A discussão está posta já faz tempo. As paixões, excitadas ao extremo, falam mais alto que qualquer racionalidade ou sensatez. Os políticos fogem do tema como o diabo da cruz. O governo, por sua vez, entra no jogo do toma-lá-dá-cá, o que gera na opinião pública a sensação de que o problema será tratado como moeda de troca para sabe-se lá o quê.
Foi assim com FHC, com Lula e Dilma. Está sendo assim com Temer. Se nada for feito, será assim com o próximo presidente.
Estamos brincando com fogo na discussão sobre a reforma da Previdência.
Antes de tudo porque ela afeta milhões de brasileiros e pode ter efeito devastador sobre os mais pobres. Basta errar a mão um pouquinho.
Mas também porque é um fato que a expansão das despesas – provocada tanto pela multiplicação inercial dos beneficiários quanto pelo envelhecimento da população – pode comprometer seriamente o que há de Estado de Bem-Estar e arrasar a rede de proteção social no país.
Uma reforma faz-se necessária no mínimo por isso. Se bem calibrada, pode ser um fator de redução da desigualdade, dos privilégios e da injustiça social em que vivemos.
Há um alegado e controvertido déficit. Mas o problema principal é a disparidade entre os termos a partir dos quais são recebidas e usufruídas as distintas pensões e aposentadorias.
Não dá para simplesmente começar do zero e redesenhar de uma só vez todo o sistema. Será preciso não só considerar os “direitos adquiridos” como fazer os devidos descontos para não prejudicar ainda mais os já prejudicados.
É difícil compreender porque há tanta resistência a que se alterem as idades mínimas e o tempo de contribuição. Além de ser um ajuste pequeno, não produzirá prejuízo maior se vier acompanhado da fixação de algum tipo de bônus para quem começou a trabalhar mais cedo ou o fez em condições insalubres, por exemplo.
Outro ponto diz respeito à resistência ainda mais encarniçada para que se mexa na esfera do que vem sendo chamado de “privilégios”, que engloba as aposentadorias especiais, o RPPS-Regime Próprio de Previdência dos Servidores, específico dos funcionários públicos, civis e militares, dos três Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios.
É compreensível que os servidores aí envolvidos se inquietem e sejam contrários a uma reforma que venha a afetar o que consideram ser as regras com as quais assinaram os respectivos contratos de trabalho. Mas não é compreensível que não se disponham a discutir o problema. Afinal, a convivência em paralelo do RPPS com Regime Geral de Previdência Social-RGPS cria como que dois países, compostos por pessoas com direitos distintos. O paralelismo pode ter sido justificável nos primórdios da organização da Administração Pública brasileira, mas hoje já não é mais.
O correto é tomar providências para que tal disparidade vá sendo reduzida aos poucos até desaparecer.
Em recente artigo publicado na revista eletrônica Será?, a economista Helga Hoffmann enfatiza, com argumentação clara e ponderada, que o regime de pensões e aposentadorias no Brasil é injusto e contribui para a desigualdade, coisa já conhecida mas quase nunca enfrentada a sério. Não se trata de condenar as aposentadorias elevadas, mas sim de compreender que elas somente se convertem em “privilégios” quando são subsidiadas pelos mais pobres. É nesse ponto que nos encontramos.
Hoffmann explica como o funcionamento atual do sistema previdenciário no Brasil faz essa transferência dos mais pobres para os mais ricos.
“Segundo dados de 2016, o déficit do RGPS foi de R$ 150 bilhões, enquanto o do RPPS foi R$71 bilhões. Só que o RGPS paga benefícios a quase 29 milhões de pessoas, enquanto o RPPS banca menos de 1 milhão de aposentadorias e pensões. Grosso modo, o subsídio da sociedade brasileira à aposentadoria de seu funcionalismo é de R$6 mil por benefício/mês, enquanto é de R$ 430 por benefício/mês o subsídio aos aposentados do setor privado. Como em 2016 o valor médio do benefício do RPPS foi R$9.400 e do RGPS foi R$1.450, vemos que a transferência é proporcionalmente maior no caso das aposentadorias do funcionalismo público. Enquanto no caso do INSS a contribuição recolhida cobre cerca de 70% do benefício, no caso do funcionalismo ela não chega nem a cobrir 40% do benefício”.
Ou seja, os impostos são empregados para subsidiar mais o regime de aposentadorias especiais do que o outro. Nas palavras da economista, “a injustiça maior ocorre nesse processo de transferência para cobertura do rombo, pois este é pago pela sociedade em seu conjunto”.
Além disso, os elevados gastos com benefícios previdenciários e cobertura dos rombos reduzem o espaço para outras despesas públicas, como o custeio de saúde, educação, segurança, mobilidade urbana, infraestrutura e saneamento básico.
Uma reforma terá de ser inevitavelmente feita. Agora ou mais à frente. Não somente por causa de déficits e rombos, mas por uma questão de justiça social. Quanto mais tempo levar, mais dolorosa ficará. O país não aguentará ver sua população crescer em velocidade muito menor do que a população de aposentados. Será bom que todos se deem conta disso.
Aumentar a idade mínima não é um castigo, mas uma tentativa de ampliar a sintonia com as mudanças demográficas, que promovem o envelhecimento da população e aumentam a proporção dos inativos. Idem com o tempo de contribuição. Será preciso também, em algum momento, pôr fim às aposentadorias especiais, como a das mulheres, dos professores e dos policiais, a partir do reconhecimento de que não funciona compensar erros de política salarial com aposentadoria mais benevolente. Seria mais correto pagar melhor os professores do que acenar com uma aposentadoria generosa no final da carreira, justamente quando eles se tornam melhores.
O fato é que a reforma da previdência – assim como outras que produzem impacto nos gastos públicos – expressa com clareza meridiana a necessidade que se tem no país de um novo “pacto social”, entendido como a constituição de uma plataforma política e legal na qual os brasileiros se reconheçam como parceiros de um mesmo país e delineiem um futuro comum. Gastos públicos precisam ser tratados como elementos geradores de solidariedade e não como simples contabilidade fiscal. É disso que se trata quando se fala em “ajuste fiscal”. Estados desajustados não geram solidariedade.
Resistências dedicadas a defender privilégios que somente servem, no fundo, para proteger os que já estão protegidos não levam a nenhum tipo de “pacto”.
Nada disso deveria ser associado à “reforma do Temer”. Até porque ela, feita como está sendo, destina-se a sinalizar algo para os investidores e não integra nenhum programa de recomposição social. É mais simbólica que efetiva. Para se tornar palatável e ter chances de aprovação, a proposta do governo foi desidratada. Afeta parte pequena dos trabalhadores e não põe ordem no sistema. Melhor assim, mas desde que se discuta a fundo a questão durante o processo eleitoral que se avizinha.
Precisamos ir além. Pôr na mesa o que imaginamos ser uma “boa e justa sociedade” e ver de que maneira podemos nos aproximar dela. Não há reformas previdenciárias que possam ser feitas sem que alguém se sinta ou seja prejudicado. Mas há como agir para que os eventuais prejuízos sejam distribuídos com algum critério de justiça e igualdade.
Deixar que o ônus continue caindo sobre os mais pobres e que o sistema fique inviável a ponto de comprometer as gerações futuras é uma demonstração de incapacidade política e cegueira cívica. Revela uma sociedade sem disposição para tomar decisões que digam respeito ao que ela imagina dever ser um padrão de solidariedade entre classes, gerações e profissões.
Fonte: O Estado de São Paulo (12/12/17)
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