Nos últimos tempos, os zeladores do chamado politicamente correto "descobriram" que Monteiro Lobato "seria racista". O negro de seus escritos, para quem conhece o folclore e a mentalidade brasileiros, parece um negro minimizado, mas não o é.
Monteiro Lobato traz para sua obra literária o brasileiro que éramos e não víamos e não vemos. Sua literatura nos leva a personagens que são manifestações de personalidades historicamente geradas nas contradições entre a casa-grande e a senzala. A senzala não era apenas nem principalmente o lugar da prisão de corpos cansados. Era o lugar da cultura insubmissa e desconstrutiva do escravo. Ninguém escraviza sem pagar um preço. Quem vê a escravidão só como cativeiro, é cego. Não vê nela as tensões ressocializadoras e libertadoras. Não vê Tia Nastácia.
Na verdade, tanto ela quanto o Saci-Pererê são pretos míticos, a alma do imaginário brasileiro de todos, brancos e negros, cernes de nossa identidade cultural mestiça. Para muitos, uma imperfeição; para outros, expressão de nossa pluralidade, uma de nossas maiores virtudes.
Por cerca de um século, a obra de Monteiro Lobato formou nossa consciência social e educou várias gerações de brasileiros, de várias origens, para uma compreensão brasileira e crítica dos atrasos de nossa sociedade. A crítica de nossas sutis injustiças saídas da boca de crianças bem-nascidas, mas educadas nas ambivalências do que restava culturalmente das polarizações do cativeiro. Sobretudo no rico imaginário humanizador que há nas fantasias e lendas da preta velha.
Retificar a obra de Lobato, para corrigir-lhe as cruas verdades da desigualdade e da injustiça, é indevida e inadmissível censura de obra literária, coisa de polícia e não coisa de literatura. É criar uma mentira para enganar crianças e adultos. Fazer das histórias de Lobato uma literatura pó de arroz.
Emília quer reformar a natureza e o mundo, impelida pelo simplismo modernizador de refazer o já feito, a destruição do ser em nome do não ser. Já Tia Nastácia, ao contrário, quer prover a alma da criança brasileira com os entes libertadores do imaginário da senzala. É ela quem inventa o Brasil que conhecemos. O Brasil que ouve e ensina, não o Brasil que manda.
Lobato é um educador e um reformador da sociedade. Diferentemente das elites de então, ele quer destravar o desenvolvimento econômico e quer desalienar os que viam o Brasil como se Brasil não fosse.
Nenhuma criança se tornou racista por ler os livros de Lobato. Nenhuma deixou de ser seduzida pelo afeto generoso de Tia Nastácia, o de um coração que tem lugar para todos, que não discrimina mas acolhe, mesmo quem a discrimina. As crianças e os adolescentes de várias gerações é que são os justos juízes da obra de Monteiro Lobato e mais ninguém.
O sectarismo e a intolerância que se difundem entre nós desde o início dos anos 1960 vêm alcançando níveis que ultrapassam os limites da ignorância lícita. O politicamente correto é incorreto quando despoja nossa consciência social da poesia que é própria da vida e da inteligência. A poesia das mediações e da totalidade que desvenda os mistérios da aparência para nos revelar a essência do que somos e não sabemos.
Sem a perspectiva do todo, a obra de Lobato se torna incompreensível, o que abre caminho para o descabido preconceito de leitor apressado e desatencioso. Mais descabido em relação ao leitor que, além do mais, é mediador de interpretação, seja como crítico literário, seja como educador, seja como editor.
A obra de Lobato é impregnada de minúcias desconstrutivas e explicativas. Nela estão contidos, plenamente, os mistérios do Brasil, do nosso ser não sendo. Lobato, com sua obra, quer iluminar nosso caminho, remover a catarata de nosso atraso, mostrar o que somos mesmo não gostando de sê-lo. Ele quer libertar-nos de nossos fingimentos.
Tanto a obra artística quanto a obra literária de Monteiro Lobato são espelhos para que nos vejamos naquilo que não temos conseguido ver, as heranças da escravidão que empobrecem o nosso espírito.
O caipira lobatiano é um ser residual da peculiar escravidão indígena. Os que acusam Lobato de racismo, na definição de personagens e nos diálogos de seus textos, com base no mesmo critério tendencioso, poderiam ver no Jeca Tatu outra manifestação preconceituosa contra o indígena e o caipira que dele descende. Mas disso ninguém reclama. O mesmo se pode dizer do Saci-Pererê. Originalmente, um ente mítico indígena que, no século XVIII, com a disseminação da escravidão negra em São Paulo, torna-se negro na narrativa popular. Um poderoso documento de que a nossa negritude é a do enegrecimento cultural, nossa bela busca de identidade.
Valor Econômico/22 de fevereiro de 2019
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