições impressas, que estão mais próximas da pauta tradicional da política. O público quer mais os escândalos e mesmo o voyeurismo sexual do que as discussões, por vezes enfadonhas, da política. O risco disso é reconduzir sempre os mesmos. Por isso é importante melhorar o debate político, recusando o maniqueísmo, e as pessoas se mobilizarem em torno de causas importantes.

IHU On-Line – Atividades como mobilizações pela web podem indicar uma nova forma de fazer política?

Renato Janine Ribeiro – Sem dúvida indicam. Mas, para fazer uma flash mob convocada pelo Twitter, você já precisa ter uma determinada convicção difundida por muita gente. O que a internet não foi capaz de fazer, ou melhor, as pessoas que usam a internet, é uma plataforma de debate em que se possa mudar de ideia. O que é precioso na democracia é isto: você, pela discussão, mudar de ideia. Ouvir antes de decidir.

IHU On-Line – O que significa ser esquerda em nossos dias? Que exemplos podem ser citados no Brasil e na América Latina de uma “esquerda sem medo de dizer seu nome” (para citar Vladimir Safatle)?

Renato Janine Ribeiro – Não vejo esquerda com medo de dizer seu nome. O que vejo mais é um esvaziamento dos projetos tradicionais da esquerda. Há um núcleo puro e duro que ainda segue Marx. Ora, tanta coisa no cerne do pensamento dele deu errado que isso exigiria uma revisão em regra! Para Marx, o comunismo sucederia ao capitalismo não só eticamente, mas por ser um modo superior de produção. Não é o caso. Mas quem critica o pensamento de Marx, na esquerda mais radical? Isso não se faz. Então, o que temos é um certo oportunismo que faz o PT aliar-se ao grande capital, o PCdoB controlar o esporte, cooperando até com o ex-prefeito liberal de São Paulo, e assim por adiante. Ou seja, o que temos é uma ex-esquerda que age e pensa mais à direita. Por volta de 1980, quando ruíam o comunismo e o socialismo, uma alternativa estava pronta, o projeto neoliberal. Mas, quando a crise de 2008 provou que este era ruim, tinha a esquerda alguma alternativa pronta ou sequer em andamento? Não. O problema da esquerda não é de nome, é de conteúdo: ela perdeu o seu.

IHU On-Line – Em que medida podemos falar de uma integração política latino-americana, considerando a trajetória dos presidentes dos países em questão?

Renato Janine Ribeiro – Se o projeto bolivariano prosseguir, não parece que o Brasil tenha lugar nele. O PT não lhe é simpático. Uma coisa é defender Chávez e, agora, seu legado positivo, outra é importar uma tradição de conflito que não é bem nossa.

IHU On-Line – Qual a pertinência, atualidade e inspiração que a revolução bolivariana pode oferecer no sentido de pensar uma nova política, mais à esquerda?

Renato Janine Ribeiro – Sou um tanto cético a respeito. Aprovo e aplaudo a distribuição de renda promovida por Chávez e muitos outros. Mas a Venezuela continua dependente do petróleo. É melhor que a riqueza dele se espraie pelo povo, sem dúvida. Porém, como nosso vizinho poderá, um dia, ter um sistema produtivo mais rico? Como poderá sair dessa situação, que não faz bem a nenhum país produtor, de ter tanta riqueza em troca de tão pouco trabalho, basicamente extrativo? Há uma desmoralização do trabalho, quando tanto dinheiro vem da coleta e da extração.

IHU On-Line – Quais as dificuldades do PT em mediar o conflito entre os ideais de igualdade e liberdade? Por que a esquerda não consegue resolvê-lo?

Renato Janine Ribeiro – O PT optou, a meu ver, claramente por uma inclusão social que não hostilizasse a direita e o capital. Teve êxito graças a isso. Uma estratégia de enfrentamento teria provavelmente levado a derrotas eleitorais e, até mesmo, a um golpe branco, no estilo de um impeachment. Nesse sentido, essa questão não me parece sequer ter-se colocado. A liberdade empresarial convive com iniciativas fortes rumo à igualdade. Agora, liberdade e igualdade têm conteúdos muito mais amplos do que os que temos visto no Brasil. Isso pouco se discute. E não é fortuito que Lula tenha escolhido, como sucessora, a líder dentro do PT mais próxima do mundo empresarial.

IHU On-Line – Como conciliar o sonho da classe média com consumo livre para todos? Isso se viabiliza de forma prática? Quais os conflitos que aparecem aqui?

Renato Janine Ribeiro – A presidenta Dilma disse mais de uma vez que deseja fazer do Brasil um país de classe média, creio eu que como a França. É um belo sonho – e moderado. Não há nada menos marxista. Muitos pensadores marxistas têm mais horror da classe média do que da alta burguesia. O termo “pequeno burguês” era um dos palavrões mais fortes dos velhos comunistas. Os revolucionários dos anos 1960 veriam esse ideal da presidenta com péssimos olhos, porque seria uma forma – talvez eficaz – de esvaziar a possibilidade de uma revolução radical. Mas parece que está aí o nosso futuro e, na medida em que elimine a miséria e reduza a pobreza, acho-o positivo.

Porém, é claro que o consumo é inimigo do meio ambiente e corre o risco de trazer a morte para o nosso planeta. Aqui os verdes teriam uma contribuição importante a fazer. Contudo, ela ainda é incipiente. Acredito que nosso futuro político dependa muito da capacidade, extinta a miséria, vencida a pobreza, de termos uma economia sustentável.

Mas precisamos ir mais além. Precisamos pensar no mundo pós-semana de 48 ou 40 horas de trabalho. Por que não se reduz mais a jornada de trabalho? Porque se teme, penso eu, o lazer. Vivemos num mundo de ócio absolutamente não criativo. Chama-se Domenico de Masi para falar do ócio criativo, mas os mesmos que o aplaudem nada fazem para dar esse passo. Penso que estaríamos aptos para começar a construir uma sociedade em que o lazer criativo – essencialmente, cultura e atividade física – deem o tom. Mas veja a televisão no dia canônico do lazer, o domingo: ela cai ao nível mais baixo possível. Ou, repito, olhe a homepage dos sites de informação: as notícias mais lidas são as piores. O lazer, hoje, é ocupado pelo que há de menos elaborado no ser humano. É isso o que temos de mudar, é este o cerne do futuro.

Por Graziela Wolfart

sábado, 23 de março de 2013

Desejo de poder (Marco Aurélio Nogueira)






A decisão foi tomada com a costumeira sagacidade, um dos atributos mais incensados do ex-presidente Lula. Mas não faz jus à importância política que ele tem na História recente do País. Quando, a dois anos do fim do mandato da presidente Dilma Rousseff e dos governadores estaduais, a população e o sistema político são instados a derivar para a dinâmica da sucessão, todos perdem alguma coisa.

Perdem antes de tudo os governos, que trocam suas agendas executivas e seus planos de obras, investimentos e repasses por afagos em aliados, reprimendas em adversários e trancos em inimigos. Atos que deveriam ser corriqueiros se convertem em factoides, decisões são antecipadas ou postergadas com o propósito de chamar a atenção e dramatizar a relação com a sociedade. Tudo sai do eixo, da dimensão do que é razoável, escorre pelo ralo das maldades e bondades de que é feita a face escura da política - uma face que se suporta bem quando a outra face exibe vigor e determinação, o que está bem longe de acontecer. E assim, como que de repente, jogam-se todos num frenesi para acumular trunfos, "adensar o entorno", compor base política e atrapalhar os adversários.

Prova disso é a reforma ministerial promovida pela presidente na semana passada, em meio ao anúncio de novos benefícios à população e a uma nova onda de aprovação popular a seu governo. A troca de ministros não seguiu nenhuma lógica gerencial, foi pura fisiologia e ajuste para acomodar parceiros e manter intacta a base governista. Como disse o deputado federal Alfredo Sirkis (PV-RJ), "alguns ministros insignificantes saíram e outros ministros insignificantes entraram". Abriram-se dessa forma mais espaços para a ação predatória dos partidos aliados, sem critério algum ou justificativa séria.

O governar, nesse quadro, torna-se exibicionismo, marketing e construção de imagem. Governos e governantes ganham em protagonismo e visibilidade, mas perdem em planejamento e eficácia, agindo na contramão do que deles se espera. Assume o primeiro plano, sem nenhuma dissimulação, aquele "perpétuo e irrequieto desejo de poder" que Thomas Hobbes (1651) considerava tendência geral dos homens.

Mesmo no universo imediatamente político, quer dizer, no mundo dos políticos e dos partidos, não há só ganhadores. Os que se posicionam na situação, estejam em Brasília ou nos Estados, ganham certamente alguma coisa. Foi pensando neles que Lula decidiu lançar Dilma à reeleição. Com sua argúcia autorreferenciada, imaginou criar um fato que ajudasse o governo a visualizar amigos e inimigos, tanto dentro quanto fora da coalizão governante. O sinal de largada significou que a partir de agora políticos e partidos situacionistas devem maximizar o uso de seus recursos de poder para infernizar a vida dos adversários e tentar cristalizar suas marcas e identidades. Devem pôr em movimento uma enxurrada de obras, promessas e realizações. Devem rever e ajustar cronogramas anteriores ou simplesmente inventar outros às pressas. Menos discussão, crítica e reflexão, mais movimento e divulgação.

No campo das oposições, o estrago é ainda maior, pois elas são forçadas a acelerar a resolução de seus próprios dilemas e dificuldades. Ao fazerem isso abrem mão de um trabalho mais cuidadoso, mais denso, mais afinado com suas tradições e mais atento aos problemas nacionais. Tendo de interagir com um futuro artificialmente antecipado não conseguem resolver nem acomodar suas contradições e tensões, perdendo força antes mesmo de irem à luta. Os ruídos e arestas entre José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves no interior do PSDB, assim como os improvisos que o PSB é obrigado a fazer para dar corpo e envergadura a Eduardo Campos, são a ponta mais visível desse iceberg.

Isso não quer dizer que as oposições terminem por ver aumentar sua letargia. Elas até poderão chegar em condições razoáveis à disputa eleitoral de 2014. Mas dificilmente farão isso sem um esforço desproporcional, sangrando bastante e varrendo a sujeira para debaixo do tapete. Terão menos tempo para reunir seus pedaços, elaborar um programa consistente que parta de um diagnóstico profundo da realidade nacional e tenha engenho e arte suficientes para seduzir os eleitores. Em vez de candidatos oposicionistas fortes, sustentados por proposições substantivas e coerentes, sintonizados com correntes de opinião e interesses conscientes de si, surgem candidaturas alternativas impulsionadas por apetites pessoais e regionais. Dar-se-á o mesmo no campo situacionista, já que seus candidatos serão levados a requentar o conhecido, em vez de tentar dar um passo à frente e inovar. A pressa é inimiga jurada da perfeição.

A antecipação casuística do calendário eleitoral é ruim para a democracia e para a massa de eleitores, em especial aqueles setores sociais (os pobres, os excluídos, os discriminados) que mais teriam a ganhar com a existência de um debate democrático de qualidade, pedagógico e incorporador. A partir de agora tal debate se tornou hipótese remota.

A manobra de Lula - como, aliás, qualquer manobra em política - traz consigo alguma dose de risco. Ela submete Dilma a um teste de resistência. A candidata situacionista, que hoje é a maior beneficiária da antecipação, terá de caminhar daqui para a frente com um pé em cada canoa, apresentar-se ora como gestora e governante do presente, ora como fiadora de um futuro que parece distante demais. Poderá chegar inteira e fortalecida às urnas de 2014, mas poderá também acumular algum desgaste por excesso de exposição. Se a calmaria se instalar no País, ela se apresentará como sua criadora e tenderá a magnetizar de forma invencível todo o campo político. Se, porém, a vida não lhe fornecer só temperaturas amenas, brisa e água fresca, chegará extenuada ao momento eleitoral, será responsabilizada por erros e fracassos e terá poucos ombros amigos em que se apoiar.

Professor Titular de Teoria Política e Diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais de Unesp

Fonte: O Estado de S. Paulo

Trabalho de casa (Marina Silva)






É necessário distinguir o mero crescimento --efêmero, superficial, reversível-- do verdadeiro desenvolvimento econômico e social.

Muitas vezes, o alinhamento político e a busca de resultados imediatos obscurecem a análise de governos e oposições, que se atracam em disputas pelo crescimento em vez de buscarem consenso para estender à sociedade benefícios do desenvolvimento. E não resta dúvida de que, nos últimos 20 anos, mesmo quando o crescimento não foi exuberante, o desenvolvimento econômico do Brasil avançou e vem criando condições para superar fragilidades sociais e históricas.

Tramita agora no Congresso, em fase final de votação, a PEC que equipara os direitos das empregadas domésticas (por que sempre usamos no feminino?) aos dos demais trabalhadores. Sim, temos até hoje um regime trabalhista que divide cidadãos com mais e com menos direitos em função de sua ocupação. Sempre houve um forte apelo para corrigir essa injustiça, mas os mais refratários à ampliação desses direitos sempre evocavam os custos elevados e o receio de que muitos trabalhadores perdessem o emprego. Assim, as conquistas vêm a conta-gotas.

Conheço bem esse drama. Aos 17 anos, quando fui empregada doméstica, não tinha noção do que eram direitos trabalhistas, sentia apenas gratidão pela família que me acolhia em sua casa e me dava emprego. Ainda sou grata, mas sei que milhões de pessoas que realizam o trabalho doméstico não podem constituir um gueto social, numa relação de servidão incrustada no século 21.

Agora temos um contexto favorável. Mais de 15 anos de baixa inflação, com melhoria de distribuição de renda, avanços importantes nos programas de transferência de renda e baixo nível de desemprego são fatores de estabilização do desenvolvimento econômico que fornecem lastro para a conquista de direitos trabalhistas.

Lembro que o senador Suplicy, primeiro a pregar no deserto para convencer a sociedade a adotar programas de renda mínima, já chamava a atenção para esse efeito: o trabalhador, tendo a garantia de uma renda de subsistência, pode rejeitar condições inadequadas de trabalho. Isso vale para o emprego doméstico, mas precisa avançar também em outras situações de extrema precariedade, como carvoarias ilegais e atividades em zonas rurais e remotas. Mesmo nas periferias urbanas persistem situações de trabalho em condições similares à escravidão.

São situações que não deveriam existir mais num país que chega ao século 21 reivindicando o direito de estar no time do Primeiro Mundo.

Transformar o crescimento em desenvolvimento, e dar a esse a sustentabilidade que advém da justiça social, é o trabalho de casa inadiável de nossa sociedade.

Fonte: Folha de S. Paulo

Interpretações sobre o Brasil contemporâneo (Fernando Perlatto)







O lulismo existe sob o signo da contradição. Conservação e mudança, reprodução e superação, decepção e esperança num mesmo movimento. É o caráter ambíguo do fenômeno que torna difícil a sua interpretação (André Singer, Os sentidos do lulismo, 2012, p. 9).

Dez anos se passaram desde a chegada de Lula ao poder. Um balanço geral sobre a experiência petista frente ao governo federal durante este período — quer sob a batuta de Lula, quer sob o comando de Dilma — merece especial atenção não somente para uma melhor compreensão da conjuntura política brasileira na última década, mas para uma formulação mais bem compreendida acerca dos possíveis caminhos a serem seguidos pelos segmentos sociais comprometidos com a ampliação da democratização política e social do país. Nas linhas que se seguem procurarei apresentar, de forma resumida, cinco interpretações da experiência petista desses dez anos de governo, buscando compreender suas orientações principais. Não se trata de afirmar que as leituras aqui mobilizadas sobre o país são as únicas disponíveis no cenário brasileiro. Mas, elas são, a meu ver, as mais sistemáticas e perspicazes elaboradas no campo da esquerda.

Não se trata também, obviamente, de, em poucas linhas, elaborar uma discussão pormenorizada de cada uma dessas interpretações, mas tão somente apontar os sentidos gerais dos principais argumentos mobilizados pelos analistas, explorando aproximações e tensões, para, em seguida, sugerir alguns desafios para o campo da esquerda no sentido de avançar no processo de democratização política e social do país. Os autores selecionados foram divididos em dois grandes blocos, a saber: (1) aqueles que têm construído análises mais positivas sobre os dez anos de governo do PT (Emir Sader, André Singer e Vladimir Safatle); (2) aqueles que tecem considerações mais negativas da experiência petista (Francisco de Oliveira e Luiz Werneck Vianna). Ainda que haja diferenças significativas entre os autores “pertencentes” a cada bloco, é possível sublinhar aproximações em suas concepções mais gerais dos projetos políticos implementados nos governos Lula e Dilma. A ideia a ser sustentada é a de que as análises elaboradas por Singer, Safatle e Werneck Vianna, não obstante suas diferenças, fornecem elementos mais acurados para uma melhor interpretação do Brasil contemporâneo e para a formulação, por parte da esquerda, de uma agenda comum voltada para o aprofundamento do processo de transformação social do país.

Iniciarei esta exposição com um breve resumo da interpretação do Brasil contemporâneo elaborada por Emir Sader, tomando como base texto recente, divulgado em seu blog, vinculado à Carta Maior, intitulado “10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil” (31/12/2012). Neste artigo, o autor tece uma avaliação bem positiva da experiência petista à frente do poder, argumentando que os governos Lula e Dilma se caracterizariam pela procura da superação dos “modelos centrados no mercado, no Estado mínimo, nas relações externas prioritariamente voltadas para os Estados Unidos e os países do centro do sistema”, privilegiando os “processos de integração regional e os intercâmbios Sul-Sul”. Na busca pelo rompimento com a “pesada herança econômica, social e política recebida”, estes governos teriam resgatado o Estado “como indutor do crescimento econômico” e da “garantia dos direitos sociais de todos”, estabelecendo “um modelo de desenvolvimento intrinsecamente articulado com políticas sociais redistributivas, colocando a ênfase nos direitos sociais e não nos mecanismos de mercado”. As consequências da adoção deste novo modelo seriam atestadas pela transformação significativa da “estrutura social do país”, mediante “profundos processos de combate à pobreza, à miséria e à desigualdade”, que teriam conduzido a “formas maciças de ascensão econômica e social, com acesso a direitos fundamentais, de dezenas de milhões de brasileiros”. A “mais forte crise econômica internacional das últimas oito décadas” não teria sido suficiente para estancar este processo de inclusão social, “mesmo em situações econômicas adversas”.

A “herança pesada” recebida pelos governos Lula e Dilma, que Sader associa quer aos efeitos da ditadura militar — “que quebrou a capacidade de resistência do movimento popular” —, quer aos “governos neoliberais de mais de uma década” — “de Collor a FHC” —, teria imposto dificuldades para a implementação de um novo processo de desenvolvimento econômico e social no país. Para superar o “Estado desarticulado, uma economia penetrada pelo capital estrangeiro, um mercado interno escancarado para o mercado internacional, uma sociedade fragmentada, com a maior parte dos trabalhadores sem contrato de trabalho”, Lula e Dilma teriam investido em novas agendas capazes de romper com “três aspectos essenciais do modelo neoliberal”: “prioridade das políticas sociais”; “prioridade dos processos de integração regional e das alianças Sul-Sul”; e “retomada do papel do Estado como indutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais”. Como decorrência dessas medidas, Sader afirma que os governos Lula e Dilma constituíram o “eixo do modelo pós-neoliberal”, que seria comum a “todos os governos progressistas latino-americanos”, que conjugariam a superação do neoliberalismo com a construção de “projetos de integração regional autônomos em relação aos EUA”.

No campo de intepretações mais positivas sobre o governo Lula, não há como não destacar a notável análise de André Singer, elaborada primeiramente em seu artigo “Raízes sociais e ideológicas do lulismo”, publicado na revista do Cebrap, Novos Estudos, em 2009. Este texto teve o grande mérito de suscitar novos debates e reflexões em torno da conjuntura política brasileira ao trazer para o centro da cena uma perspectiva ao mesmo tempo favorável e crítica do modelo implantado desde a chegada de Lula ao poder. Mais recentemente, Singer sintetizou seus argumentos no livro Os sentidos do lulismo. Reforma gradual e pacto conservador (Companhia das Letras, 2012), que contém, além do artigo acima referido, outros textos que expõem de maneira mais pormenorizada seu argumento. Talvez um dos grandes valores da obra de Singer tenha sido o de estabelecer uma interpretação de conjuntura que se ancora em conceitos formulados por autores clássicos — em especial, as noções de “política de massas” e “revolução passiva”, elaboradas, respectivamente, por Marx e Gramsci — em diálogo direto com intepretações clássicas da política brasileira — como aquela sobre o “populismo” realizada por Francisco Weffort — e análises de outros autores brasileiros que vêm procurando compreender o “caráter ambíguo” do lulismo e suas consequências políticas e sociais, como Francisco de Oliveira, Luiz Werneck Vianna, Brasílio Sallum Jr., Marcos Nobre, Juarez Guimarães, Ruy Braga, Rudá Ricci, Jessé Souza, entre outros.

O argumento central de Singer vincula-se à ideia segundo a qual determinadas transformações conjunturais que se intensificaram a partir de 2006 teriam provocado o surgimento do “lulismo”. A combinação entre a adoção, entre 2003 e 2005, por parte do governo Lula, de políticas voltadas para a redução da pobreza com a crise do “mensalão”, em 2005, teria produzido no país aquilo que o autor chama de “realinhamento eleitoral”. Este realinhamento seria responsável, segundo Singer, pela transformação da conjuntura política brasileira: de um lado, uma fração de classe, o “subproletariado”, teria aderido ao projeto de Lula; de outro lado, teria ocorrido o deslocamento da classe média, outrora eleitora do PT, em direção ao PSDB. Para Singer, a base lulista surgida após este “realinhamento” proporcionou ao presidente a possibilidade de ampliação do modelo de diminuição da pobreza, sem que isto representasse qualquer confronto significativo com o capital e com manutenção da ordem. Ao contrário de análises que sustentam a ideia segundo a qual teria havido uma despolarização da política brasileira após ascensão do PT ao poder, o autor afirma que o país estaria vivenciando um processo de “polarização ideológica”, não mais entre esquerda e direita, mas “entre ricos e pobres”, produzindo forte repercussão regional, especialmente no Nordeste.

Singer situa sua análise no debate mais amplo sobre classes e procura chamar a atenção para o caráter contraditório do lulismo: “ao promover um reformismo suficientemente fraco para desestimular conflitos”, ele acabaria por estender no tempo “a redução da tremenda desigualdade nacional” (p. 22). O realinhamento eleitoral de 2006 e o fenômeno do “lulismo” teriam intensificado a polarização social entre ricos e pobres, de forma “talvez até mais intensa, do que a dramatizada por PTB e UDN nos anos 1950” (p. 36), mas não teria conduzido a uma radicalização política desta mesma polarização social. Para Singer, ao analisar o fenômeno de forma mais ampla, seria possível dizer que o “lulismo” conduziria a uma “ruptura real” da ordem anterior, ao deslocar o subproletariado da burguesia; mas, ao fazê-lo sem mobilização, configurar-se-ia como um caso de “revolução passiva”, na chave pensada por Gramsci. De qualquer modo, o lulismo representaria “a criação de um bloco de poder novo, com projeto político” (p. 37), abrindo “possibilidades inéditas a partir dessa novidade histórica” (p. 44, grifo do autor). “Lento e desmobilizador”, o reformismo lulista permaneceria sendo “reformismo”, ao promover modificações reais, ainda que “em silencioso curso”.

Como se percebe, portanto, a análise de Singer é positiva em relação à experiência petista no poder, destacando suas potencialidades, mas não deixa de apontar para suas contradições e limitações ao promover um processo de transformação que não implica um reformismo forte. Não obstante haja diferenças significativas, a análise de Singer converge, no plano mais geral, com interpretação recente do governo petista, elaborada por Vladimir Safatle, em seu texto “Os impasses do lulismo”, publicado no site da revista Carta Capital (janeiro de 2013). Em ambas as interpretações, reconhecem-se avanços da experiência do PT à frente do governo federal, mas são também destacadas suas contradições. Em seu pequeno, porém arguto artigo, Safatle, ao mesmo tempo em que destaca a importância do “lulismo” para estimular a “transformação do Estado em indutor de processos de ascensão por meio da consolidação de sistemas de proteção social, do aumento real do salário-mínimo e incentivo ao consumo”, chama a atenção para suas limitações no sentido de promover transformações mais significativas no quadro político e social do país. O lulismo se sustentaria “na transformação de grandes alianças heteróclitas em única condição possível de ‘governabilidade’”, com a consequência de retirar da agenda política “toda e qualquer modificação estrutural nos modos de gestão do poder”. Ao referendar um “modo de gestão de conflitos políticos que encontra suas raízes brasileiras na Era Vargas” — marcado pela “transposição dos conflitos entre setores da sociedade civil para o interior do Estado” —, o governo Lula, por “fagocitose de posições”, teria logrado sucesso no sentido de “esvaziar tanto as oposições à direita quanto à esquerda”, processo esse facilitado pela “inanição intelectual completa da oposição à direita”.

Safatle sugere a possibilidade de o governo Dilma representar o “esgotamento do lulismo”, que se converteria, a seu ver, em “um lulismo de baixo crescimento”, gerenciado pela presidente. O modelo, portanto, estaria se esgotando. Se a política social inclusiva foi a marca por excelência da experiência petista, ela não estaria mais dando conta de ir além e romper com o quadro de um país que permanece com “níveis brutais de desigualdade”. O processo de inclusão ver-se-ia acompanhado de um movimento inflacionário, no qual as “demandas de consumo cada vez mais ostentatórias” pressionariam “o custo de vida para cima”, prejudicando os segmentos mais vulneráveis. Se é possível, de fato, afirmar a importância da criação de empregos, estes se caracterizariam, em sua maioria absoluta, por trabalhos com salários de até um e meio salário-mínimo. Além disso, a criação de novos empregos não teria sido seguida por um “programa para a universalização da educação e saúde pública de qualidade”, capaz de minimizar os “efeitos perversos da desigualdade”.

Para além do campo social, Safatle aponta as contradições do governo petista no que tange ao financiamento estatal do capitalismo nacional, que teria estimulado tendências monopolistas da economia brasileira. Os principais setores econômicos estariam sob a dependência do Estado, principalmente via BNDES, “com seus serviços de péssima qualidade e seus preços extorsivos”. O processo de centralização econômica seria acompanhado, segundo Safatle, do processo de centralização política, na figura da presidente Dilma, cujo resultado constituiria na “incapacidade do governo em formular e discutir alternativas” com outros segmentos da sociedade civil, em especial os sindicatos. As “grandes modificações” teriam desaparecido da agenda política do governo petista para dar lugar “a certo ‘gerencialismo’”, focado na “gestão cotidiana”, movimento para o qual teria contribuído sobremaneira a própria trajetória do PT, caracterizada pelo “afastamento definitivo dos núcleos de debate da sociedade civil (universidades, movimentos sociais etc.)”. A continuar este cenário, a política brasileira estaria condenada à reprodução de um quadro dominado por “partidos-curinga”, como PSD e PSB, “que têm, como grande característica, não ter característica alguma”. A única possibilidade de superação desse quadro seria uma eventual “radicalização paulatina dos extremos”, que Safatle encara como “a única condição para que voltemos a pensar politicamente”.

No campo das análises que elaboram interpretações mais negativas dos dez anos de governo petista, vale destacar aquelas realizadas por Francisco de Oliveira e Luiz Werneck Vianna. Ainda que o primeiro assuma uma perspectiva mais contrária à experiência petista no poder, ambos convergem na elaboração de um diagnóstico crítico, que visa a problematizar a visão otimista presente na retórica do governo federal. Desde o primeiro ano do governo Lula, Francisco de Oliveira vem se dedicando a tecer análises questionadoras de suas orientações e direcionamentos, como se verifica em Crítica à razão dualista. O ornitorrinco (2003), atualização de ensaio clássico de 1972, “A economia brasileira. Crítica à razão dualista”, publicado em livro no ano seguinte. Ao mobilizar a imagem do ornitorrinco, animal que não é isso nem aquilo, Oliveira buscou problematizar a conjuntura política do país e enfatizar as “recentes convergências programáticas entre PT e PSDB”. Partindo dessa similaridade, o ponto nodal do argumento do autor foi o destaque para a constituição de uma nova classe social no país, que se estruturaria sobre, “de um lado, técnicos e intelectuais doublés de banqueiros, núcleo duro do PSDB, e operários transformados em operadores de fundos de previdência, núcleo duro do PT”, cuja identidade adviria do “controle do acesso aos fundos públicos” (p. 147).

Em textos mais recentes — com destaque para o artigo publicado originalmente na revista Piauí (janeiro de 2007) e, posteriormente, no livro Hegemonia às avessas. Economia, política e cultura na era da servidão financeira (2010), organizado por Ruy Braga e Cibele Rizek —, Francisco de Oliveira aprofundou suas análises partindo para a caracterização da experiência petista, sob a batuta de Lula, como uma “hegemonia às avessas”. Para o autor, o principal elemento dessa hegemonia, “típica da era da globalização” e semelhante àquela que se construiu na África do Sul do apartheid, seria a abdicação, por parte da classe dominante, do poder a favor dos “dominados” — que Lula, em tese, representaria —, sob a condição de que os fundamentos da sua dominação não fossem questionados. As classes dominadas tomariam a “direção moral da sociedade”, enquanto a “dominação burguesa” se faria de forma “mais descarada”, sem quaisquer questionamentos efetivos à exploração capitalista. Este processo resultaria em uma intensificação da desmobilização das classes subalternas e dos movimentos sociais, conduzindo ao desaparecimento do “conflito de classes”, bem como à configuração de um quadro no qual os dominados pensariam que dominariam, quando, na prática, o governo capitularia frente à “exploração desenfreada”.

Em artigo publicado em outubro de 2009, também na revista Piauí, intitulado “O avesso do avesso”, Oliveira buscou aprofundar uma interpretação das consequências da “hegemonia às avessas” para a política brasileira, implementada pelo governo petista. O governo Lula, “na senda aberta por Collor e alargada por Fernando Henrique Cardoso”, teria ampliado ainda mais “a autonomia do capital, retirando às classes trabalhadoras e à política qualquer possibilidade de diminuir a desigualdade social e aumentar a participação democrática”. Enquanto FHC teria destruído “os músculos do Estado para implementar o projeto privatista”, o governo petista teria destruído “os músculos da sociedade”, mediante a cooptação dos movimentos sociais. A política foi “substituída pela administração” das políticas sociais e o país viu retomada da “cultura do favor”. A negação da política, cada vez mais administrativa e espetacularizada, teria subsumido por completo o conflito de classes. De acordo com a perspectiva de Oliveira, o chamado “lulismo” seria uma “regressão política, a vanguarda do atraso e o atraso da vanguarda”.

Luiz Werneck Vianna, por sua vez, também vem desenvolvendo uma interpretação negativa dos governos petistas, embora, possa se afirmar, que ele, de maneira geral, reconheça mais avanços nestes dez anos do que Oliveira. Em textos como “O Estado Novo do PT” (2007) e “A viagem (quase) redonda do PT” (julho de 2009), publicados, respectivamente, no site Gramsci e o Brasil e no Jornal de Resenhas, Werneck procura criticar aquilo que denomina como a “viagem quase redonda”, realizada pelo PT ao chegar ao governo federal. Para o autor, o partido teria promovido uma retomada do nacional-desenvolvimentismo que antes tanto criticara, sem, contudo, reinventá-lo em uma chave progressista. As forças sociais representadas pelo partido, que deveriam apresentar a descontinuidade, se tornaram as portadoras da continuidade, trazendo de volta a lógica política dos processos de modernização pregressos, com as mudanças sendo processadas “pelo alto”. A principal consequência desse processo seria a subsunção do social ao Estado, que passaria a processar e arbitrar os conflitos entre classes e frações de classes no interior do próprio governo. Ainda que os governos petistas tenham tido êxito no sentido de contemplar interesses substantivos de diversos segmentos da sociedade, a política estaria sendo cooptada pelo Estado, sob a liderança de um chefe carismático, e pela condução de um processo de modernização a partir do alto, que, a despeito da retórica fraterna, não traria consigo o moderno, que suporia autonomia dos sujeitos na trama do social.

Aí está o âmago da crítica de Werneck à experiência petista — mais bem explorada nos artigos que compõem seu A modernização sem o moderno (Contraponto, 2011): a modernização “por cima”, realizada por Lula e Dilma, impediria a afirmação do moderno no país, compreendido como “um contínuo aprofundamento da democracia política, de valorização da auto-organização do social e da autonomia da vida associativa diante do Estado” (p. 20). Os governos petistas, pela história do próprio partido e pela herança legada ao país pela Constituição de 1988, teriam encontrado condições propícias para efetivar uma agenda política capaz de trazer o moderno, mas, ao fim e ao cabo, teriam sucumbido a mais um ciclo de modernização — na esteira de Vargas, JK e do regime militar —, que se mostrou incapaz de “interpelar criticamente a nossa experiência republicana”, trazendo de volta, “alguns dos seus aspectos mais recessivos” (p. 20). Mesmo em um contexto marcado pela expansão econômica e pela modernização das estruturas sociais, a experiência petista mostrou-se inábil no sentido de inovar o repertório político, concedendo “nova vida às instituições cediças”, mediante a ação de um Estado disposto assimetricamente à sociedade e de uma política pragmática capaz de subsumir o moderno à modernização.

Em textos mais recentes publicados no jornal O Estado de S. Paulo, Werneck vem avançando em suas críticas à experiência petista, procurando vinculá-la àquilo que intitula de “projeto nacional grão-burguês”. Uma de suas principais objeções a este projeto relaciona-se às tentativas feitas pelo governo de vincular retoricamente sua política ao ideário “nacional-popular”, que, embora gestado no segundo governo Vargas, encontrou maior expressão na década de 1960, mediante intensa participação popular. Para Werneck, a experiência petista não pode ser associada ao “nacional-popular”, na medida em que se constrói mediante um projeto “de cima para baixo”, conduzido por elites dirigentes constituídas pela tecnocracia e pelo grande empresariado, imersas em cálculos de macroeconomia, sem a participação ativa da sociedade e dos segmentos subalternos. O nacional seria subsumido, dessa forma, à lógica da modernização econômica e as razões instrumentais conduziriam a construção de uma noção de “grande potência mundial”, que secundaria a agenda da sociedade civil, que, no máximo, seria encarada enquanto agente passivo e beneficiário dos êxitos da acumulação capitalista.

Não se trata neste texto de escrutinar as cinco análises da conjuntura brasileira acima resumidas em busca de semelhanças e diferenças específicas. O objetivo foi tão somente o de tentar traçar os sentidos gerais dos argumentos desses autores de modo a ilustrar as linhas principais de intepretações do Brasil contemporâneo formuladas por intelectuais vinculados ao campo da esquerda. Ao separá-las em dois grandes blocos — análises positivas e negativas —, corri o risco da generalização ou da simplificação de leituras muito mais complexas do que aquelas acima esboçadas. Tal movimento interpretativo, no entanto, foi realizado com o intuito de sublinhar as principais questões e tensões que estão presentes no debate mais amplo acerca da conjuntura política nacional.

Para concluir, gostaria de chamar a atenção para as interpretações que considero mais problemáticas e mais relevantes para percepção da conjuntura brasileira. Particularmente penso que duas análises pertencentes a cada um dos blocos — a saber, a de Emir Sader e a de Francisco de Oliveira — se equivocam em sentidos opostos: enquanto a primeira exagera na louvação da experiência petista, enfatizando apenas os aspectos positivos dos governos Lula e Dilma, a segunda pesa a mão na crítica, ao caracterizar o lulismo enquanto uma radicalização do governo tucano. Se é um erro considerar os governos Lula e Dilma como de superação à agenda neoliberal e de construção de um projeto alternativo ao capitalismo, é da mesma maneira equivocado, não perceber o quanto os governos petistas alteraram a conjuntura política brasileira a favor de um projeto de esquerda, ao retomarem a importância do papel do Estado na economia, ao iniciarem uma nova forma de diálogo com os movimentos sociais, ao trazerem novamente para o centro da cena o debate sobre a desigualdade social, ao investirem maciçamente na criação de empregos e no aumento real do salário-mínimo e ao buscarem a construção de uma política externa mais soberana.

Não obstante contenha alguns problemas, as análises formuladas por André Singer, Vladmir Safatle e Luiz Werneck Vianna oferecem maior clareza para compreender a conjuntura política brasileira, ao enfatizarem os aspectos contraditórios e conflitantes de um governo de coalizão de classes. As interpretações de Singer e Safatle têm o mérito de analisar dialeticamente avanços e limitações da experiência petista, superando os problemas acima destacados das análises de Sader e Oliveira. Ainda que haja diferenças entre ambas as leituras do Brasil, elas se assemelham no sentido de chamar a atenção para o fato de que houve uma transformação real e significativa entre os governos tucano e petista, que não são a mesma coisa, como sugere Oliveira. Suas análises também se identificam ao destacarem os limites da experiência petista — algo que passa batido da intepretação de Sader —, sobretudo no sentido de impulsionar transformações mais significativas que conduzam a um efetivo projeto de democratização política e social do país.

Nesse sentido, a crítica levantada por Werneck Vianna merece grande destaque por trazer à baila o debate sobre a forma de condução da experiência petista frente ao governo federal. Conquanto seja exagerada sua associação dos governos Lula e Dilma a um “projeto nacional grão-burguês”, sua análise tem o mérito de trazer para o centro do debate as limitações políticas de um projeto de esquerda que, não obstante seus méritos, tem sido construído mais “de cima para baixo”, do que via participação autônoma da sociedade civil. Ao mobilizar o debate político para o núcleo de sua crítica, Werneck aponta para as contradições inscritas em um projeto que traz uma pauta substantiva de enorme peso para a esquerda — a redução da desigualdade —, sem que o mesmo seja acompanhado de uma mobilização mais ampla dos segmentos subalternos, encarados mais como cliente de programas importantes do que como agentes partícipes do processo de transformação social. No fundo, trata-se de uma crítica habermasiana que problematiza a colonização do mundo da vida e da esfera pública pelos subsistemas econômicos e políticos que executam as políticas de “cima para baixo” a partir de burocracias e tecnocracias distanciadas das instâncias da sociedade civil.

A tomar pelas análises acima destacadas, é possível dizer que tem havido um esforço por parte de autores provenientes de diferentes campos da esquerda no sentido de empreender uma interpretação do Brasil contemporâneo. A despeito do fato de considerar as análises de Singer, Safatle e Werneck Vianna mais bem acuradas para decifrar os avanços e limites das experiências petistas frente ao governo federal, creio que todas as intepretações trazem elementos substantivos que contribuem para um melhor entendimento da conjuntura política atual. Talvez o grande desafio para acelerar e radicalizar o processo de democratização política e social do país esteja vinculado à necessidade da ampliação do diálogo público entre diferentes segmentos da esquerda brasileira. Cada vez mais desconectados, os diversos partidos e grupos vinculados ao campo da esquerda se vêm forçados mais a responder pragmaticamente ou utopicamente às demandas da conjuntura do que a pensarem em projetos que os unifiquem no longo prazo. O repto que se coloca, nesse sentido, refere-se à criação de atividades conjuntas em universidades, sindicatos, associações de bairro, igrejas e demais espaços da sociedade civil, que possibilitem a construção de agendas políticas comuns que transcendam a salutar e necessária diferença entre os partidos e segmentos da esquerda não partidarizada.

Penso, particularmente, em três agendas políticas que poderiam se não unificar, mas, ao menos, aproximar a esquerda brasileira, no sentido de acelerar o processo de democratização política e social do país. Em primeiro lugar, trata-se de avançar em um debate verdadeiramente democrático e capaz de mobilizar a sociedade civil em torno da reforma política, que, a meu ver, deveria se pautar tanto no fortalecimento da democracia representativa — de modo a superar o comodismo acrítico por parte do PT em torno do “presidencialismo de coalizão”, que prejudica sobremaneira o nosso sistema político —, quanto na criação de mecanismos capazes de estimular formas diretas de participação da sociedade no debate e deliberação de assuntos públicos. A pressão em torno do financiamento público das campanhas eleitorais, de um lado, e do uso mais sistemático de mecanismos participativos facultados pela Constituição de 1988 — como referendos e plebiscitos —, de outro, devem adquirir centralidade na agenda política da esquerda, na medida em que eles podem significar o fortalecimento público e participativo da democracia representativa e direta no país.

Em segundo lugar, faz-se necessário um aprofundamento do debate na esquerda em torno do papel do Estado no sentido de promover uma transformação mais efetiva do país. Sob o impacto dos desastrosos resultados do neoliberalismo, a esquerda brasileira se fiou no Estado como panaceia para a solução de todos os problemas da vida democrática contemporânea. Se é verdadeira a percepção de que o mercado por si só não dá conta de resolver os problemas da sociedade, como bem evidenciou a crise econômica de 2008, também é factível pensar que o Estado por si só não basta para a mobilização da sociedade em torno de um projeto verdadeiramente democrático. Trata-se, portanto, de uma atualização teórica e prática do debate sobre a democratização do Estado, bem como de sua relação com o mercado e com a sociedade civil, que implica trazer para o centro da cena uma reflexão mais acurada em torno da forma como são formuladas e implementadas as políticas públicas no país.

Por fim, creio ser fundamental que a esquerda se mobilize em torno de um debate mais efetivo sobre a questão da desigualdade social. Nesse sentido, a reflexão poderia se encaminhar para dois direcionamentos principais: em primeiro lugar, importa pensar sobre o papel das políticas sociais no processo de emancipação dos subalternos. Não resta dúvida sobre a importância fundamental de programas como o Bolsa Família no combate à miséria e no processo de inclusão social. O que importa é debater como estes programas sociais podem ser institucionalizados de modo a virarem políticas de Estado e não de governos, bem como de que maneira eles podem contribuir para uma emancipação não apenas social, mas efetivamente política daqueles que vivem em condições de extrema pobreza. Em segundo lugar, vale refletir sobre como avançar na aprovação de iniciativas como a taxação de grandes fortunas e a redução da jornada do trabalho, que implicam mudanças substanciais na abissal desigualdade que ainda impera no país.

Quero crer que a ampliação do debate e da reflexão em torno dessas três agendas — reforma política, papel do Estado e desigualdade social — por parte da esquerda podem se constituir como caminhos fundamentais para pressionar as contradições centrais do capitalismo brasileiro, criando novas possibilidades de debate e avanço para uma ordem mais democrática e igualitária. Não resta dúvida de que a esquerda brasileira permanece e permanecerá divida em torno da maior parte desses temas. Mas a aposta no diálogo em torno de agendas públicas comuns, em fóruns permanentes que envolvam os diferentes segmentos da sociedade civil organizada e desorganizada, pode ser um caminho para se pressionar pela construção de um projeto mais democrático de sociedade.

Fernando Perlatto é doutorando do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp-Uerj) e Pesquisador do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/PUC-RJ)..

Fonte: Gramsci e o Brasil

quinta-feira, 21 de março de 2013

Um cartel na política brasileira? (Pedro Floriano Ribeiro)


Em 1995, os cientistas políticos Richard Katz e Peter Mair propuseram o conceito de "partido cartel" para descrever as transformações dos sistemas políticos contemporâneos. Eles destacavam que os grandes partidos europeus já não eram capazes de sustentar vínculos sólidos com a sociedade, ao mesmo tempo em que a política se profissionalizava, e os custos de campanha explodiam. Nesse contexto, as fontes de sobrevivência das legendas se deslocavam da sociedade para o Estado, por meio do repasse direto ou indireto de recursos públicos, e do emprego do aparato estatal como espaço de sobrevivência para militantes e líderes partidários. Os grandes partidos, superando diferenças ideológicas e as fronteiras governo/oposição, passaram a cooperar para garantir sua posição privilegiada de acesso aos recursos públicos, e para aumentar os montantes desses recursos, formando uma espécie de cartel.

Apesar de suas fragilidades teóricas e empíricas, o modelo ajuda a iluminar alguns processos atuais da política brasileira. À diferença da Europa, a dependência estatal não é nenhuma novidade no Brasil: desde os luzias e saquaremas da época imperial, os grandes partidos sempre giraram ao redor da órbita estatal. Nesse sentido, a colonização da máquina pública (patronagem) talvez seja a fonte mais tradicional de sustento dos partidos brasileiros, e que ainda possui um peso considerável: só no governo federal há cerca de 22 mil cargos de livre nomeação, à disposição de bancadas e partidos. Em segundo lugar, cálculos da Receita Federal estimam que a renúncia fiscal às empresas de rádio e televisão, como ressarcimento pela exibição das propagandas eleitorais e partidárias (gratuitas aos partidos), custou aos cofres públicos mais de R$ 600 milhões em 2012, e quase R$ 1 bilhão em 2010.

Quanto aos recursos diretos, os partidos garantiram em 1995 um aumento substancial do fundo partidário (Lei 9.096), fonte mais estável de financiamento das legendas: de R$ 7 milhões transferidos às cúpulas partidárias em 1995, ele passou para R$ 130 milhões no ano seguinte, superando os R$ 220 milhões em 2010 (valores corrigidos). Para 2011, partidos governistas e de oposição costuraram um acordo que elevou o montante total em cerca de R$ 100 milhões; com isso, o fundo atingiria R$ 350 milhões em 2012. Assim como na distribuição do tempo de propaganda, o critério de divisão do fundo privilegia a força parlamentar. Desde 2007, 5% dos recursos do fundo são divididos igualmente, e 95% são distribuídos proporcionalmente à votação do partido na última eleição para a Câmara - um critério menos favorável aos grandes partidos do que as regras vigentes entre 1996 e 2006, que concentravam praticamente todo o fundo partidário nas mãos das oito ou nove maiores legendas. Esses recursos representam, em média, mais de 80% da arrecadação dos partidos brasileiros nos anos não eleitorais; em ano de eleição, a dependência estatal diminui, principalmente para os maiores partidos, que obtêm grandes montantes de doações privadas.

Dependência dos recursos públicos e redução das diferenças na distribuição desses recursos (o que minimiza os custos de derrotas eleitorais); diminuição das distâncias ideológicas; políticas de alianças "ecléticas"; estabilização dos mesmos atores no tabuleiro político, por período de tempo inédito na história brasileira; e indícios de cooperação entre os maiores partidos, superando trincheiras entre governo e oposição. A política brasileira caminharia a passos largos para um processo de cartelização?

Na verdade, há outras variáveis a serem consideradas. As barreiras de entrada no sistema e de acesso aos recursos públicos são frágeis, tornando improvável a formação de um cartel fechado e estável: as brechas previstas e ratificadas pela Justiça para que os políticos possam mudar de partido sem perder o mandato, e a ausência da cláusula de barreira (derrubada em 2006 pelo STF), são fatores que facilitam a formação de novos partidos. Além disso, a fragmentação do atual sistema e o presidencialismo de coalizão colocam algum poder de barganha nas mãos dos partidos de porte médio, que assim conseguem enfrentar eventuais cartéis entre as maiores forças. Se somarmos a isso a possibilidade de coligação para as eleições legislativas (que permitem aos pequenos partidos eleger algum representante), temos um cenário em que mesmo os partidos minúsculos recebem fatias generosas dos recursos públicos, e no qual é possível quebrar um cartel com a formação de uma nova legenda (algo evidenciado pelo PSD de Kassab). Cabe considerar ainda que os recursos públicos, ao invés de impulsionarem o processo de cartelização, talvez estejam atuando em sentido inverso: se a política brasileira fosse financiada apenas com recursos privados, os grandes partidos (especialmente PMDB, PSDB e PT) provavelmente consolidariam uma posição cada vez mais dominante no sistema, na medida em que possuem as organizações mais robustas e uma maior capacidade de atração de doações e de lançamento de candidaturas competitivas por todo o país.

Em suma: o financiamento público das atividades partidárias não está entre os maiores problemas atuais da democracia brasileira, na medida em que ajuda a mantê-la mais arejada, competitiva e plural, abrindo espaço para atores, posições e vozes dissonantes. Assim, qualquer tentativa de reforma do sistema político não pode perder de vista o que se salva do atual estado de coisas: a democracia tem seus custos e, ao contrário da máxima de Tiririca, nada é tão ruim que não possa piorar.

Pedro Floriano Ribeiro é professor de ciência política na Universidade Federal de São Carlos Universidade Federal de São Carlos, onde coordena o Centro de Estudos de Partidos Políticos (CEPP)

Fonte: Valor Econômico

quarta-feira, 20 de março de 2013

A chave eleitoral do segundo turno (Rosângela Bittar)






Em 2014, seja na disputa da Presidência, seja de governos estaduais, a ordem nos partidos é apresentar candidatos. Até quem não tem chance nenhuma, sendo médio ou nanico, estruturado ou não, quer tomar o seu lugar na chave. O histórico de campanhas recentes tem mostrado aos políticos que é moderno e eficiente jogar com o segundo turno, seja para disputá-lo, seja para negociar aliança na campanha ou composição de governo com o vencedor. Muitos - a maioria -não querem esperar a eleição seguinte para ter sua vez. É o aproveitamento máximo do momento.

Por exemplo: A candidatura de Gilberto Kassab ao governo de São Paulo, já posta, é uma busca de resultados para já ou para o futuro? É claro que é para o futuro. Assim, são várias as candidaturas a presidente, no momento, que já ficaram irreversíveis, mesmo com as dificuldades quase invencíveis de uma disputa com uma presidente no cargo fazendo um governo popular.

Faltam detalhes, alguns mesmo fundamentais, mas no plano geral da antecipação de campanha existem três candidaturas presidenciais adversárias à da presidente Dilma Rousseff praticamente irreversíveis, hoje: Eduardo Campos, Marina Silva e Aécio Neves. Outras podem surgir, mas essas já são.

A favorita absoluta é Dilma. Está no cargo, faz um governo popular com um lançamento de pacote de benefícios por semana, e tem uma aliança partidária ampla que lhe permite um espaço de propaganda inigualável. Mas ninguém quer desistir de véspera, pois há, no sistema eleitoral, o bendito segundo turno, para reduzir o número de perdedores. Até a oposição conta com ele para manter as esperanças caso seja ela a passar à nova rodada.

Entre todas, a candidatura menos construída é a de Aécio Neves. A Marina falta o partido, a Eduardo ser conhecido, a Dilma - a pesquisa Ibope mostrou, ontem -, falta um governo que lhe dê discurso para além da propaganda. A Aécio falta tudo.

O que menos falta é o que os adversários mais cobram: o discurso. Para começar, entre todos, Aécio é o único candidato realmente de oposição, por isso pode ter um discurso definido e confortável quando chegar o momento.

Depois, para enfrentar a propaganda das campanhas políticas, um discurso temático importa pouco. A disputa, na reeleição, se dá entre continuidade e mudança. É muito difícil fazer a mudança quando a maioria quer a continuidade, e vice-versa. A não ser que sobrevenha uma hecatombe.

No caso, uma crise econômica grave com reflexos no emprego, uma divisão profunda na base de sustentação política do candidato no governo, o surgimento de vários candidatos quando antes havia apenas um, o sucesso na exploração de temas nos quais o governo visivelmente fracassou (Saúde, Segurança, Impostos, mostrou a pesquisa de ontem). Mas é muito difícil.

De qualquer forma, ninguém quer, por causa dos obstáculos, desistir, deixar de disputar, e sempre há flancos na candidatura favorita, como em qualquer uma. Por isso, apesar da popularidade da presidente e da aceitação do seu governo, os partidos seguem na construção de alternativas.

No PSDB, tem-se uma ideia sobre como construí-la, qual é o passo a passo. O primeiro é formar uma direção partidária sólida, com disposição de trabalho e prestígio, capaz de agir em várias direções, principalmente nas preliminares eleitorais mas também quando chegar o momento das decisões sobre a condução da campanha.

O senador Aloysio Nunes Ferreira, do PSDB paulista, que assiste seu partido, mais uma vez, se digladiar para formar essa direção, costuma definir o comando partidário como uma banda de música. A harmonia é fundamental para unificar a linguagem, mapear locais onde é preciso vencer resistências, suscitar candidaturas onde o presidenciável não tem palanque, comprar as brigas, fazer o discurso mais contundente. O candidato deve se preservar, o presidente do partido não.

Em Pernambuco, onde haverá um candidato a presidente na disputa, o PSDB terá que apresentar um candidato ao governo. No Paraná, no Rio de Janeiro, são problemas à espera da solução do comando partidário.

A Executiva precisa funcionar. Sergio Guerra, senador e presidente do PSDB há vários anos, é considerado talentoso, um bom analista do quadro eleitoral, um político corajoso, mas não faz a Executiva funcionar.

Muito há a ser feito até chegar o momento de criar a equipe de campanha, que se sobrepõe à direção do partido. É a Executiva que conduz toda a fase que começa agora e vai até o período de propaganda. As alianças políticas são por ela negociadas, tem toda uma lição de casa a cumprir. Afinar o discurso, fazer pesquisas, preparar a casa.

Em que estágio dessas preliminares está a candidatura do PSDB? Absolutamente inicial. Na fase de sondagens para organização da Executiva Nacional, a ser definida em maio; na fase de ter Aécio como pré-candidato para que apareça mais, tenha maior protagonismo na política.

Até isso o PSDB demorou a conseguir, enquanto a candidatura favorita foi se tornando mais favorita ainda com os pacotes de benefícios para diferentes grupos do eleitorado.

Aécio é o candidato do PSDB, aceito por todos, José Serra inclusive. O ex-governador de São Paulo quer ser ouvido, já teve dois encontros a sós com Aécio, um no começo do ano, outro anteontem, e depois disso não há ninguém no PSDB que consiga ver Serra fora do partido, como se propagou.

Não iria para o partido do Kassab, cuja criação foi contra, um partido que nasceu na órbita da presidente Dilma, ou seja, do PT. O PPS, um partido pequeno, sem estrutura, que o enfrentou na última eleição lançando uma candidatura errática na cidade de São Paulo, também não parece ser um bom destino. O senador Aécio Neves saiu do encontro desta semana com a impressão que Serra é PSDB e será sempre PSDB. Com vocação política visceral, Serra não vai sair e ficar sem partido. Faltando qualquer sentido para sua migração, e uma vez aceita a candidatura Aécio, deve ficar e atuar.

Fonte: Valor Econômico