Ao sair da Convenção de Filadélfia, redigida a Constituição norte-americana, Franklin foi interpelado por uma mulher: “O que vocês fizeram? O que nos entregam?”. Franklin respondeu: “Uma República, se vocês puderem mantê-la”. Sim, a lição óbvia é que teremos uma democracia representativa se eu, se você, se nós pudermos sustentá-la. Mas não é disso que se trata aqui. Há outros aspectos desse diálogo que ajudam a introduzir um pouco de sobriedade na busca por um candidato “de centro”.
Chama a atenção a franqueza com que a segunda figura mais proeminente da independência norte-americana, cientista famoso e abolicionista, invoca a responsabilidade do cidadão. Sem traço de paternalismo ou de demofobia, convoca-o a sustentar a República. Nota-se também o substrato valorativo compartilhado pelos dois interlocutores, por aquela que cobra o que é feito e por aquele que relativiza a bondade do que entrega: a convicção de que seu envolvimento mútuo na esfera pública é uma virtude necessária. O diálogo revela, enfim, quanto do ethos igualitário que está na raiz da sociedade americana, teorizado por Tocqueville, se manifestava na vida política. (E ainda se manifesta, embora de forma regressiva.)
Em 1965, pesquisas sobre crenças e atitudes em cinco países atestavam que o perfil da sociedade norte-americana ainda refletia essa matriz, conceptualizada por seus autores como “cultura cívica”. Caracterizada pelos seguintes componentes: participação ampla e generalizada; exposição à política, entendida como interesse em questões dessa ordem, em discussões frequentes; envolvimento emocional em campanhas; sentimento de poder influenciar o governo; proliferação das associações voluntárias; orgulho de seu sistema político.
É oportuno lembrar esses fatos porque condensam os dois fatores que explicam a longevidade da democracia norte-americana, a Constituição e a força de sua cultura cívica. Longe, no entanto, de contrapor o nosso legado ao dos EUA, com o intuito raso de destacar nossos déficits. Nada mais antirrepublicano do que fixar-se nas marcas de origem para, em seguida, convidar o interlocutor a comprazer-se naquilo que Hirschman caracterizou como self-denigration. Por várias razões. Primeira, porque é uma forma de complacência que facilita a desresponsabilização de uns e de outros: em política isso se traduz na ojeriza à prestação de contas e à autocrítica. Segunda, porque foi ultrapassada por nossa experiência, pois avançamos nesse capítulo em termos contratuais, constitucionais e de expectativas. Terceira, porque, em sua vertente republicana, a questão democrática obriga a analisar as bases sociais da política, num sentido preciso: o envolvimento cívico do cidadão eleitor com a vida política do país.
A História do século 20 atesta a variedade de caminhos para construir uma República. Todos, porém, tiveram, por correlato, transformações profundas na esfera da sociedade civil e, por extensão, na sua cultura política. Esta nada mais é do que a dimensão subjetiva das estruturas objetivas que sustentam a democracia representativa, cuja forma mais alta é a ordem constitucional. Nos termos de Tocqueville:
“Os mores (...) o conjunto de ideias e de hábitos mentais (...) que eu entendo como o conjunto moral e intelectual de um povo”, sem os quais “a situação mais privilegiada, as melhores leis não logram sustentar uma Constituição”.
Nesse espírito, vale lembrar que nossa ordem constitucional fará 30 anos e honrar esse desempenho requer que se reflita sobre as bases sociais da nossa política, sobre as transformações da sociedade passíveis de serem mobilizadas em torno de uma agenda republicana. Daí a pergunta: será que já não dispomos de uma cultura cívica emergente para chamar de nossa? Se sim, a busca frenética por um candidato “de centro” balizada pelas utopias regressivas dos candidatos mais competitivos e pela impotência do PSDB para sequer assumir sua identidade pregressa sugerem que buscamos o centro político no lugar errado.
Identificar os elementos de uma cultura cívica em meio às névoas da guerra nas redes sociais, a uma campanha prematura, no contexto político dominado pela Lava Jato, é um desafio inédito: o “centro” converteu-se num alvo móvel. Onde as âncoras? Embora variem as teorias sobre as bases sociais da política, há convergência sobre o vínculo que regula as relações entre governo e sociedade em qualquer regime: são os critérios de legitimação política. É por meio deles que se reconhece como válido, ou não, o exercício da autoridade, sem a qual não há governo. Refletem o apoio difuso àqueles que detêm as alavancas do Estado e, em última instância, à ordem constitucional.
Em que pé estamos? Três tipos de mutações já ocorreram. Uma, a percepção que o eleitorado tem de sua interação com o Estado. A noção de que este lhe deve serviços melhores pôde ser atrelada à noção de direito, entendido como o correlato político de sua condição de contribuinte. Fátima Jordão registra como as evidências de corrupção foram traduzidas pelas classes C e D: um desvio dos recursos que lhes cabem sob a forma de serviços públicos. Segunda, diante da ininteligibilidade do voto, a característica mais perversa do sistema eleitoral, é o desempenho da economia que fornece ao eleitor as condições mínimas de inteligibilidade. É o critério que faz sentido. A terceira refere-se ao princípio de igualdade perante a lei. É patente a deslegitimação de critérios formalistas de autojustificação, do tipo “estou de acordo com a lei”, típicos da nossa formação histórica. O princípio está entranhado na Constituição, é certo. O que mudou foi a sua incorporação pelo cidadão eleitor. À luz da nossa formação histórica, é um fato subversivo.
Conclusão: o centro não é um ponto fixo, nem é redutível apenas à agenda reformista, e sim uma construção política.
(*) Cientista política e pesquisadora sênior da Usp, PH.D por Oxford, preside o comitê de economia política internacional da associação internacional de ciência política, da qual foi presidente.
Fonte: O Estado de São Paulo (11/12/17)
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