Unidade política é sempre algo dinâmico, que depende de gestos permanentes de aproximação e entendimento. Pisa-se em ovos. Quando se dá um passo, no momento seguinte tudo parece desmoronar e é preciso dar novos passos ou até mesmo começar do zero. Em partidos políticos, o tema é crucial.
Partidos políticos são organizações que necessitam de unidade, sem a qual respiram com dificuldade. Podem consegui-la de modo burocrático, com a imposição de diretrizes da cúpula sobre as bases e a institucionalização do silêncio interno. E podem consegui-la de modo democrático, mediante o aprofundamento de discussões e a busca coletiva por pontos de convergência, que vão sendo assimilados pelas direções até um ponto em que viram pensamento comum, diretrizes.
Quando são substantivas, divergências não se suprimem por decreto nem por conclamações unitaristas. Chegam mesmo a ser produtivas, na medida em que forçam a que a discussão avance e as posições se esclareçam. Quando são pontuais, precisam ser processadas à base de muitas interações, concessões e boa vontade das partes. E quando refletem tão-somente a busca por poder, espaço e controle tendem a ser desagregadoras e a requerer esforços que muitas vezes não são suficientes para dar conta do recado, levando a mais tensão e desagregação.
O grande problema é que quase sempre essas divergências se misturam. A dimensão substantiva se confunde com a pontual e ambas são requalificadas pela luta por poder. Fica difícil separar uma da outra, que se retroalimentam. Nesse ponto, a crise interna se agudiza e ameaça fazer sangrar o organismo todo.
Dias após ensaiar a suspensão de uma luta interna que lhe ameaçava corroer as entranhas e paralisá-lo, o PSDB vê em uma nova zona de litígio, dessa vez em torno do programa partidário. Nada mais, nada menos. Se a convergência entre os principais interessados em comandar a legenda sugeria a abertura de uma fase proativa e a recuperação do tempo perdido, tudo se desfez com rapidez. O cenário voltou a ficar turbulento a indicar que as coisas não serão fáceis para os tucanos, sobretudo se for do interesse deles voltar ao primeiríssimo plano da política nacional.
Diante de um texto provisório (“Gente em Primeiro Lugar: o Brasil que queremos”) apresentado pelo Instituto Teotônio Vilela (ITV) , braço de formulação política da legenda, como ponto de partida para a definitiva elaboração programática do partido, as reações foram tão intensas e furibundas que a casa tremeu de cima a baixo. Tucanos de alta plumagem, alguns quadros históricos e intelectuais de envergadura disseram ter sabido do documento pelos jornais. Não teriam sido consultados nem convidados para agregar sugestões. A acusação principal é que o texto empurra o partido para trás, amontoando “platitudes” que em nada ajudam e não definem o que deveria ser uma posição mais aguerrida e arejada, mantendo o PSDB em cima do muro e agarrado a uma agenda ultrapassada. Os defensores do texto retrucaram afirmando que se trata justamente de um material preliminar, para ser discutido, esmiuçado e digerido.
O centro da divergência é duplo. Os críticos, por um lado, alegam que o partido não estaria deixando clara sua posição sobre reformas destinadas a produzir racionalidade e maior equilíbrio fiscal, como a da previdência. Por outro, não deixaria clara sua postura diante do complicadíssimo tema do Estado, se mais liberal ou mais “desenvolvimentista”. O documento permaneceria numa zona cinzenta em que o Estado necessário surge não como “mínimo” ou máximo, mas como “musculoso”, metáfora que de fato pouco diz. Assim como o slogan recuperado pelo texto, o do “choque de capitalismo”.
Diante da celeuma, a constatação a que é que o PSDB encontra-se numa encruzilhada dilemática.
Numa das pistas, perfila-se a reiteração da tradição socialdemocrática, agarrada à ideia de um Estado regulador ainda que não dilatado, bem como a políticas pró-social não necessariamente refratárias ao mercado mas atentas ao quadro de pobreza e desigualdade. Por aqui trafega também uma atenção dedicada à competição eleitoral de 2018, com a busca de certa distância em relação ao ritmo do governo Temer e a seus efeitos no eleitorado.
Na outra pista, afirmam-se a ênfase no livre-mercado, uma redução firme do papel do Estado, maior ousadia em privatizações e uma preocupação em colar o partido aos novos termos da economia e da sociedade líquida moderna. Trafegam aqui os que defendem uma refundação vigorosa do partido, que o obrigue a “descer do muro” e a rever o próprio modo de ser socialdemocrático.
Não são pistas que se excluam, até porque estão interligadas por um mesmo respeito ao liberalismo político e à democracia. Mas, se tiverem de ser compostas em uma unidade partidária efetiva, muito trabalho terá de ser despendido, com concessões mútuas e uma idêntica disposição de fazer com que o PSDB se reponha na vida nacional. Sem isso, será difícil.
Fonte: O Estado de São Paulo (1/12/17)
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