A natureza balsâmica do processo eleitoral é um fato que se impõe à observação de quem se dedica à análise da cena moderna brasileira, momento em que “os de cima” calculam as condições que levem à preservação de suas posições de domínio e “os de baixo”, as oportunidades para terem acesso a mais direitos sociais e políticos. Dado que na nossa sociedade o voto se tornou universal e a democracia política encontrou âncora segura na Carta de 88, elementar que o sucesso eleitoral, diante das profundas desigualdades sociais e das diferenças regionais que nos caracterizam, dependa de uma feliz combinação entre as partes que compõem o tecido social. Pelo voto nenhuma delas ganhará tudo.
Se assim é, a negociação reveste-se de elemento-chave na disputa eleitoral em curso e sob esse registro tende a dissipar o clima de cólera e de intolerância com o outro até então dominante. Mais uma vez fica evidente que, entre nós, a forma superior de luta se trava no processo eleitoral - já confirmada no regime militar -, e não pelo recurso à luta armada, conforme lenda urbana ainda circulante em pequenos círculos da esquerda, usando uma expressão do repertório de sarcasmos do ministro Gilmar Mendes.
Dessa forma, embora persista a ação de renitentes que nos prometem uma catástrofe iminente, sem nenhum triunfalismo já se pode proclamar em alto e bom som que a crise que ameaçou a nossa democracia se encontra superada, em mais um momento de consagração da nossa Constituição. Com isso não se quer dizer que se tenha pela frente um horizonte aprazível - absolutamente não -, mas que os conflitos e as disputas que nos são próprios vêm encontrando, mesmo que apenas por ensaio e erro, as vias institucionais dos partidos, sindicatos e da vida associativa em geral, num processo com origem na sociedade civil, não no Estado, como resultou, por exemplo, na criação dos sindicatos na era Vargas e do PTB na agonia do regime autoritário de 1937.
Aos trancos e barrancos, a sociedade brasileira avança meio às cegas em direção ao moderno. Pode-se sustentar até que esse movimento que vem deixando para trás o peso da nossa tradição de décadas de modernização conservadora, nos termos da obra clássica de Barrington Moore, vem operando mais no terreno da societas rerum do que no da ação intencional dos homens.
Com efeito, as mutações demográficas, econômicas e sociais vindas dos impulsos modernizantes vindos do vértice político - tanto os de origem em conjunturas democráticas, como nos tempos do governo JK, quanto os conduzidos por regimes autoritários, como no Estado Novo, de 1937, e no recente regime militar - têm importado numa segura conversão do caos social com que nossa sociedade iniciou sua história para se tornar uma sociedade de composição demográfica racional ao capitalismo, categoria importante no arsenal teórico de um grande autor.
Tal mutação está na raiz da profunda crise política com que se abriram as jornadas de junho de 2013, movimento massivo da juventude “contra tudo o que está aí”, sinal forte de risco que os acontecimentos futuros vieram a confirmar, com o impeachment e a chamada Operação Lava Jato, significando, ao fundo, o estado de exaustão das práticas e concepções com que há décadas vínhamos sendo governados.
Fixada a observação no movimento das estruturas da societas rerum o cenário é, pois, o de mudança que se faz indicar no terreno dos fatos, como ilustra o conjunto de importantes reformas já introduzidas na vida econômica, a maioria delas de caráter irreversível. Contudo, se o olhar se desloca para o plano das ideias e das concepções do mundo, o curso da mudança, embora tenha havido nas últimas décadas uma altamente significativa expansão do estrato dos intelectuais nas universidades e nas atividades artísticas, definha e apresenta um cenário desalentador de mesmice e de pouca criatividade.
Na economia, numa das sociedades mais desiguais do planeta, tivemos de esperar a notável obra de Thomas Piketty, de edição recente, para que a produção dos especialistas se voltasse para esse tema estratégico. Nas ciências sociais, desprendemo-nos da excelsa tradição que vinha de um Gilberto Freyre, de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, entre tantos nomes que se dedicaram a interpretar o País, para instalar em seu lugar os estudos identitários, que, embora importantes, certamente não têm a relevância do que foi o mainstream da reflexão disciplinar, tão necessário nesta hora em que se faz imperativa a busca de novos rumos.
O dilema perturbador de sempre no estudo das sociedades é o que importa mais para a observação, se a aranha ou a teia que ela tece, tal como na célebre metáfora com que Max Weber retrucou a um colega sobre suas diferenças com a teoria social de Karl Marx. A controvérsia sobre o tema provavelmente persistirá até o fim dos tempos, e esses mesmos gigantes do pensamento sempre oscilaram em suas respostas, ora favorecendo o papel do ator, ora dos fatos com que ele se enreda.
A grande transformação que a partir da Revolução de 1930 revolveu os fundamentos da sociedade brasileira, conduzindo-a do estágio agrário em que se encontrava para o urbano-industrial, foi antecedida por um intenso movimento de ideias nas elites intelectuais da época, de que são exemplares a obra de Euclides da Cunha, o tenentismo na juventude militar, a criação do Centro João Vital por intelectuais católicos, a Semana de Arte Moderna, em 1922, e a chegada, nesse mesmo ano, dos trabalhadores à cena política com a fundação do Partido Comunista.
O momento propício que experimentamos agora pode frustrar-se se os intelectuais - a aranha da metáfora de Weber - cederem ao ceticismo que ora grassa entre eles, abandonando de vez o exercício dos papéis de vanguarda com que marcaram a nossa trajetória como nação.
Fonte: O Estado de São Paulo (1/07/18)
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