Pode-se gostar ou não do governo Bolsonaro, mas é difícil negar que ao se iniciar, de fato, na segunda-feira passada, pretendeu ir de frente à questão. Ela se chama crime e dívida – separadas de maneira artificial, pois são, na verdade, uma coisa só. Crise fiscal e crise social são duas expressões distintas para o mesmo fenômeno: a incapacidade do poder público de controlar a si mesmo (gastos, mas não só) e de dirigir-se a uma pavorosa taxa de criminalidade.
Os detalhes do pacote anticrime já foram esmiuçados no noticiário enquanto os da reforma da Previdência ainda são confusos, e os dados da realidade impõe que ambas iniciativas sejam tratadas do ponto de vista político simultaneamente, e com urgência. Nesse sentido, é relevante a advertência feita pelo presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, segundo o qual “a pauta de costumes vem depois da Previdência”.
O que Maia está dizendo enfurece os entusiasmados bolsonaristas: atuação política não pode ser apenas função de atender à ideologia, cujas propostas ou utopias mais amplas por definição (se os bolsonaristas não aprenderam com o PT está mais do que na hora) nunca são realizadas, nunca se chega à terra do amanhã. No plano dos fatos na instância legislativa o momento é favorável se o governo agir depressa, enquanto a gravidade da crise de segurança empurra os governadores (e seus chefes de polícia) para algum tipo de entendimento, cientes de que não dá para protelar.
Este é visivelmente o conflito estratégico mais difícil para o governo no momento, e que está escancarado para o público nas trocas de farpas entre as várias alas concorrendo pelas atenções do presidente. Em resumo, o problema consiste em deixar para depois uma “revolução dos costumes” que, na interpretação do círculo íntimo do presidente, e alguns de seus expoentes intelectuais, é o que explicaria em primeiro lugar a vitória eleitoral. E concentrar-se com foco total nas articulações necessárias para a aprovação de pacotes de mudanças de legislação que terão, aos olhos dos ideólogos próximos de Bolsonaro, um indisfarçável ranço da “velha política” que pretendem já ter eliminado – uma perigosa ilusão.
Há sempre lições interessantes na História para agentes políticos que acham que ninguém contém seu ímpeto, como são os bolsonaristas. Os bolchevistas descobriram já em 1917 que nenhuma máquina militar (da qual precisavam para sobreviver) funcionaria sem os oficiais czaristas, ou seja, necessitavam dos profissionais para levar adiante sua agenda de transformação política. O vice-presidente Mourão anda empolgado com a série Trotsky da Netflix, que retrata bem esse episódio (os revolucionários islâmicos de Khomeini libertaram da cadeia os pilotos de F-4 que eles mesmos haviam encarcerado quando Saddam Hussein atacou o Irã, e precisavam rapidamente de uma força aérea).
Sem a tal “velha política”, entendida como a atuação de operadores no Congresso (Câmara e Senado) dificilmente o governo leva adiante esse prometido ataque frontal ao crime e à dívida, sob os quais o País está esmagado. São as questões cujo maior ou menor capacidade do governo em tratá-las de forma consequente (dada da gravidade dessa grande crise, é difícil usar o verbo “resolver”) será a verdadeira medida do sucesso. E de sua própria sobrevivência, palavra aqui entendida como a de um governo que mereça esse nome.
O Estado de São Paulo/07 de fevereiro de 2019
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