domingo, 8 de julho de 2018

Os três hemisférios do cérebro brasileiro (Bolívar Lamounier)

A elite pensante brasileira mantém-se firme na convicção de que consegue compreender os problemas do País com base na dicotomia esquerda-direita. Qualquer que seja o assunto em pauta, lá vai ela de volta ao século 19 e de lá retorna com os chavões habituais. Não percebe que comete pelo menos dois graves equívocos.
Primeiro, não percebe que fala apenas de si e para si. Tudo se passa como se fosse formada por duas tribos se insultando mutuamente. A esquerda xinga a direita de direita e a direita xinga a esquerda de esquerda. Sabem por que afirmo isso? Muito simples. Não passa de 20% a parcela da sociedade que tem pelo menos um vago entendimento desses termos. Um pouco mais, um pouco menos. E não em razão do precário nível de instrução em nosso país, assim é por toda parte.
O segundo equívoco é a crença de que todos os desacordos existentes na sociedade podem ser encaixados numa única dimensão. Ora, a dicotomia esquerda-direita sintetiza, mal e parcamente, o conjunto de questões referente à política econômica e às desigualdades de renda e riqueza. Para representá-la graficamente basta-nos traçar uma linha (horizontal, suponhamos), numa ponta teremos a esquerda e na outra, a direita. Ao longo de tal linha temos graus de esquerdismo e direitismo na dimensão econômico-social. Mas onde entram, por exemplo, as dezenas de agudas desavenças que se manifestam no plano dos valores: questões de religião, combate à corrupção, concordâncias e discordâncias referentes à legalização do aborto, política de gênero, etc.? Ora, não entram em nenhum ponto da linha horizontal, uma vez que pertencem a outra dimensão.
Para levá-las também em conta, precisamos de uma representação ortogonal, quer dizer, uma linha vertical, cortando a horizontal. Assim teríamos, vamos dizer, em cima os cidadãos que apoiam a legalização do aborto e em baixo os que dela discordam. E assim, em vez de duas “tribos” ou “campos”, passamos a ter pelo menos quatro. Esse raciocínio meio enrolado poderia ser dispensado se nos puséssemos de acordo quanto a uma obviedade verdadeiramente solar: em qualquer sociedade, as linhas de conflito são muito mais numerosas do que julga a vã filosofia. Formam um emaranhado diante do qual a dicotomia esquerda-direita é quase impotente. Imprestável.
Para não complicar em excesso a discussão, vou me manter na dimensão econômico-social e propor, ainda com muita parcimônia, que precisamos de pelo menos três pontos para representar a cabeça dos brasileiros. Nosso cérebro se divide em pelo menos três hemisférios ideológicos. Admitindo-se que apenas 20% são capazes de compreender esse tipo de peroração, digamos que metade deles (10%) se mantém aferrada à velha ideologia nacional-desenvolvimentista (que, a rigor, se deveria chamar nacional-estatista, pois faz tempo que ela se tornou incapaz de promover desenvolvimento...); 5% corresponderiam à esquerda hardcore, ou seja, ao PT e aos partidos comunistas e outros pequenos corpos celestes que gravitam em torno dele. Os restantes 5% correspondem aos liberais (frisando que falo de liberais em economia, a parcela liberal em política é muito maior).
Os grupos de esquerda geralmente se declaram “socialistas”, mas o sentido desse termo não é claro. Nos tempos da União Soviética - do chamado “socialismo realmente existente” - significava que uma casta burocrática controlava toda a economia por meio de um sistema de planificação central; no sistema de partido único, o Partido Comunista zelava para que ninguém contestasse o regime e uma onipresente polícia secreta cuidava dos eventuais recalcitrantes.
No Brasil, se formos julgar pelo governo de Dilma Rousseff, o dinamismo da economia teria de ser assegurado pela exportação de commodities, premissa razoável enquanto a China mantinha taxas de crescimento estratosféricas; internamente, o BNDES turbinava “campeões” empresariais do tipo Eike e Joesley Batista; e a cornucópia governamental jorrava subsídios para a indústria automobilística e crédito para o escoamento dos veículos produzidos. Uma consequência disso, como agora sabemos, foi as estradas ficarem entulhadas de caminhões... Sim, Lula expandiu o Bolsa Família até o limite do possível, objetivo alcançado com... 0,5% do PIB, um programa pífio se analisado em termos de mobilidade social ascendente. O pouco que sobrou a recessão comeu.
O nacional-estatismo, uma vez vencida a fase “fácil” do crescimento, redundou na estagnação em que nos encontramos, aprisionados na chamada “armadilha da renda média”, com uma renda anual por habitante estacionada em torno de US$ 11 mil, metade da de Portugal. E quanto à política social? Eis aí um ponto que não cabe nos limites deste artigo. O que podemos afirmar com segurança é que a miríade de grupos corporativos fica com a parte do Leão e o País, evidentemente, não consegue produzir superávits que aguentem sequer uma modesta política social-democrata.
Restam os liberais. O problema com esse grupo é seu medo de pronunciar a palavra maldita: liberais. Os economistas não se assustam com ela, mas os políticos, sim, quase sem exceção. Um modelo de crescimento e diretrizes de política econômica o grupo inegavelmente tem. Começa por uma política fiscal rigorosa, que mantenha a inflação sob controle e assegure uma taxa de juros decente. Redução do papel empresarial do Estado ao mínimo possível. Privatização, criação de um ambiente de confiança para o desenvolvimento do mercado e estímulo ao surgimento de uma classe média empresarial. Concentração dos recursos do Estado no desenvolvimento tecnológico e nas áreas sociais: educação, saúde, saneamento. E abertura da economia ao exterior, estimulando a competição e a competitividade.
(*)Bolívar Lamounier é sócio-diretor da Augurium Consultoria, membro das Academias Paulista de Letras e Brasileira de Ciências, é autor do livro ‘Liberais e antiliberais: a luta ideológica de nosso tempo’
Fonte: O Estado de São Paulo (08/07/18)

Liberalismo e democracia: união em crise (Fernando Abrucio)

A combinação entre liberalismo e democracia foi a principal chave do sucesso político e social dos países que mais se desenvolveram entre os séculos XIX e XX. Não foi um casamento fácil. Houve muitos conflitos e contradições entre eles e o caminho de aproximação desse par sempre foi visto com desconfiança por pensadores e atores políticos. Mas, como notou o filósofo Norberto Bobbio, todos os regimes democráticos só sobrevivem se incorporam ideias liberais, bem como somente é possível a existência de um modelo liberal em sociedades de massa caso haja a incorporação de todos os cidadãos no processo político. Por um tempo, a combinação deu certo, mas essa união hoje está em crise.
Para entender o significado e as consequências desse problema, é fundamental começar definindo os conceitos. Fala-se aqui de liberalismo especialmente no seu sentido político, que pode ser resumido como um ideário defensor das liberdades individuais e da limitação do poder político. Suas origens estão nas Revoluções Inglesas do século 18 e no pensamento dos pais fundadores dos Estados Unidos. O modelo liberal estava ancorado na necessidade de se garantir direitos fundamentais de liberdade, algo que apenas poderia ser obtido com a defesa do pluralismo e a separação clara das esferas do Estado e da sociedade.
O liberalismo político também se alicerça numa proposta institucional, baseada na separação e controle mútuo entre os Poderes. Evitar que haja a concentração de poder em qualquer tipo de autoridade, seja eleita ou não, foi uma preocupação central dos liberais, particularmente de James Madison, inspirador da estrutura institucional americana. Todas as vezes em que se concentrou demais a força política em uma instituição ou, pior, num líder político, caminhou-se rumo ao autoritarismo. Esse é o fim da liberdade.
A democracia moderna tem como base a expansão da igualdade política a todos os cidadãos. Isso significou, historicamente, o direito de criar organizações políticas e, sobretudo, de votar e ser votado. Hoje essa prerrogativa parece banal, a ponto de haver uma disseminação da crença de que a participação política tem pouco efeito sobre as grandes decisões da coletividade. Por isso, é preciso lembrar, constantemente, a batalha que foi garantir o voto aos que não tinham renda, às mulheres, a minorias políticas como os negros americanos e, para lembrar do caso brasileiro, para os analfabetos - cujo número só começou a decrescer como porcentagem da população quando puderam votar para pleitear mais educação a todos.
O sentido do ideário democrático moderno, ao contrário de seu funcionamento no mundo antigo, sempre foi ampliar a igualdade. Lógico que a participação política mais igualitária não é suficiente para garantir a maior equidade entre os cidadãos, porém, ela é uma condição sine qua non. Grosso modo, a trilha histórica dos países que mantiveram a democracia foi a seguinte: quanto mais gente votava, mais direitos eram garantidos à coletividade. Assim, a igualdade da esfera política pôde ser, em alguma medida, transferida para o plano das relações sociais e econômicas.
Nem sempre o controle do poder se casa com a expressão da maioria da população por meio do voto. Há casos de líderes políticos que chegaram ao poder com o apoio do povo para depois reduzir sua participação. O fato é que se os governantes tiverem seu poder limitado ao longo do tempo, há mais chances de a população poder votar continuamente. No sentido inverso, é muito difícil garantir a liberdade quando as desigualdades constituem a base do contrato social. Pensadores liberais como John Rawls e Amartya Sem perceberam como a existência de pontos de partida diferentes entre os cidadãos inviabiliza a liberdade para todos.
Foi no pós-Segunda Guerra, após o desastre dos regimes totalitários, que mais países começaram a conciliar melhor o liberalismo com a democracia. Não foi um caminho suave e sequer linear, pois o autoritarismo continuou forte em várias regiões do mundo, como na América Latina e suas ditaduras, geralmente ancoradas nos militares. Mas a partir do final da década de 1970 até o início da década de 1990, uma nova realidade começou a se constituir, com o surgimento de um número inédito de regimes democráticos. Neles, não só o povo começou a participar continuamente, como também o império da lei e os controles dos governantes ganharam maior relevância. Parecia que liberdade e igualdade se tornariam um casal perfeito para a grande maioria da humanidade.
Num processo que se iniciou na década passada e se prolonga até os dias de hoje, vários eventos revelam que a união entre liberalismo e democracia não vai bem em diversas partes do mundo. E não se trata aqui de citar nações que continuaram mantendo ditaduras de longa duração como Coreia do Norte e Cuba. Esse tipo de arranjo político não é o inspirador da crise atual. Em nome de um pretenso nacionalismo, da ampliação populista do poder ou de uma garantia da liberdade sem que o povo seja convidado para a festa, ideais liberais e democráticos começaram a se estranhar.
É um fenômeno que cresce paulatinamente e que abarca lugares estratégicos do mundo. A meteórica ascensão econômica e geopolítica da China no final do século passado já era o primeiro sinal de que o casamento entre liberalismo e democracia não se tornaria tão cedo um valor universal. Como a gigante nação chinesa continuará a expandir sua força nos próximos anos sem que a liberdade e a igualdade políticas sejam garantidas ao povo, haverá um grande exemplo de que é possível um outro caminho para o desenvolvimento, mesmo que à custa de muito autoritarismo.
O surgimento daquilo que vem sendo chamado de democracias iliberais é outra manifestação da crise atual. São regimes políticos que mantêm o processo de votação popular, mas que criam dificuldades para os opositores do governo (na eleição e fora dela) e, ainda, enfraquecem qualquer forma de controle institucional do governante. Com o tempo, esse modelo vai atingindo outras esferas das liberdades individuais, tanto as clássicas (como a liberdade de expressão) como as de novo tipo, presentes no conceito de diversidade (étnica, cultural, de gênero etc.). Países como a Turquia e a Venezuela já chegaram a tal estágio, e a Rússia é o país mais poderoso e bem-sucedido deste modelo, mantendo eleições e restrições de liberdade.
O discurso iliberal não prolifera apenas nos países menos desenvolvidos. O populismo de direita, quando não fascista, prolifera na França, Alemanha e, com mais força, em grande parte do Leste Europeu. O presidente Trump até contém algum desses elementos, como ficou claro no episódio da imigração e na forma como trata a questão racial. Mas os Estados Unidos são um caso bem mais complexo, porque a estrutura institucional de freios e contrapesos, por ora, tem barrado algumas ações do Executivo federal, embora nunca um governante dos EUA tenha chegado tão perto de colocar o modelo liberal em risco.
Menos comentado pelos estudos de ciência política e quase nada debatido na mídia, há um outro fenômeno relevante: o liberalismo com medo de democracia. Trata-se da visão mais vinculada ao globalismo e a uma defesa restritiva do modelo representativo. Em outras palavras, em nome da ordem econômica liberal propõe-se que o povo - principalmente os mais pobres e os que perderam empregos e status no sistema atual - e o governante por ele eleito devam admitir que nada pode ser feito para aumentar a igualdade, a não ser esperar que, num belo dia, ela surja das "boas políticas econômicas".
Nesse tipo de argumento, o populismo vira o maior inimigo, quando os liberais com medo de democracia deveriam estar preocupados com o verdadeiro fator que hoje afasta o liberalismo da visão democrática: o crescimento da desigualdade em todo o mundo, e sua manutenção em níveis insuportáveis nos países menos desenvolvidos.
E o que esse debate tem a ver com o Brasil, pergunta o leitor ansiosamente? Está intimamente ligado às eleições de 2018. De um lado, o mais antiliberal de todos os candidatos é Jair Bolsonaro, que propôs recentemente o aumento do número dos ministros do STF, para montar sua maioria lá. Esse foi o caminho da ditadura militar e de muitas outras experiências autoritárias recentes. Bolsonaro quer ganhar a eleição e não ter seu poder limitado. Por outro lado, o chamado centro reformista precisa apresentar propostas para combater a desigualdade, tornando-a prioridade número um da nação. Se seus representantes não souberem o que fazer com a exclusão social aviltante que há no país, de duas, uma: ou ficam sem chances de ganhar a disputa presidencial - os chamados extremos é que estão falando com o povo -, ou caso vençam o pleito, o que ainda é possível, terão enormes dificuldades para governar a panela de pressão brasileira.
Para ter um futuro melhor, o Brasil precisará reconciliar liberalismo e democracia, combinando os dois conforme as necessidades do país. Qualquer outro caminho será uma forma de restringir a liberdade ou a igualdade, ou ambas - tal qual já existe nas periferias urbanas brasileiras.
Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP
Fonte: Valor Econômico (06/07/18)

Direita envergonhada (Marcus André Melo)

“Direita envergonhada” (“abashed right”, no original) foi a expressão utilizada pelo cientista político Timothy Power, da Universidade Oxford, para referir-se ao paradoxo de os políticos brasileiros —que em outros países se auto definiriam como de direita— recusarem essa qualificação.
Duas década após a publicação do seu livro “The Political Right in Post-Authoritarian Brazil: Elites, Institutions and Democratization”, Penn State University Press, 2000, (A Direita Política no Brasil Pós-Autoritário: Elites, Instituições e Democratização), ocorre curiosa inversão: a normalização do nosso sistema partidário, pela emergência de partidos e setores autodefinidos como de direita e ultraconservadores, tem causado perplexidade descabida.
O fenômeno da direita envergonhada não é novo, muito menos brasileiro. Albert Thibaudet registrou na década de 1930 o que chamou de sinistrismo: a diferenciação do sistema partidário na França pela proliferação de novos partidos, sempre pela esquerda. O termo direita, argumentava, havia adquirido conotação pejorativa devido à associação com a monarquia e à idolatria da república.
O mesmo aconteceu no Brasil e na América Latina em que a qualificação de direita passou a ser associada aos regimes militares e ao autoritarismo (tolerado na agenda pública em sua versão à esquerda).
O sinistrismo mudou: nas últimas décadas há uma tendência de afastamento dos antigos modelos de partidos socialistas e comunistas. Brasil, África do Sul e Índia são as únicas democracias em que ainda existem partidos comunistas não reformados com presença ativa na arena pública.
Partidos de extrema direita e ultraconservadores existem em todas as democracias classificadas como plenas pelo The Economist Intelligence Unit. As democracias têm remédios constitucionais para violações da ordem constitucional. Todo cuidado é pouco porque a tentação iliberal tem sido muito forte. Mas não há nada patológico, pelo contrário, no surgimento de partidos que defendem pautas ultraconservadoras.
Preferências que permanecem latentes, como as conservadoras, explicam fenômenos que causam perplexidade, como mobilizações sociais súbitas, rebeliões, etc. Esse é o argumento da falsificação de preferências de Timur Kuran em “Private Truths, Public Lies”, (Verdades Privadas, Mentiras Públicas), Harvard University Press, 1995.
Assim, não há uma nova direita conservadora que adquiriu voz com o Bolsonaro: ela sempre existiu desde o fim do regime militar, com suas verdades privadas. Mas, é claro, beneficia-se, e muito, do choque no sistema partidário produzido pela Lava Jato.
(*) Marcus André Melo é professor de ciência política da Universidade Federal de Pernambuco e doutor pela Sussex University.
Fonte: Folha de São Paulo (02/07/18)

Os intelectuais e a aranha (Luiz Werneck Vianna)

A natureza balsâmica do processo eleitoral é um fato que se impõe à observação de quem se dedica à análise da cena moderna brasileira, momento em que “os de cima” calculam as condições que levem à preservação de suas posições de domínio e “os de baixo”, as oportunidades para terem acesso a mais direitos sociais e políticos. Dado que na nossa sociedade o voto se tornou universal e a democracia política encontrou âncora segura na Carta de 88, elementar que o sucesso eleitoral, diante das profundas desigualdades sociais e das diferenças regionais que nos caracterizam, dependa de uma feliz combinação entre as partes que compõem o tecido social. Pelo voto nenhuma delas ganhará tudo.
Se assim é, a negociação reveste-se de elemento-chave na disputa eleitoral em curso e sob esse registro tende a dissipar o clima de cólera e de intolerância com o outro até então dominante. Mais uma vez fica evidente que, entre nós, a forma superior de luta se trava no processo eleitoral - já confirmada no regime militar -, e não pelo recurso à luta armada, conforme lenda urbana ainda circulante em pequenos círculos da esquerda, usando uma expressão do repertório de sarcasmos do ministro Gilmar Mendes.
Dessa forma, embora persista a ação de renitentes que nos prometem uma catástrofe iminente, sem nenhum triunfalismo já se pode proclamar em alto e bom som que a crise que ameaçou a nossa democracia se encontra superada, em mais um momento de consagração da nossa Constituição. Com isso não se quer dizer que se tenha pela frente um horizonte aprazível - absolutamente não -, mas que os conflitos e as disputas que nos são próprios vêm encontrando, mesmo que apenas por ensaio e erro, as vias institucionais dos partidos, sindicatos e da vida associativa em geral, num processo com origem na sociedade civil, não no Estado, como resultou, por exemplo, na criação dos sindicatos na era Vargas e do PTB na agonia do regime autoritário de 1937.
Aos trancos e barrancos, a sociedade brasileira avança meio às cegas em direção ao moderno. Pode-se sustentar até que esse movimento que vem deixando para trás o peso da nossa tradição de décadas de modernização conservadora, nos termos da obra clássica de Barrington Moore, vem operando mais no terreno da societas rerum do que no da ação intencional dos homens.
Com efeito, as mutações demográficas, econômicas e sociais vindas dos impulsos modernizantes vindos do vértice político - tanto os de origem em conjunturas democráticas, como nos tempos do governo JK, quanto os conduzidos por regimes autoritários, como no Estado Novo, de 1937, e no recente regime militar - têm importado numa segura conversão do caos social com que nossa sociedade iniciou sua história para se tornar uma sociedade de composição demográfica racional ao capitalismo, categoria importante no arsenal teórico de um grande autor.
Tal mutação está na raiz da profunda crise política com que se abriram as jornadas de junho de 2013, movimento massivo da juventude “contra tudo o que está aí”, sinal forte de risco que os acontecimentos futuros vieram a confirmar, com o impeachment e a chamada Operação Lava Jato, significando, ao fundo, o estado de exaustão das práticas e concepções com que há décadas vínhamos sendo governados.
Fixada a observação no movimento das estruturas da societas rerum o cenário é, pois, o de mudança que se faz indicar no terreno dos fatos, como ilustra o conjunto de importantes reformas já introduzidas na vida econômica, a maioria delas de caráter irreversível. Contudo, se o olhar se desloca para o plano das ideias e das concepções do mundo, o curso da mudança, embora tenha havido nas últimas décadas uma altamente significativa expansão do estrato dos intelectuais nas universidades e nas atividades artísticas, definha e apresenta um cenário desalentador de mesmice e de pouca criatividade.
Na economia, numa das sociedades mais desiguais do planeta, tivemos de esperar a notável obra de Thomas Piketty, de edição recente, para que a produção dos especialistas se voltasse para esse tema estratégico. Nas ciências sociais, desprendemo-nos da excelsa tradição que vinha de um Gilberto Freyre, de Florestan Fernandes, de Fernando Henrique Cardoso, de Raymundo Faoro, Roberto DaMatta, entre tantos nomes que se dedicaram a interpretar o País, para instalar em seu lugar os estudos identitários, que, embora importantes, certamente não têm a relevância do que foi o mainstream da reflexão disciplinar, tão necessário nesta hora em que se faz imperativa a busca de novos rumos.
O dilema perturbador de sempre no estudo das sociedades é o que importa mais para a observação, se a aranha ou a teia que ela tece, tal como na célebre metáfora com que Max Weber retrucou a um colega sobre suas diferenças com a teoria social de Karl Marx. A controvérsia sobre o tema provavelmente persistirá até o fim dos tempos, e esses mesmos gigantes do pensamento sempre oscilaram em suas respostas, ora favorecendo o papel do ator, ora dos fatos com que ele se enreda.
A grande transformação que a partir da Revolução de 1930 revolveu os fundamentos da sociedade brasileira, conduzindo-a do estágio agrário em que se encontrava para o urbano-industrial, foi antecedida por um intenso movimento de ideias nas elites intelectuais da época, de que são exemplares a obra de Euclides da Cunha, o tenentismo na juventude militar, a criação do Centro João Vital por intelectuais católicos, a Semana de Arte Moderna, em 1922, e a chegada, nesse mesmo ano, dos trabalhadores à cena política com a fundação do Partido Comunista.
O momento propício que experimentamos agora pode frustrar-se se os intelectuais - a aranha da metáfora de Weber - cederem ao ceticismo que ora grassa entre eles, abandonando de vez o exercício dos papéis de vanguarda com que marcaram a nossa trajetória como nação.
Fonte: O Estado de São Paulo (1/07/18)

Uma questão de narrativa (Murillo de Aragão)

Uma das palavras mais irritantes no momento é “narrativa”. Tudo é uma questão de narrativa. Falta aos candidatos uma narrativa... Ou: o candidato X tem uma narrativa... Enfim, por mais lugar-comum que seja falar em narrativas hoje, o fato é que elas são importantes no contexto eleitoral.
A eleição é uma operação a futuro e a descoberto. Não tem “hedge”. A opção feita é para ganhar ou perder. Não há alternativa. Assim, para alguém fazer uma opção tão arriscada deve ter partido de alguns pressupostos. Basicamente, existem três fatores que motivam um eleitor a escolher um candidato.
O primeiro é meramente fisiológico. Vota-se em troca de algo palpável e visível que possa ser, idealmente, executado de imediato. O voto fisiológico pode ser rasteiro, em troca de uma dentadura ou de tijolos, ou, ainda, embalado em interesses corporativistas. Vota-se na expectativa de que o eleito possa assegurar ou obter benefícios – imediatos ou futuros – para o eleitor.
A segunda opção é ideológica. Vota-se por afinidade de princípios ideológicos. Esse é um eleitor escasso no Brasil. Até pelo fato de os partidos políticos, que são os veículos das ideologias, serem instituições desmoralizadas. Poucos partidos são verdadeiramente ideológicos. E quase todos são de esquerda.
A terceira opção reside no encantamento que o candidato possa causar no eleitor com sua reflexão sobre a conjuntura. O eleitor, a partir de uma visão desideologizada da realidade, opta pelo candidato que melhor representar seus anseios e expectativas. A Alemanha não era nazista, mas escolheu Hitler. O Brasil não era petista, mas escolheu Lula. Não foram opções ideológicas.
Salvo o eleitor fisiológico, cuja motivação independe de uma narrativa que justifique sua opção, os demais eleitores são suscetíveis à aceitação de uma narrativa. Necessitam “comprar” uma história que os leve a firmar aquela opção futura. Seja por uma crença ideológica, seja por convencimento.
Durante décadas as promessas de campanha eram ingredientes relevantes nas narrativas dos candidatos. Porém o simples ato de prometer perdeu vigor e credibilidade. Nos dias de hoje, pela desmoralização da política e pela desconfiança nas instituições, para se comprar um discurso há de se compor uma alegoria que tenha começo, meio e fim. Enfim, uma narrativa completa.
A narrativa, objetivamente, tem alguns elementos: um fato, um tempo, um lugar, personagens, causa, modo e consequência. Um candidato (personagem) narra fatos (problemas) que ocorrem em determinado tempo, que tem causas e modos e que geram consequências. A ele cabe apresentar as soluções que atendem à expectativa do desenrolar dos problemas.
A boa narrativa de um candidato não está apenas no seu discurso. Envolve também sua postura, a embalagem e a difusão da sua mensagem, além da coerência entre o mensageiro e a mensagem. Mas, acima de tudo, a compatibilidade da mensagem com a conjuntura.
A conjuntura do Brasil tem alguns temas preponderantes, a saber: corrupção, segurança pública e desemprego. Tecnicamente, os candidatos que necessitam de uma narrativa para encantar o eleitor deveriam tomar posição em torno desses três temas e construir a sua mensagem.
Mas não é tão fácil assim. Pois existem aspectos que transcendem a mera intenção de abordar determinado tema. Muitas vezes o tema é bom e o mensageiro também, mas o interesse é baixo. Foi o caso de Cristovam Buarque em 2006, com sua bandeira da educação na campanha eleitoral. Não havia interesse relevante no tema a ponto de fazer o eleitor querer votar nele.
Hoje, em tempos de final de pré-campanha, há apenas duas narrativas predominantes. Uma é conduzida por Jair Bolsonaro (PSL), que mistura renovação, lei, ordem e segurança pública; e a outra conduzida pelo ex-presidente Lula (PT), que é a do perseguido por ter sido o “pai dos pobres”. Os demais pré-candidatos buscam um ganho para as suas campanhas eleitorais, o que ainda não conseguiram.
Existe claramente uma vocação pela renovação. Mas a renovação por si só não se sustenta. Caracteriza-se mais como uma antinarrativa. Por isso o ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB) e Lula sofrem rejeição muito elevada, por serem representantes do mundo tradicional da política que está sendo desconstruída pelas investigações da Operação Lava Jato.
Os demais candidatos possuem franjas de votos, porém não encaixam uma narrativa que seja realmente popular. O centro reformista tampouco tem, até agora, narrativa que atenda às expectativas de um eleitorado desiludido com a política. Basta ver que, na pesquisa espontânea, boa parte dos eleitores entrevistados não têm candidatos e/ou dizem que votarão em branco.
A narrativa da estabilidade econômica, que poderia ser bem utilizada pelo ex-ministro Henrique Meirelles (MDB), foi soterrada pela artilharia midiática contra o presidente Michel Temer (MDB), atacado não apenas por eventuais pecados, mas por ter sido o coveiro do sonho esquerdista de governo. Para piorar, a sensação térmica da economia não é boa a ponto de criar uma narrativa de sucesso a favor de Meirelles.
O PSDB de Alckmin até agora não construiu uma narrativa para ele ser um candidato competitivo. O eleitorado, enfurecido com a política e diariamente envenenado por uma mídia espetaculosa, quer candidaturas que tragam esperança de tempos melhores. Os eleitores não querem apenas promessas de tempos melhores. Querem candidatos que, em sua postura e sua narrativa, demonstrem que as mudanças começam já e agora. É um processo muito louco e que mexe com o psicossocial da coletividade. Quem dominar a chave desse processo deverá ganhar as eleições.
(*) Advogado e consultor, mestre em ciência política e doutor em sociologia (Universidade de Brasília), é professor da Columbia University
Fonte: O Estado de São Paulo (30/06/18)

Políticos e juízes, entre o destino e a tragédia (José Eduardo Faria)

Ao contrário das novas gerações, as mais antigas podiam ser menos informadas, mas sabiam operar com modelos capazes de sinalizar caminhos e antever cenários, mesmo que sombrios
Entre as consequências da velocidade do processo de destruição criadora, da financeirização dos capitais e da interconexão global dos mercados, destacam-se a erosão das certezas, a dificuldade de identificar as questões mais importantes e desorientação na formulação de respostas. Ao contrário das novas gerações, as mais antigas podiam ser menos informadas, mas sabiam operar com modelos capazes de sinalizar caminhos e antever cenários, mesmo que sombrios. As gerações atuais vivem um paradoxo: quanto mais informações recebem, mais ficam indecisas, revelando-se incapazes de fazer as indagações necessárias à compreensão do momento atual.
Uma dessas indagações é saber como proceder na interpretação de fatos, narrativas e teorias. Outra diz respeito ao tema da legitimidade: na democracia, quem tem a autoridade para impor obrigações aos cidadãos? Como interpretar declarações de políticos que, perplexos com a atuação da Justiça, passaram a perguntar quem manda – se os juízes de primeiro grau ou o presidente da República. “No mundo persa ou grego, o destino era uma atribuição dos deuses. Quando Roma inventou a política, deu o destino – e a tragédia – nas mãos dos homens. Às vezes tenho a impressão de que essas corporações querem substituir os deuses antigos”, afirma um desses políticos.
Num período em que a desorientação resulta do aumento das possibilidades de ação, o denominador dessas indagações se traduz pela incapacidade dos políticos de compreender a política a partir de seus componentes básicos – as relações de força, autoridade, mando e obediência. Outro denominador é a ideia de que os prognósticos com relação ao futuro são inversamente proporcionais ao seu conhecimento. Quanto mais se fala do futuro, menos se sabe sobre ele. Um modo de compreender esse cenário de dubiedades é retomar um ponto da obra de Max Weber, para quem os processos civilizatórios podiam ser vistos como processos de racionalização, como os que forjaram o mundo moderno. Uma das características da modernidade está na crise de seus fundamentos nos planos do conhecimento, da moral e da política. A angústia despertada no homem moderno após a libertação dos laços feudais, dizia Weber, levou-o a uma busca obstinada por calculabilidade e previsibilidade, valorizando a impessoalidade nas relações de dominação e uma ordem jurídica elaborada racionalmente.
Foi esse o papel do Direito moderno: assegurar as expectativas dos cidadãos, oferecendo-lhes garantias contra a arbitrariedade do poder estatal, e criar instituições capazes de impor as regras do jogo, propiciando a conversão das paixões políticas em alternativas programáticas submetidas a escrutínio público. Foi isso que fez a segurança na vida social passar a depender da determinação do jurídico – de um sistema normativo com normas objetivas e fronteiras delimitadas em relação à moral. O problema é que as condições que forjaram o mundo moderno se alteraram, exigindo hoje uma reconfiguração da política, na qual o Estado coexiste ao lado de outras instituições tão fortes quanto ele. Isso foi evidenciado pela ineficácia dos modos convencionais de articulação social, pelo esvaziamento dos modelos social-democratas de transformação política, pelas crises econômicas e pela corrupção.
A consequência foi a descrença nos instrumentos e nas possibilidades da política. Foi no vácuo deixado pela redução da política tradicional a um balcão de negócios que surgiu o protagonismo judicial, ampliando a jurisdição da Justiça com base em sistemas normativos em que princípios se sobrepõem às regras, por serem mais adaptáveis a sociedades funcionalmente diferenciadas. Quanto mais complexa é a sociedade, menos ela consegue ser disciplinada por normas precisas. Por causa de seus conceitos vagos, de difícil determinação, os princípios propiciam uma interpretação extensiva das leis, o que faz da adjudicação uma instância privilegiada na construção do Direito. Contudo, quando essa interpretação alargada é justificada só com base em argumentos morais, ela passa a ideia de que a política é suja – portanto, prescindível. Não por acaso, antes de ser preso um ex-presidente da República criticou os juízes que o condenaram afirmando que “quem se agarra a princípios não faz política”.
A perplexidade dos políticos, quando criticam princípios ou perguntam quem manda, decorre da incapacidade de perceber as mudanças no Direito e os riscos da desqualificação da política. Quando acusam os juízes de primeiro grau de exorbitar, esquecem-se de que é na primeira instância dos tribunais que se dá o primeiro choque entre o sistema jurídico e as condições reais da sociedade. Esquecem-se de que são esses juízes os primeiros a perceber o fosso entre os problemas sociais emergentes e as limitações das leis. Enquanto os juízes de primeiro grau enfrentam o desafio de ajustar sua função a uma sociedade em mudança, os políticos continuam identificando política com atividades congressuais e com a próxima eleição, desprezando questões como as relativas às funções do Estado. Incapazes de compreender que o Estado, conforme o momento histórico, pode ter funções distintas e adequadas a diferentes objetivos, ignoram que a democracia não é um regime de fórmulas fixas para resolver conflitos de interesse e que a política não pode ser exercida fora dos marcos legais – incluídos os do Código Penal.
Classificar os juízes como deuses pode render discursos e levar a projetos de lei que tipificam o crime de abuso de autoridade, para conter a Justiça. Mas não neutraliza o ativismo judicial ancorado em princípios morais. Não oferece alternativas a um modelo de Direito acusado de relativizar garantias de defesa em nome do combate à corrupção. E não resolve a crise das instituições, notadamente as que definem a organização do mercado e da democracia. Só as aprofunda.
(*) Professor de ciência política na Universidade de São Paulo
Fonte: O Estado de São Paulo (25/06/18)