Em meio a tantas tragédias neste início de ano, muitos devem estar se perguntando: este país tem futuro? A história brasileira sempre teve altos e baixos frente a tal pergunta. Mais recentemente, a redemocratização inaugurou um período mais otimista, com momentos de euforia no Plano Real e no auge da popularidade de 83% do presidente Lula. Porém, desde as jornadas de junho de 2013, tem predominado o pessimismo. A vitória de Bolsonaro indica uma possibilidade de mudança de humor, mas o começo do governo está muito confuso para se fazer previsões.
De qualquer modo, o fator mais poderoso para nos tirar desses ciclos de euforia e depressão, gerando uma transformação estrutural do Brasil, é a reforma da educação. Somente melhorias contínuas e profundas da política educacional podem atacar os três maiores problemas do país. Primeiro, o combate à desigualdade, pois o ensino de qualidade para todos é o mecanismo intertemporal mais eficaz no aumento da igualdade de oportunidades entre ricos e pobres. Segundo, o crescimento da produtividade da economia, que depende sim de medidas macro e microeconômicas, mas cuja sustentabilidade depende da boa formação escolar do capital humano. E, por fim, o déficit de cidadania, fortemente vinculado à assimetria no acesso à informação e ao capital cultural.
O diagnóstico parece cristalino. Todavia, ao se analisar o conjunto de prioridades dos cem dias do presidente Bolsonaro, claramente se constata que a política educacional tem um lugar secundário no novo governo. Mais do que isso, as falas do ministro da Educação, Ricardo Vélez, demonstram um desconhecimento tanto da história recente do ensino no Brasil como sobre quais são as questões mais relevantes nessa temática. Como todo bom debate começa a partir do benefício da dúvida, pode-se supor que ainda seja cedo para uma avaliação tão peremptória, tendo como pressuposto a crença de que o comandante do MEC poderá aprender com os estudos e experiências educacionais brasileiras e internacionais.
Neste sentido, um documento que pode ajudar nos rumos do novo MEC é o "Educação Já", texto produzido pelo Todos Pela Educação, movimento que congrega vários atores que atuam e apoiam esse campo, em especial gestores públicos, entidades do Terceiro Setor e pesquisadores do assunto. Trata-se de uma proposta que é fruto do amadurecimento do diagnóstico e da agenda para o setor, resultado de muitas pesquisas sobre o Brasil e a educação no mundo, bem como dos aprendizados que os atores tiveram com a implementação da política educacional desde a redemocratização.
Na qualidade de alguém que participou da confecção do documento, posso assegurar que o texto não esgota todas as questões que envolvem o tema educacional no Brasil. Além disso, sempre é possível polemizar com os argumentos ali construídos ou aperfeiçoá-los. Mas qualquer debate aqui depende da utilização da mesma lógica que alimentou a produção dessa proposta, baseada em duas coisas. A primeira é ter como base as evidências dos estudos científicos e da análise de experiências concretas. E a segunda foi o diálogo com vários atores estratégicos, dos mais diferentes grupos e partidos, que participaram da política de educação nos últimos 30 anos.
A lista de problemas da política educacional brasileira é extensa. Mesmo assim, deve-se inicialmente admitir o quanto o país avançou desde a Constituição de 1988. Houve a universalização do ensino fundamental; um grande crescimento dos alunos concluintes do ensino médio; a ampliação do acesso à educação infantil e mesmo à universidade; a melhoria da carreira de professor, principalmente por meio de concursos e da ampliação da formação docente; a criação de um modelo mais redistributivo de financiamento; a adoção de modelos de avaliação em larga escala que permitem conhecer melhor a real situação do aprendizado dos alunos; e, mais recentemente, a proposição de uma base curricular capaz de orientar com maior precisão o trabalho didático dos professores.
Ainda poderiam ser adicionados ao rol de avanços um conjunto de programas e experiências na educação em algumas partes do país. Entre estes, dois bons exemplos são o programa de alfabetização no Ceará e a escola de tempo integral no ensino médio pernambucano. Mas chama a atenção que as boas práticas são pouco disseminadas pelo Brasil afora, de modo que há ilhas de excelência rodeadas por mares de problemas educacionais.
Para que um diagnóstico pavimente o caminho para uma agenda exequível é preciso escolher prioridades. Ou melhor, é necessário selecionar os temas que são mais importantes e cuja resolução tem efeitos positivos sobre o conjunto dos problemas. Assim, o documento "Educação Já" produz uma visão sistêmica (a relação das partes com o todo), de longo prazo e que sabe estabelecer quais são as maiores urgências da educação.
São sete as prioridades definidas pelo documento proposto pelo Todos Pela Educação. A primeira diz respeito à melhoria da governança do sistema educacional, pois as políticas só vão dar certo se houver um modelo decisório e de implementação adequado. É fundamental melhorar a qualidade da gestão das redes de ensino subnacionais e do próprio MEC. Mais importante, deve-se fortalecer o regime de colaboração entre os níveis de governo, fortalecendo os laços verticais de cooperação entre União, Estados e municípios, bem como a parceria e articulação entre os governos locais. A melhoria das relações intergovernamentais é muito importante, especialmente por conta das desigualdades que há entre os entes federativos. Para resolver isso, um dos pontos centrais aqui é a criação de um Sistema Nacional de Educação, capaz de coordenar e democratizar as ações educacionais dos três níveis de governo
A segunda prioridade passa pelo aperfeiçoamento do sistema de financiamento da educação. Embora tenha havido avanços desde a criação do Fundef/Fundeb, ainda há espaço para aumentar a capacidade redistributiva da transferência de recursos, repassando mais aos governos subnacionais que têm maiores vulnerabilidades em seu corpo de alunos. Além disso, é necessário instaurar mecanismos de indução de boas práticas por meio da distribuição de dinheiro e/ou apoio técnico. No fundo, a questão aqui é como combinar a preocupação com a busca da equidade com a melhoria do desempenho do modelo educacional.
A aprovação de uma Base Nacional Comum Curricular foi um dos maiores avanços recentes, com o apoio de diferentes partidos e de gestores por todo o país. Mas agora chega a etapa mais difícil: a implementação. Eis aqui a terceira prioridade do "Educação Já": a criação de uma série de medidas que garantam a efetivação dessa transformação em todas as redes de ensino do país. Cabe frisar que um bom currículo, construído pelos atores que o utilizarão, e sob condições adequadas de execução, tem como principal efeito aumentar as chances do aprendizado de todos os alunos.
Nenhum sistema de ensino no mundo melhora se não aprimorar a formação e a profissionalização da carreira docente. Essa quarta prioridade capta o elemento mais central da política educacional, pois o caso brasileiro é caracterizado pela baixa qualidade da formação inicial de professores, pela falta de mecanismos mais efetivos para atrair e reter jovens talentosos na profissão, pela precariedade das escolas como ambiente de trabalho e pela escassez de incentivos que reforcem, continuamente, o desenvolvimento profissional, tanto para motivar como para responsabilizar os docentes. Em resumo, precisamos de professores qualificados continuamente, motivados e cobrados pela comunidade para que alcancem sua principal e mais nobre tarefa: o aprendizado de todos os alunos.
As últimas três prioridades dizem respeito a etapas do sistema de ensino. Deve-se fortalecer as políticas para a primeira infância, porque os estudos mostram claramente que o êxito nessa fase potencializa o aprendizado futuro, favorecendo sobretudo os que têm condições mais precárias de vida. Também é preciso criar as condições mais adequadas para a alfabetização, uma vez que 55% das crianças brasileiras de 8 a 9 anos de idade não estão alfabetizadas. Por fim, um novo modelo de ensino médio precisa urgentemente ser montado, dada a enorme evasão de alunos, a fragilidade do aprendizado, a falta de diversificação de saberes e o baixo protagonismo juvenil, elementos que, ao fim e ao cabo, restringem as oportunidades educacionais de parcela significativa da juventude brasileira.
Esse conjunto de mudanças exige uma decisão política em prol de reformas profundas e contínuas da educação. Países como o Chile, o Canadá, a Austrália, Cingapura e a Finlândia, entre outros, colocaram a política educacional no centro da agenda pública. O Brasil ainda não fez isso e, por isso, está perdendo a competição com outras nações nos exames internacionais, como o Pisa.
A pergunta que fica no ar é: o governo Bolsonaro terá coragem e competência para liderar esse processo? Afinal, mesmo fazendo reformas como a da Previdência, não haverá país algum a comemorar sem mudanças na educação. Adotar um rumo errado agora na política educacional condenará gerações. E o pior futuro é a falta de perspectiva para nossos filhos e netos.
(*) Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP,
Valor Econômico/22 de fevereiro de 2019
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