domingo, 26 de novembro de 2017

Um centro inclinado à esquerda (Marco Aurélio Nogueira)

Pouco se faz para enfrentar esse quadro desagregador, que se vai naturalizando. Fala-se muito em “centro democrático”, mas ele não se materializa, com o que não se introduz mais racionalidade na competição política nem se oferecem ideias e propostas substantivas claras aos cidadãos.
A democracia alimenta-se do conflito. Polarizações não somente são inevitáveis, como ajudam a manter a temperatura política no limite do suportável e a explicitar diferenças que pulsam no terreno social.
Acontece que uma multiplicidade de polos não é uma virtude. Pode mesmo funcionar para impedir a plena manifestação dos polos “verdadeiros”, aqueles que carregam no ventre os interesses fundamentais da sociedade, as contradições principais. Divisões artificiais e pouca disposição para o diálogo terminam por criar campos ideológicos antípodas, soltos no ar, sem pé na realidade. Parte-se da ideia de que a sociedade é mais dividida do que se vê, e com isso se criam divisões por sobre divisões. A intolerância cresce, as tensões tornam-se insuperáveis e provocam rupturas. Esfuma-se assim o que poderia haver de virtude nas polarizações.
O Brasil dos últimos anos esteve condicionado pela polarização PT x PSDB. Tamanha foi sua força que a sociedade se deixou encantar com o que se anunciou como sendo duas matrizes de governança e de projeto nacional. Nem petistas nem tucanos, porém, conseguiram se firmar como forças dotadas de densidade programática e vocação hegemônica. Foram se desconstruindo ao longo do tempo e chegaram hoje ao ponto mais baixo de sua trajetória. A sociedade, por sua vez, foi-se saturando da reiteração dessa polarização, roubando-lhe chances de reposição.
Polarizações podem funcionar como fatores de organização, nos quais o antagonismo qualifica o quadro geral. Nem sempre os polos estão fechados para entendimentos e composições. Podem conviver no interior de polos maiores e convergir para um patamar comum. É o segredo da unidade democrática, que é feita de soldagens dialógicas, e não impositivas, entre correntes distintas.
A política sofre quando não dispõe de patamares unificadores, que possibilitem o diálogo entre campos distintos. Afasta-se dos cidadãos, assiste à apresentação de propostas diversionistas e ao surgimento de candidaturas voluntaristas ou regressistas.
No Brasil atual, as forças democráticas enfrentam dificuldades para romper os círculos que estreitam sua movimentação e impedem sua reposição vigorosa na cena nacional. Precisam recusar o papel subalterno a que foram relegadas. Devem contestar os ataques da direita jurássica, confrontar a ingenuidade social e problematizar a ideia de que a solução passaria por um condottiere acima do bem e do mal, apresentando em contrapartida uma renovada ideia de País e uma agenda nacional inclusiva.
A esquerda democrática cumpre um papel nessa operação. Um “centro” sem ela terá reduzida potência reformadora e tenderá a ser hegemonizado pelo conservadorismo. Um centro democrático inteligentemente inclinado para a esquerda, por sua vez, poderá organizar uma agenda com sensibilidade social e disputar as multidões.
Uma esquerda democrática não é “inimiga do mercado”: seu anticapitalismo é realista, respeita a correlação de forças e apoia-se numa teoria social que se dedica a compreender as novas formas do capitalismo, da luta de classes, do modo de vida, do mundo do trabalho e do emprego. Seu eixo é a regulação política do sistema econômico, de modo a que se reduzam suas incongruências e sua capacidade de produzir desigualdades.
Mas essa esquerda aprendeu que também é preciso regular e controlar o Estado, de modo a fazê-lo atuar em consonância com as expectativas de crescimento econômico e de justiça social, sem se comprometer com políticas de gasto público desprovidas de “responsabilidade fiscal”. Incorporou os valores do liberalismo político e da democracia progressiva, com os quais defende a necessidade de um reformismo gradual aberto para a justiça social, os direitos e a modificação das estruturas sociais que produzem desigualdade.
Um centro que se componha a partir do liberalismo político precisa assimilar a generosidade democrática e social da esquerda. Num país como o Brasil, aliás, somente assim poderá cumprir uma função progressista e preparar a pista para que o País derrote seus piores inimigos: a desigualdade, a injustiça, o crescimento não sustentável, a corrupção sistêmica, o desrespeito, as discriminações que vitimizam pobres, negros, pardos, índios, homoafetivos e mulheres.
Concebido como plataforma suprapartidária integrada por diferentes formas de pensar – um permanente compósito de conflito e consenso –, tal centro poderia organizar a parte mais ativa da sociedade, hoje afastada da política, mas interessada em fiscalizar os governos e que necessita, por isso mesmo, das práticas e dos valores que a esquerda democrática cultua.
A construção requer habilidades artesanais raras, foco no fundamental, respeito à diversidade, tolerância e sabedoria política para administrar interesses e modular o tempo. Necessita de lideranças, mas não de um líder todo-poderoso. Precisa contar com o desprendimento dos partidos, especialmente dos maiores, que costumam olhar as eleições como uma “oportunidade de negócios”, não como uma oportunidade política, organizacional. Por isso será preciso haver engajamento e pressão cívica, social, algo que, de resto, também precisa ser construído.
O “centro democrático” não cairá do céu. Depende de muito empenho e determinação. Mas precisa ser martelado desde logo, para ter chances de produzir a indispensável convicção política e social.
Fonte: O Estado de São Paulo (25/11/17)

Três pilares em meio à incerteza (Brasilio Sallum Jr.)

24 de novembro de 2017
Há quase três anos a sociedade brasileira experimenta instabilidade política de grandes proporções, que tem afetado profundamente a vida nacional. Ela ocasionou, entre outras coisas, a fragmentação e o desprestígio dos partidos que organizavam e orientavam nossas escolhas políticas. Refiro-me particularmente ao PT e ao PSDB. Internamente divididos, não conseguem mais ordenar o debate e apresentar alternativas para que possamos escolher nosso amanhã. No máximo, apresentam candidatos.
A instabilidade não produziu, porém, uma situação caótica. Há pelo menos três parâmetros que vêm pautando as disputas políticas atuais e, provavelmente, as que serão travadas em 2018.
O primeiro deles é a Constituição de 1988. Apesar da enorme instabilidade vigente, ela ainda serve de abrigo e de norte para as disputas entre os vários atores políticos. Ataca-se, por vezes, o STF, mas sempre em nome da Carta, a norma aceita para a solução das controvérsias. E não há sinais significativos, mesmo da área militar, de que a Lei Magna de 1988 deixe de ser a norma para aperfeiçoar o próprio regime democrático. Assim, é difícil ter curso qualquer solução político-eleitoral que pareça pôr em xeque a ordem democrática.
Além dessa primeira referência, cabe destacar como parâmetros duas tendências sociopolíticas, cada uma produzida por múltiplos atores que atuam com orientação similar, embora sem organização que os unifique. Refiro-me, de um lado, ao conjunto de atores que se orientam em favor do reformismo econômico liberal e, de outro, aos que militam em prol da moralização da política.
O reformismo econômico liberal já pautava a maior parte das críticas feitas à “nova matriz econômica” que orientava o primeiro governo Dilma. A maioria dos jornalistas econômicos, dos economistas com acesso aos meios de comunicação e dos ligados à oposição política sustentaram a crítica liberal ao governo Dilma. O programa do candidato do PSDB inspirou-se nessa perspectiva crítica – na necessidade de finanças públicas equilibradas, de reduzir o crescimento da dívida pública, de reformar a legislação para que as relações mercantis fluam mais facilmente. No entanto, era tão grande o peso do discurso do governo em favor do Estado intervencionista e distributivo que a perspectiva liberal ocupava posição subalterna, ainda mais que lideranças empresariais cuidavam mais de obter benesses do Estado do que de reivindicar enfaticamente uma reorientação da gestão econômica do governo. Entretanto, a decisão da presidente Dilma Rousseff de demitir seu ministro da Fazenda antes mesmo de sua reeleição, a declaração feita depois da vitória de que faria do “ajuste fiscal” o elemento-chave da política de seu segundo governo e a escolha de Joaquim Levy, um economista ortodoxo, para dirigi-la abriram espaço político para o predomínio do reformismo liberal. Este foi se tornando hegemônico, aceito como entendimento verdadeiro, “racional” em relação à política econômica. E tornou-se a referência básica para avaliar negativamente a gestão econômica do primeiro governo Dilma, para orientar a política econômica de seu segundo mandato e até para criticar a insuficiência do seu esforço pelo ajuste fiscal.
Não bastasse isso, o reformismo liberal tornou-se base do programa que o PMDB ofereceu ao País – a Ponte para o Futuro – como alternativa ao governo liderado pelo PT. O reformismo liberal só foi criticado por uma parte dos apoiadores da presidente Dilma, principalmente sindicatos e segmentos do PT, que mantiveram a adesão à abandonada “nova matriz econômica”. Com o impeachment, o reformismo liberal transformou-se em diretriz do governo Temer, contando com o apoio dos meios de comunicação e da maioria do Congresso Nacional. No plano societário, a maior resistência a ele se encontra no seio do funcionalismo público.
A outra tendência sociopolítica a que nos referimos, a que milita em favor da moralização da política, tem como foco extirpar a corrupção da vida política nacional. Políticos e financiadores de campanha têm sido seus alvos preferidos. Juízes e, especialmente, membros do Ministério Público – os tenentes de toga, no dizer de Werneck Vianna – estão na sua vanguarda. Grande parte dos meios de comunicação faz coro a essa tendência moralizadora e a maioria da população a apoia enfaticamente.
Ainda que a maioria dos agentes do Poder Judiciário atue contra a corrupção nos limites da lei, várias denúncias e manifestações do Ministério Público (e até do Conselho Nacional do Ministério Público) e decisões de juízes (mesmo da Suprema Corte) se assentaram mais em exigências morais do que em normas legais. A tendência a favor da moralização tem atuado fortemente nas disputas políticas, não apenas por denúncias e decisões judiciais, mas também pela divulgação “legalizada” ou “vazada” de acusações contra políticos por delatores que negociam redução de pena com o Ministério Público.
Divulgando algumas dessas delações, os meios de comunicação produzem a condenação moral do acusado sem nenhum julgamento legal ou, mesmo, antes que tenha havido sequer a abertura de processo legal. O “assassinato de reputações” tem sido a maior arma do “partido” da moralização da política. Tanta força tem esse “partido” que conseguiu bloquear o impulso do reformismo liberal e vem desafiando o equilíbrio entre os Poderes inscrito na Constituição democrática de 1988.
Embora a eleição de 2018 ainda esteja longe para arriscarmos previsões, parece-me certo que todos os candidatos terão de se haver com estas três crenças dominantes: Constituição democrática, reformismo liberal e moralização da política. Aqueles que as desafiarem, terão muita dificuldade para convencer o eleitorado.
Fonte: O Estado de São Paulo (24/11/17)

Pensamento pobre (José de Souza Martins)

Em comparação com minha época de estudante, as pessoas de hoje são muito mais informadas do que eram as daquele tempo. Mas não são menos ignorantes. Sabem muito, mas imprópria e provisoriamente. Sabedoria que chega ao interessado com uma clicada no celular ou no computador para ser esquecida em 20 minutos. Ficam resíduos que vão constituir a nova cultura popular dos cheios de certeza sobre todos os assuntos. Mas, uma coisa é ficar sabendo, outra, muito diferente, é saber. Por isso, somos hoje mais enganados do que éramos há meio século.
No geral, sabem acertar no acaso dos testes de múltipla escolha, mas não sabem explicar a construção da pergunta nem a razão da resposta. Quem, como eu, é professor universitário, sabe que há diferenças de competência entre os alunos que ingressaram nas grandes universidades em 1960 e os que estão nelas ingressando em 2017. No peneiramento dos talentos, que ocorre ao longo do curso universitário, apenas uma parte dos ingressantes tem as características próprias do que Karl Mannheim define como intelectual. Felizmente, ainda são muitos que as têm porque é muito maior do que no passado o número dos que chegam à universidade, embora sobrem proporcionalmente em menor número.
O maior e mais fácil acesso a fontes de informação difundiu uma cultura padronizada, privada de componentes críticos e de raciocínio próprio de gente que até sabe responder as perguntas, mas que não sabe desconstruí-las, decifrar-lhes as conexões de sentido, entender-lhes a lógica interna. Perguntas são apenas causas de respostas, já não propriamente desafios de interpretação. As hierarquias, no âmbito do conhecimento, foram substituídas pelas equivalências e seus signos. Tudo parece equivalente, o que enche esses novos sábios do cotidiano de certezas definitivas e absolutas. Os saberes são medidos pelo mesmo metro, por mais diferentes que sejam entre si.
Na era do almoço por quilo não há a menor diferença entre filé-mignon e repolho. Não há, também, a menor diferença entre o saber de um engenheiro que teve formação científica e um engenheiro que teve apenas formação técnica. Não há diferença entre um médico que ausculta, apalpa e diagnostica e um médico capaz de fazer um diagnóstico cientificamente explicativo, com base em pesquisa científica. Não há diferença entre o economista capaz de fazer cortes e ajustes na economia que afeta a todos e o economista capaz de propor políticas econômicas baseadas em diagnósticos fundamentados, mas também em avaliações científicas das consequências sociais das medidas que propõe. Não há diferença entre o economista que faz estudos e análises com base na premissa do primado da produtividade e o que é capaz de pensar a economia com base na função da produtividade no bem-estar social.
Embora haja muitas exceções, no geral as pessoas aprendem a repetir, mas não aprendem a pensar. Tenho notado, nas reações ao que escrevo e ao que colegas e conhecidos escrevem ou ao que dizemos em palestras e conferências, especialmente para pessoas de educação média, em diferentes lugares do Brasil, questionamentos chapados, de matriz ideológica, em alguns casos informados por orientações padronizadas de igrejas, em outros por orientações padronizadas de partidos, grupos de interesse partidário ou grupos ideológicos.
Questionamentos baseados em simplificações padronizadoras. Todo negro descende de escravos, o que não é verdade. Todo pardo é negro, ainda que negro de mestiçagem, o que é menos verdade ainda. Todo operário é pobre, o que não corresponde ao fato de que um número extenso de operários tem salários maiores do que muita gente da classe média.
A consciência social crítica dissolveu-se na pseudocrítica da recusa, da intolerância, do ódio. Uma cultura da vingança se disseminou. O pressuposto da resistência está em toda parte. Tudo se tornou, supostamente, resistência. A resistência como sinônimo de ser contra e não como sinônimo de ser crítico, isto é, de ser capaz de desvendar os aspectos ocultos e invisíveis de todos os campos sobre os quais pode incidir a pesquisa científica.
Nas ciências humanas isso é particularmente complicado. A pessoa comum não tem como compreender na superfície do visível causas e fatores profundos e ocultos dos acontecimentos sociais. Luta contra porque acha que sabe. Opõe-se ao conhecimento científico porque este esvazia criticamente o conhecimento ideológico.
O pensamento já não é a consciência social da práxis, do pensar para transformar, para emancipar, para estar junto com os outros. O pensamento pobre sobre ricos e pobres em vez do pensamento rico sobre pobres e ricos, sobre as contradições que nos dividem e nos afundam.
Fonte: Valor Econômico (24/11/17)

Direita e esquerda (Roberto DaMatta)

A crise é deflagrada por um impeachment e pela descoberta da corrupção num governo de esquerda. O fato marcante é o assalto aos bens públicos fora dos polos canônicos – esquerda e direita. Não há como ignorar como a desonestidade desmanchou a solidez das polaridade políticas.
Enquanto a esquerda foi um lugar na topografia política inaugurada com a Revolução Francesa, como mostrou J. A. Laponce num livro notável, não havia novidade. Mas, quando ela chega ao poder, cabe discutir como e onde sua moralidade fica semelhante à de uma cavernária direita.
Um governo de esquerda decepciona justamente por sua semelhança com a direita no que tange a ineficiência pública e a corrupção. Se a prova do pudim está em comê-lo, a esquerda não mudou a receita e governou seguindo as mesma práticas sociais que dominam o campo da política – um campo dinamizado mais pelos relacionamentos e favores pessoais do que por princípios ideológicos.
Antigamente a “direita” significava manter o “status quo” que a “esquerda” queria mudar. Minha geração tinha como ideal reduzir a distância entre os poucos com muito e a multidão empobrecida. Até meu reacionário e alienado pai entendia isso, embora ponderasse que relativizar a propriedade seria promover o terremoto que derrubaria tanto o sistema quanto a nossa casa.
Era correto, entretanto, entender a história nessa chave desde que a esquerda não desempenhasse o papel da direita.
A troca de lugar – esse movimento democrático – foi um avanço, pois democratizou também a esquerda. Ela deixou a lista negra e passou a fazer suas listas negras. No governo, foi obrigada a abandonar o “quanto pior, melhor” e exibiu poderosos e fracos no seu próprio espaço. Perdeu a inocência.
Até onde a dualidade entre esquerda e direita disfarça hierarquias? Num ensaio famoso e em outro contexto, Lévi-Strauss questiona se as organizações dualistas existem – ou seriam um modo de esconder hierarquias. Tal ocorreu quando a França revolucionária acabou com aristocracia, clero e povo e reduziu tudo a uma dualidade. Quem era contra o rei, ficava à esquerda; os que o sustentavam, à direta.
É prático, como sugere Laponce, reduzir o complexo campo da política à polaridade das mãos. Afinal, vive-se sem uma das mãos – como revelam os despotismos de direita e de esquerda –, mas não se caminha sem os pés ou sem a cabeça. A polaridade entre esquerda e direita integra diferenças porque suprime relações e estabelece, como mostrou Hertz, o destaque da mão direita. Mas, como ensina Dumont, não podemos esquecer que as mãos, distintas num juramento, juntam-se numa prece. São interdependentes.
Minha geração viu realizado o sonho de ter a esquerda no poder e observou desencantada como as peculiaridades do Estado à brasileira, associado a práticas sociais como o familismo e o favor, a transformaram em direita. Nela, vimos também surgir uma selvagem corrupção. Um hóspede sempre convidado do poder nacional, mas lamentavelmente escancarado pela esquerda.
Temo que, fora do poder, esquerda e direita se diferenciem, mas tal não ocorre quando elas se mudam para o palácio. Nele, o eleito tem que lidar com a matriz hierárquica nacional, com seu atávico e engenhoso legalismo a qual lhe assegura uma capacidade de mando maior do que esperava. Tal matriz tem feito milagres no Brasil. Se ela foi capaz de ordenar eleição com escravismo, por que não seria igualmente competente para conciliar austeridade socialista com riqueza capitalista? Além disso, o palácio tem suas portas abertas aos movimentos populares e aos projetos milionários. Governar, logo se descobre, é criar elos e fazer amizades cruzadas. Não é, pois, sem espanto que descobrimos como o político atua por meio de um espesso tecido de favores pessoais amparado por um igualmente denso e arcaico legalismo de cunho teológico, destinado a criar e manter privilégios.
Resumo da ópera: além da luta de classes, temos que nos haver com o combate entre o bom senso e um arraigado fetichismo legal. Com ele, mascaramos crimes e garantimos impunidade. Hoje, fica muito claro que eleições livres e competitivas não consagram apenas representantes do povo, mas também fazem com que os eleitos pelo povo entrem numa casta – fiquem além da lei. Quem deveria dar o exemplo de cidadania é tentado a virar mestre de mistificação e oportunismo. E aqui, caros leitores, as mãos lamentavelmente se unem e se igualam embolsando dinheiros...
Fonte: O Estado de São Paulo (22/11/17)

domingo, 19 de novembro de 2017

Pesquisa sugere baixa adesão de brasileiros a teses conservadoras (Ricardo Mendonça)

Uma pesquisa recém-concluída pelo instituto Ideia Big Data sobre temas comportamentais e econômicos sugere, conforme os formuladores do levantamento, que as posições dos brasileiros são bem menos conservadoras do que tem aparecido nas análises políticas, nos discursos de parlamentares e em manifestações em redes sociais.
O estudo mostrou, entre outras coisas, que há forte apoio dos brasileiros à atuação do Estado para garantir igualdade de oportunidades, proteção aos mais pobres, aposentadoria aos mais velhos e crescimento econômico do país.
São majoritários também o apoio a cotas raciais em universidades públicas e a defesa de direitos de homossexuais. A formulação segundo a qual os direitos humanos "devem valer para todos, incluindo bandidos", supera com folga o entendimento de que deveria ser algo seletivo. E uma ampla maioria manifesta rejeição à ideia de punição criminal às mulheres que fazem aborto.
Já a bandeira da redução dos impostos, muito cara ao pensamento conservador e muito defendida por políticos de direita e entidades empresariais, não é vista como prioridade.
O único tema testado em que teses normalmente associadas ao conservadorismo ganham mais destaque é o da segurança pública. Por pequena margem, a ideia segundo a qual o país precisa de mais presídios tem mais concordância do que oposição. A defesa da pena de morte empata com a rejeição à adoção dessa medida radical.
Embora a maioria dos entrevistados manifeste preferência por um modelo de penas alternativas em detrimento do aprisionamento como única maneira de punição, 44,8% dos brasileiros concordam com a frase "bandido bom é bandido morto". O grupo que compartilha esse entendimento vence com folga o dos que discordam da frase (31,4%). Outros 22,2% nem concordam nem discordam.
Para chegar a essas conclusões o Ideia Big data ouviu 3 mil pessoas em todo o país entre os dias 1º e 10 de novembro. A pesquisa foi feita face a face e tem margem de erro de 2,5 pontos para mais ou para menos.
O levantamento foi encomendado pelo chamado Movimento Agora!, um grupo criado há um ano para, segundo a própria definição, "impactar a agenda pública e a ação política" no país. Segundo o CEO do instituto, Maurício Moura, o estudo foi financiada pela própria empresa de pesquisa em colaboração com o Movimento Agora!.
Composto por aproximadamente 90 pessoas, o Agora! reúne pesquisadores, empresários, ativistas, economistas, ongueiros, profissionais liberais e até um indígena entre os seus cofundadores e membros.
No grupo dos 48 cofundadores listados em seu site estão, entre outros, os empresários Carlos Jereissati Filho e Eduardo Mufarej, o ex-secretário Nacional de Justiça e ex-chefe de gabinete da ex-presidente Dilma Rousseff, Beto Vasconcelos, a economista Mônica de Bolle, o ativista Anápuáka Muniz Tupinambá Hã-Hã-Hãe e as pesquisadoras Ilona Szabó e Melina Risso.
Cotado como possível candidato à Presidência da República em 2018, o apresentador de TV Luciano Huck (sem partido) é apresentado na mesma lista como "membro" do Agora!.
Para Melina Risso, o resultado que melhor expressa o sentimento captado pela pesquisa é o da primeira pergunta formulada pelo Ideia. Os entrevistados foram provocados a dizer se preferiam impostos mais baixos ou melhores serviços públicos, como saúde e educação. De cada 10 brasileiros, 8 optam por melhores serviços públicos.
"Vivemos um momento complicado no país porque o único fenômeno com forte visibilidade é o de um amplo conservadorismo que teria dominado o país", disse Risso ao Valor. "Então foi com satisfação que eu vi os resultados dessa pesquisa. Uma boa surpresa perceber que há espaço para discussão de outros temas. Acho esse resultado da preferência por serviços públicos revelador da desconexão entre o que ganha visibilidade na imprensa e no debate público e o que é dito pelos brasileiros."
O tema importo também foi testado numa peste do questionário que perguntava sobre concordância ou discordância dos entrevistados em relação a determinadas frases.
Três entre quatro pesquisados concordaram com a frase "Reduzir imposto é importante, mas não urgente". Apenas 15,5% discordaram. Outros 8,3% nem concordaram nem discordaram.
As respostas à pergunta sobre direitos humanos também surpreenderam a pesquisadora. Para 62,4%, os direitos humanos devem valer para todos, incluindo bandidos. A ideia segundo a qual "não devem valer para bandidos" teve adesão de 33,8%.
Acostumado a lidar com levantamentos desse tipo, Mauricio Moura chama a atenção para dois pontos em que ele detecta "evolução" no pensamento médio dos brasileiros.
O primeiro é um aumento notável no apoio às políticas de cotas raciais em universidades públicas. Conforme a pesquisa recém-concluída, 57,2% são favoráveis a esse tipo de medida, 39,2% são contra. "Dez anos atrás, só um terço da população defendia cotas desse tipo. Houve uma rápida inversão nesse tema", diz.
O segundo é o apoio majoritário às políticas que representam direitos para homossexuais. É um padrão que ficou claro em mais de uma questão. O entendimento segundo o qual pessoas do mesmo sexo têm direito de se casar recebeu adesão de 65,5% dos brasileiros. A opção oposta, de negação dessa possibilidade, foi apontada por 29,7%.
Tendência parecida foi observada numa pergunta sobre adoção de crianças por parte de casais formados por pessoas do mesmo sexo. Conforme a pesquisa, 62,4% reconheceram esse direito. Os contrários somaram 34,6%.
Um resultado visto como positivo por Moura foi o que mostrou rejeição à ideia de "salvador da pátria" para o Brasil. Para 72,8%, isso não existe. A posição oposta foi defendida por apenas 16%.
"O populismo sempre foi um tema de muita ressonância e o Brasil já viveu experiência de político que se apresentou como 'salvador da pátria'", disse, sem citar nomes. "Mas na pesquisa, ainda é possível ver resquício disso na forte adesão à frase 'bandido bom é bandido morto'. Indica que o tema segurança será muito forte em 2018", conclui.
Fonte: Valor Econômico (17/11/17)

Liberalismo vai além do livre mercado (Fernando Abrucio)

O mercado financeiro está em polvorosa com a eleição de 2018. Depois do desastre da política econômica da presidente Dilma Rousseff, é possível até entender esse sentimento, o que se soma ao costumeiro exagero derivado das apostas entre os agentes. O problema começa quando se adota uma perspectiva míope, segundo a qual só vale olhar para as propostas econômicas dos candidatos, esquecendo-se de todo o resto das ideias - ou da falta delas. Por essa via, já tem gente no mercado que começa a achar palatável a candidatura do deputado Bolsonaro à Presidência da República. Tal postura é a falência do liberalismo moderno, baseado em valores e estudos acadêmicos.
Dois aspectos deveriam levar a uma reflexão mais profunda por parte do mercado financeiro. O primeiro deles diz respeito a que tipo de liberalismo se quer adotar como bússola das decisões. O segundo ponto se refere às ideias de Bolsonaro e sua trajetória, pois sua candidatura representará uma visão de mundo e um estilo de se fazer política que vão guiar suas propostas econômicas.
O liberalismo, em um sentido mais geral, é uma corrente política que defende a liberdade como principal valor humano. Se bem protegida e expandida, a liberdade teria efeitos positivos sobre vários campos da vida social, inclusive a economia. Claro que a partir desse grande guarda-chuva há divisões dentro do pensamento liberal. Sugiro a leitura do livro "O Liberalismo: Antigo e Moderno", de José Guilherme Merquior, para quem quiser conhecer melhor toda essa história.
Mas não basta ficar no terreno das ideias. É preciso analisar de que maneira as concepções liberais deram certo, ajudando no desenvolvimento das nações. Obviamente que a evolução dos países mais desenvolvidos não se deveu apenas ao liberalismo, pois várias correntes de pensamento contribuíram para isso. De todo modo, certas concepções liberais, sozinhas ou na junção com outros ideários, foram importantes para produzir sucessos políticos, econômicos e sociais.
Para garantir a liberdade, é preciso, antes de mais nada, defender os direitos civis. Países que violam regularmente tais liberdades têm maior dificuldade de se desenvolver. É claro que episódios negativos nesse campo podem ocorrer, e nesse momento a visão mais liberal de mundo têm de aparecer. Até o ex-presidente americano George W. Bush lembrou disso ao criticar firmemente às loucuras de Donald Trump no campo da imigração e dos direitos humanos, que podem condenar o país mais desenvolvido do mundo a decair no panteão das nações.
Correntes liberais defendem a diversidade de ideias e o estímulo à criatividade, como fazia John Stuart Mill, como elementos essenciais para uma sociedade mais livre e melhor. Não por acaso, as grandes inovações científicas atuais vêm do Vale do Silício e não do Meio-Oeste americano. Nesta linha de liberalismo, ambientes que atrapalhem a livre circulação de ideias, inclusive no campo artístico, são obstáculos para o desenvolvimento.
A liberdade política, o pluralismo de ideias e a possibilidade de resolver os conflitos por meio do diálogo e por uma via pacífica são valores caros ao liberalismo que deu certo, capaz de ser influente e frutificar em nações hoje democráticas e prósperas. Muitos podem lembrar que Milton Friedman e Ludwig Von Mises, dois autores com base liberal, defenderam a ditadura chilena, dizendo que ela primeiro criaria liberdade econômica e depois o resto viria. É bom ressaltar que eles disseram isso em plena Guerra Fria, quando os dois lados justificavam qualquer coisa (muitas besteiras, aliás) em nome da derrota do outro polo - e muitos defensores do socialismo fizeram a mesma coisa, quando não disseram bobagens ainda maiores.
Olhando para a história, sabe-se que regimes autoritários não produzem democracias como consequência imediata de sua natureza. No Chile, o que tornou o país melhor foi a democracia, que foi capaz de acabar com o ataque oficial aos direitos humanos, conseguiu lidar com as divisões ideológicas do país, aperfeiçoou o aparelho do Estado, reduziu as desigualdades com políticas públicas mais universais e debatidas publicamente, e fez tudo isso sem precisar começar do zero, aprendendo democraticamente com as coisas que estavam no caminho certo. Tudo isso regado com bom liberalismo, abandonando o modelo autoritário de Friedman e Von Mises.
Mesmo do ponto de vista econômico, o melhor do liberalismo não é uma mera defesa do livre mercado. Aliás, isso é válido desde Adam Smith, que deveria ser relido, principalmente "Teoria dos Sentimentos Morais", um livro brilhante. A ciência econômica, inclusive a visão mais rotulada como "mainstream", há décadas mostra que regulações estatais são fundamentais para criar condições para o desenvolvimento e combater as externalidades negativas produzidas pelas trocas mercantis. Nessa linha, a regulação bancária, políticas que busquem aumentar a igualdade no ponto de partida - como a educação - e a defesa do meio ambiente (e das inovações tecnológicas vinculadas a esse tema) são questões que estão em qualquer receituário econômico de um liberalismo dito moderno, presente nos principais departamentos de economia das melhores universidades do mundo.
Claro que muitas dessas ideias liberais atuais se misturaram com outras propostas, aprenderam com outras escolas de pensamento, mas é isso que estava nas origens desse pensamento, particularmente na vertente britânica: a liberdade deve ser um instrumento para aprender, de forma pragmática, os melhores caminhos para o desenvolvimento individual e das nações.
O que o deputado Jair Bolsonaro tem a ver com o ideário liberal construído e experimentado nos países democráticos e desenvolvidos? Nada. Sua história é o inverso disso tudo. Defendeu o regime militar e foi contra a investigação de crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura, inclusive exaltando a figura de um conhecido torturador. Já propôs o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que considerava um notório comunista. Criticou os quilombolas e sua diversidade, do mesmo modo que por diversas vezes demonstrou homofobia - num dos casos, já perdeu na Justiça. Defendeu a castração química de estupradores, embora tenha dito a uma deputada que ela não merecia ser estuprada, o que demonstra uma visão machista indesculpável em pleno século XXI. Em suma, as visões de Bolsonaro estão mais para o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, que choca a comunidade internacional atacando os direitos humanos, do que para a de um liberal autêntico.
Para os que pensam apenas nas razões do mercado, é bom lembrar que o desrespeito a direitos civis, políticos e sociais tem custos econômicos. Um presidente que desrespeite as mulheres e minorias constantemente fará com que o pais perca investimentos de multinacionais, que cada vez mais levam esses temas em consideração. Um governo que defenda uma visão beligerante da política piorará nossas relações internacionais - vide o que está ocorrendo com Trump - e terá enorme dificuldades de governabilidade interna. Na verdade, a vitória de alguém com ideário tão próximo do autoritarismo como Bolsonaro só exacerbará a polarização que tomou conta do país nos últimos anos. E realço algo fundamental que os mercados financeiros talvez não percebam: sem sair dessa polarização e resolver minimamente as questões de desigualdade, o Brasil não voltará aos trilhos do desenvolvimento.
As promessas de liberalismo econômico de Bolsonaro não se coadunam com as suas outras ideias e com a sua trajetória. Para que ele seja confiável em relação à economia e a tudo que possa afetá-la, ele terá que fazer um mea culpa de seu passado e reordenar o restante de seu pensamento. Isso me parece pouco provável, porque o bolsonarismo está intimamente ligado com uma parcela de eleitores nos quais predomina uma visão autoritária de mundo, bem diferente do concepção liberal-democrática que ancora o sucesso dos países desenvolvidos.
Alguém do mercado poderia sugerir que Bolsonaro faça a sua "Carta aos Brasileiros", como Lula fez em 2002. Mas o paralelo não se sustenta. O petismo, naquele instante, caminhava para o centro em todo o seu ideário, além de ter então governado Estados e municípios, mostrando compromissos com a democracia. O bolsonarismo é uma aventura populista e autoritária, sem suporte partidário ou social realmente comprometido com a visão liberal-democrática.
Tudo o que não precisamos, nesse momento, é de extremismos, tanto piores quanto mais procurarem nos enganar. A estratégia bolsonarista é, de um lado, trazer palavras doces ao mercado, mas, de outro, montar um discurso baseado no porrete autoritário do poder para o povão. Bolsonaro quer ser o novo Jânio Quadros, o da eleição de 1960, que de manhã falava com os empresários, à tarde ia até a Faculdade de Direito da USP conquistar os jovens progressistas, e à noite discursava na Vila Maria fazendo promessas populistas ao lumpesinato e propunha uma visão moralista aos conservadores. Jânio foi eleito, e não se esqueçam qual foi o resultado disso.
Fonte: Valor Econômico (17/11/17)

Privilégios vs. direitos (José de Souza Martins)

Numa sociedade em que um número significativo de pessoas conserva ou reivindica privilégios próprios do chamado Antigo Regime, fica difícil convencer quem vive do suor do próprio rosto de que a reformulação de direitos trabalhistas que os limitam constitui justa medida de correção de anomalias sociais. Ou que a salvação da economia, que carrega embutidas graves injustiças sociais, constitua o presente de Papai Noel, de 2017, para aqueles que hoje vivem na incerteza da busca de emprego.
O que é bom para a economia e o lucro não é necessariamente bom para o cidadão. Sem o justo equilíbrio entre a remuneração do capital e a remuneração do trabalho, todos perdem. Entre nós, os direitos sociais tendem a ser a migalha que sobra de privilégios que tem precedência em relação a eles.
Quando uma ministra de Estado, cujos antepassados foram, provavelmente, escravos e se considera escrava por ter-lhe a lei tolhido o direito de acumular vencimentos que chegariam a R$ 60 mil por mês, não há como não pensar em quem ganha salário mínimo, preto, pardo ou branco. Alguém que sequer pode recorrer aos tribunais para defender-se da perversidade do ganho insuficiente para a sobrevivência decente da família.
Quando membros do Judiciário reivindicam "ajuda" para mudar de casa ou para pagar a cara educação dos filhos, não há como não pensar em quem mal consegue morar ou naqueles cujos filhos carecem de uma educação que os emancipe do cativeiro de insuficiências que os atam ao pelourinho da inferioridade social.
Quando membros do Legislativo, que ganham exageradamente bem, tem ainda o descabido privilégio do confortável apartamento funcional, não há como não pensar nos barracos das favelas e nos cortiços em que centenas de milhares de pessoas mal sobrevivem. Quando vemos políticos de origem nobre e também os de origem pobre agarrados à função eletiva, como se fosse ela um direito de nascença, não há como não desanimar. Aqui, nem mesmo há diferença entre direita e esquerda no apego aos privilégios do poder.
Tentemos entender o que nos trouxe até aqui: o presidente do Conselho de Ministros do Império, João Alfredo, do Partido Conservador, colocou diante da princesa Isabel, no dia 13 de maio de 1888, para que a assinasse, a Lei nº 3.353, a Lei Áurea, uma lei de apenas dois artigos, simples e diretos: "Art. 1º: É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2º: Revogam-se as disposições em contrário". O poeta paulista Paulo Eiró, que morreu no Hospício de Alienados da Várzea do Carmo, cujas ruínas ainda existem no parque Dom Pedro II, deplorou que a proclamação da Independência tivesse sido um ato incompleto: não proclamou o fim da escravidão. Já a proclamação da abolição da escravatura não proclamou o fim dos privilégios estamentais dos bem-nascidos. Ao contrário, a realidade peculiar do país estendeu-os aos malnascidos, mas espertos. Quase tudo neste país é incompleto, inacabado, insuficiente.
Falta-nos, portanto, uma lei: "Art. 1º: Ficam abolidos todos os privilégios no Brasil. Art. 2º: A vida de todos os brasileiros será regida pelo Direito. Art. 3º: Todos os brasileiros são iguais perante a lei. Não haverá brasileiros mais iguais do que os outros. Art. 4º: Revogam-se já as disposições em contrário".
A lei ainda não existe porque somos um povo manso, orientado por uma concepção carneiril da política e da sujeição a quem manda. Nossas lutas não são políticas. São pré-políticas, como as define Eric Hobsbawm. Conseguimos gritar, xingar, tomar as ruas, depredar, invadir, mas não conseguimos transformar e superar, criar barreiras propriamente políticas e civilizadas às iniquidades que nos vitimam, criar e valorizar instituições por meio das quais poderíamos assegurar nossa representação política autêntica.
Temos o direito de voto, mas não raramente votamos para que os votados não nos representem, abdicamos da cidadania. Para que se representem a si mesmos, suas famílias, suas corporações, suas religiões, e não os cidadãos. Reforçar o caráter oligárquico do sistema para depois bajular os que o personificam é sabidamente um resquício da escravidão e dos regimes de servidão a ela associados.
Não estou falando ainda da escandalosa corrupção política que destroçou as instituições, que corrompeu o caráter não só de políticos, mas também de eleitores. Quem vota em corrupto é tão corrupto quanto o votado porque legitima a desmoralização da regra republicana do voto como ação de constituição da representação política. Aqui, esse voto representa a renúncia ao direito de ser representado na estrutura de poder da sociedade de direitos em nome do cabresto da sociedade de privilégios.
Fonte: Valor Econômico (17/11/17)













quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Insanos e obcecados (Fernando Limongi)

Recuperado das dores que o impediram de continuar colaborando com o presidente Michel Temer, leve e solto, o senador José Serra deu para fazer graça. Jantando com correligionários, diagnosticou: o PSDB necessita de tratamento psicológico. Faltou fornecer o perfil do profissional: especialista em suicidas e obcecados pelo poder. Pois é disto que se trata. Serra, Aécio e outros tantos tucanos vêm fazendo das tripas o coração para destruir o partido. Só pensam em si e teimam em não aceitar o óbvio. A hora de pendurar as respectivas chuteiras já passou.
Serra recobrou suas energias e ambições. Os convivas reunidos na cantina foram informados que a Lava-Jato "perdeu ritmo". Tradução: o senador já conta com a garantia de que sairá ileso das graves acusações - a de ter organizado um cartel entre as empreiteiras e a de manter contas na Suíça - que pesam sobre suas vértebras combalidas.
Com certeza, a manifestação recente da Procuradora-Geral da República alimentou a segurança do senador. Raquel Dodge afirmou que o repasse de R$ 500 mil da Odebrecht ao ministro Aloysio Nunes, citado com Serra nesta investigação, é incontroverso. Esclareceu, contudo, que restam dúvidas sobre a 'origem e finalidade' da transferência. Generosa e apaziguadora, a procuradora acrescentou que os dois não têm com o que temer, pois a combinação entre a data do ocorrido e a idade de ambos garante a prescrição da pena. São, digamos assim, delitos provectos.
Há uma razão adicional para a tranquilidade dos tucanos. O relator do inquérito no Supremo Tribunal Federal não é outro senão o ubíquo ministro Gilmar Mendes. Sempre que tem gente do PSDB envolvida, misteriosa e aleatoriamente, a escolha recai sobre Gilmar. Clarividente e imparcial, o ministro presidente não viu razões para se declarar impedido. O fato de Gilmar ter aberto as portas de sua casa para comemorar os 75 anos de Serra, está claro, não demonstra proximidade entre os dois.
A Lava-Jato, de fato, perdeu seu ímpeto. O governo está cuidando disto. Eliseu Padilha, cansado de esperar que o ministro Torquato Jardim encontrasse o momento oportuno para fazer a intervenção que lhe rendeu o cargo, chamou a si a tarefa e promoveu a troca da chefia da Política Federal. O nome do indicado surpreendeu a todos, mas basta olhar os citados como possíveis responsáveis pela indicação - Augusto Nardes, José Sarney e Gilmar Mendes- para saber que apito vai tocar.
Curitiba não se manifestou sobre a troca. A ficha dos integrantes da força-tarefa já deve ter caído. Sequer cogitaram recorrer à bravata usual, a renúncia. O pedido seria aceito prontamente. Faz tempo que Moro e colegas perderam a capacidade de usar o apoio popular à operação. Moro, o estrategista da turma, talvez já se tenha dado conta que em lugar de usar, foi usado pela 'opinião pública esclarecida'. As investigações já não contam com o apoio generalizado com que contavam tempos atrás.
Basta ler os editoriais de "O Estado de S. Paulo" para ter claro que a cruzada moralizante chegou ao fim. Nesta semana, por exemplo, o jornal comemorou o arquivamento de processos contra governadores. Significativamente, desqualificou os depoimentos do ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa, sem os quais, como sabem todos que conhecem a história da Lava-Jato, a operação não teria saído do papel. Agora, com Temer no poder, delações apenas "colaboram para a disseminação da ideia de que o país está engolfado pela corrupção, que é o que pretendem justamente os justiceiros que as produzem". A conclusão é um primor: "Seu [delação] único efeito concreto é a desmoralização da luta contra os verdadeiros corruptos".
Por isso mesmo, porque pode dar como certo que não está entre os 'verdadeiros corruptos', Serra arregaçou as mangas e anunciou que vai à luta. Declarou que se sente renovado, com disposição para enfrentar as eleições do ano que vem. Não tem claro, contudo, qual cargo disputará, pois ainda "não possui elementos para poder decidir".
Aécio Neves, não sem antes fazer questão de estender o sacrossanto direito de se agarrar a cargos à ministra Luislinda Valois, com quem fez questão de ser fotografado, se apressou em fornecer um dos 'elementos' de que Serra carecia: o controle sobre o partido.
A destituição de Tasso Jereissati vai muito além do desembarque do governo. O que está em jogo é a candidatura do partido à Presidência em 2018. O presidente interino do partido influencia o sucessor de Aécio e este, por seu turno, caberá montar a convenção do partido que escolhe o candidato à Presidência.
O interventor nomeado por Aécio é ninguém menos que Alberto Goldman, que por acaso é próximo do senador José Serra e do ministro Aloysio Nunes. Entrevistado, o ministro declarou que a manobra de Aécio foi "legítima estatuariamente e correta do ponto de vista político". Disse ainda que a intervenção é a melhor forma de impedir que Lula vença a eleição de 2018.
Tasso já declarou publicamente que seu candidato à Presidência da República é o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin. Não por acaso, Alckmin, acusou o golpe: "Eu não fui consultado. E, se fosse, teria sido contra, porque não contribui para a união do partido".
Já João Doria, sempre pronto a mostrar sua lealdade e firmeza de princípios, viu 'justiça' na ação de Aécio. Sequer enrubesceu ao apoiar o velho comunista que ontem queria ver vestido com o pijama listrado dos aposentados. O novo e o velho PSDB se confraternizaram.
Serra está certo. Isto é coisa de louco. Só um terapeuta dos bons para entender a 'tucanada'. O problema, contudo, não é a proverbial incapacidade do partido em tomar decisões. Ao contrário. Desde que optou por trafegar pela ponte armada por Temer e companhia, o PSDB tomou e vem tomando decisões. As erradas. As piores. Flerta seriamente com o suicídio eleitoral.
Fonte: Valor Econômico (13/11/17)

Pensando o impensável (Bolívar Lamounier)

São raros, em qualquer país, os momentos de real concórdia. Em geral, o que se tem é uma paz aceitável, e por vezes precária. As nações menos felizes passam por solavancos sérios e só com muito esforço conseguem evitar que novos solavancos lhes destruam por muito tempo a perspectiva da felicidade.
O que me deu coragem para encetar tal divagação foi a recuperação econômica, por enquanto tênue, e os prospectos algo mais animadores que vão ganhando corpo para 2018. Com os poderosos instrumentos de análise de que dispõem, os economistas são em média mais otimistas. Acreditam que a recuperação reaproxima os políticos, desarma os espíritos e repõe o país nos trilhos. Torço para que estejam certos, mas vejo certa utilidade em pensar o impensável. Imaginar, como exercício, que as raízes dos nossos problemas possam ser mais complexas e profundas.
Essas ideias soltas me vieram à mente como subproduto de uma reflexão sobre nossos últimos 25 anos, intercalada com premonições sobre os próximos cinco ou dez e com uma avaliação do estado atual dos nossos partidos políticos.
O governo Collor, os desacertos iniciais do governo Itamar Franco e a hiperinflação batendo às nossas portas poderiam ter sido um solavanco considerável. Mas conseguimos revertê-lo, e fizemos melhor, preparamos o terreno para reformas econômicas importantes e para uma alternância pacífica no governo: a ascensão de um ex-operário e de um partido ainda imbuído de certo ranço revolucionário. Se tivéssemos falhado naquele momento, é óbvio que a sequência previsível dos acontecimentos poderia ter sido extremamente grave. Teríamos, desde logo, um segundo solavanco – uma polarização política acirrada, com reflexos negativos na economia e assim sucessivamente. Isso não aconteceu lá atrás, mas aconteceu há coisa de três ou quatro anos, arrastando o País para a recessão e para uma forte elevação do desemprego.
Depois – e temo que esta seja a etapa em que agora nos encontramos –, uma situação de anomia, de desesperança e descrença generalizada. Reverter tal situação é possível, mas é mais difícil despolarizar do que polarizar. E depois da anomia, o que pode vir?
Ousando pensar o impensável, podemos imaginar que a anomia desarmada se arma, ou seja, que se transforma numa sociedade sem pontos confiáveis de poder, sem instituições efetivas, sem convergência no plano dos valores. Em permanente desordem, vale dizer, sem uma ordem normativa digna do nome. A isso se pode apropriadamente denominar pretorianismo.
Como foi que passamos da convergência dos anos 1990 para a polarização dos anos Lula e dela para a anomia dos anos Dilma e Temer? Permitam-me inserir aqui uma observação sobre o eleitorado tucano. Uma parte dele se deixou levar por uma raiva esdrúxula em relação a Fernando Henrique Cardoso, pondo a fermentar dentro do próprio PSDB um começo de anomia. Tal raiva adveio de uma percepção caolha da forma como ele conduziu a transição para o governo Lula. Os que a adotaram se enfureceram com a postura de Fernando Henrique quando da transição de governo. Seu jeito cortês e sorridente seria a “prova” de que ele teria traído José Serra e ali estava a festejar a vitória de seu “amigo de esquerda”. Não lhes passou (passa) pela cabeça que Fernando Henrique, como chefe de Estado, estava a descortinar um horizonte mais amplo, vendo com orgulho o nosso país realizar uma transição difícil, mas civilizada e ordeira.
Outra onda de rancor viria em 2005-2006. Sendo Palocci o ministro da Fazenda, o PSDB preocupou-se em preservar a normalidade econômica. Para a parcela enfurecida do tucanato, tratava-se de outra traição. Eram os dirigentes do partido expondo sua natureza “melancia”, verde por fora e vermelha por dentro. Correta, para tal parcela, seria uma postura do tipo olho por olho, dente por dente. Em 2003, marco zero de sua visão polarizadora, Lula cunhara a expressão “herança maldita” – a mais grosseira agressão de um presidente a seu antecessor em nossa História republicana. O “mensalão” seria a oportunidade de lhe dar o troco, rompendo-lhe a jugular.
No segundo mandato, Lula, se quisesse, ou se soubesse, poderia ter diluído a radicalização, mas essa, notoriamente, não era (não é) sua visão de política, nem combinaria com seu projeto de poder de longo prazo. O que ele fez, como sabemos, foi dobrar a meta: incumbiu Dilma Rousseff de tomar conta da cadeira até sua volta triunfal em 2014. Não percebeu que a sra. Rousseff nutria a ilusão de se tornar uma dama de ferro do nacional-desenvolvimentismo.
Alimentando-se de tal fantasia, ela produziu uma recessão de quase três anos. Para piorar as coisas, o escândalo da Petrobrás e a sem-cerimônia das empreiteiras atingiram em cheio os três principais partidos de sua base de sustentação: PT, PMDB e PP. Trescalando maus odores por toda parte em Brasília, a linha de defesa malandramente concebida por Lula – “somos todos iguais” – tornou-se realidade. A sociedade adotou-a como uma descrição fiel de nossa vida política – de todos os partidos e lideranças – e assim uma espessa camada de anomia se superpôs à latente polarização.
Como reverter tal situação?
Por ora temos um cronograma – as eleições de 2018 –, mas quase nada em termos de cenário, enredo e elenco. Engana-se quem supõe que esse nó possa ser desatado sem alguma convergência e uma participação razoável dos partidos políticos. Como operar tal milagre? Difícil sugerir algum caminho, até porque, por enquanto, o que vemos é o outrora presidenciável Aécio Neves se comportando como um coronel de priscas eras, querendo o PSDB apenas como um partido que possa chamar de seu.
Fonte: O Estado de São Paulo (12/11/17)

quarta-feira, 8 de novembro de 2017

A política, os feitiços e os feiticeiros (Luiz Werneck Vianna)

Qual o significado da campanha sem quartel para a derrubada do governo Temer vinda de círculos da direita em convergência com setores que reivindicam uma identidade à esquerda do espectro político? Certamente deve haver um. Mas qual? A esta altura parece claro que a via parlamentar não é propícia a esses propósitos, dado que o governo dispõe de folgada maioria nas duas Casas congressuais.
De outra parte, as ruas têm feito ouvidos moucos, ao menos até então, às incitações a manifestações de protesto contra o governo que lhes vêm dos meios de comunicação, em particular de sua rede mais poderosa e de ação mais capilar sobre a opinião pública, mantendo-se silenciosas. A intervenção militar, uma possibilidade teórica no quadro caótico que aí está, a quem serviria? Além de serem poucos os que a preconizam e de os militares não a desejarem, a experiência de 1964 deixou patente que as elites políticas que atuaram em favor de uma intervenção desse tipo foram logo decapitadas ou cooptadas pelo regime militar. Tais lições amargas não terão sido esquecidas, mesmo pelos que ora flertam com ela.
Então, o que é isso que temos pela frente? Dado que não é de todo plausível a hipótese de que a sociedade tenha ensandecido, como se faz demonstrar na vida cotidiana dos brasileiros que tocam sua vida no trabalho e nos estudos, em sua imensa maioria à margem de uma cena política que avaliam estar fora do seu raio de influência, o charivari nacional que nos atordoa tem sua fonte original na própria política e em suas instituições e atende pelo nome de sucessão presidencial.
Faz parte da nossa tradição republicana que as sucessões presidenciais, incluídas as que tiveram seu curso no regime militar, importem em crise, variando com as circunstâncias uma maior ou menor mobilização social suscitada por elas. Foi assim na sucessão de 1930, que pôs a nu, mais do que uma crise conjuntural, uma crise orgânica da ordem burguesa – para usar as categorias de Gramsci, um fino estudioso das crises políticas –, manifesta nas rebeliões tenentistas dos anos 20 e culminando com a Revolução de 1930, que importou a ultrapassagem do sistema agrário-exportador pelo urbano-industrial.
Igualmente na de 1955 – esta, de fato, apenas uma crise conjuntural –, assim como nas vésperas da sucessão de 1965, que prometia levar à vitória uma coalizão de centro-esquerda portadora de um programa de governo nacional popular, cujo desenlace dramático se efetivou no golpe de 1964 – outra crise de natureza orgânica. O regime militar que então se instalou veio a cumprir um programa de plena imposição do capitalismo no País, atraindo para a sua órbita o mundo agrário com políticas públicas que vieram a favorecer a emergência do agronegócio em regiões de conflitos por terra no hinterland. Fechavam-se, assim, as possibilidades, então presentes, para uma reiteração dos casos clássicos das revoluções no Terceiro Mundo que contaram com a presença decisiva do campesinato e dos trabalhadores do campo.
Nesta sucessão de 2018 não há fumaças no ar de crises orgânicas, além de estarem caindo no vazio as ordens de comando que nos chegam sem parar dos meios de comunicação que reclamam a imediata derrubada por fas ou nefas do governo constitucional. No caso, aliás, chama a atenção o fato esquisito de que a agenda da direita dita moderna, que tem sua ponta de lança em empresas de comunicação, guarda similitudes em vários aspectos com a governamental. Ademais, como notório, os atuais quadros dirigentes da economia têm sua origem no que se designa como o mercado e contam com sua confiança.
A referência ao texto de Marx sobre o 18 Brumário é batida, mas necessária, até por sua comicidade. Na França da Segunda República, duas dinastias, a dos Bourbons e a de Orleans, porfiavam em favor do retorno ao regime monárquico, mas como somente uma delas poderia beneficiar-se dessa troca de regime, acabaram tendo de se comportar como fiadoras da República de 1848 – que ambas odiavam –, enquanto uma delas não lograsse impor-se à facção rival. Desse imbróglio, como se sabe, não resultou nem República nem monarquia, mas a ordem imperial de Luís Bonaparte.
Aqui, nesta miserável conjuntura em que se vive, também os extremos que se repelem reciprocamente – a direita moderna e o PT e seus satélites – se veem compelidos a ações convergentes a fim de que na liça da sucessão, defenestrado o governo Temer, um quadro do PMDB de históricas relações com a nossa tradição republicana, só reste caminho para eles.
Contudo, como paira sobre a cabeça de um deles a ameaça real de o Judiciário tornar inviável sua candidatura, a direita dita moderna descortinaria à sua frente uma larga via aberta para seu velho projeto de se assenhorear plenamente do Estado, a fim de redesenhar a seu serviço as relações entre ele e a sociedade. Restaria o problema difícil, talvez insolúvel, de encontrar um candidato com o perfil adequado para a missão.
Mas há método nesta loucura em que estamos imersos, não estamos inteiramente à deriva sob o domínio dos fatos, pois há quem tenha a pretensão de dirigi-los. Todavia a arrogância do ator de querer submeter o destino a seus desígnios pode – como entre os gregos, que a denominavam húbris – ser considerada como um desafio aos deuses passível de punição, destinando a um outro, que se mantém em serena prudência em meio ao tumulto dessas paixões desvairadas, mesmo que não o queira, o objeto de suas ambições.
Ainda há tempo para uma ação política racional que interrompa essa corrida às cegas rumo ao abismo, sacrificando nossa incipiente democracia, que tanto nos custou, às ambições dos que perderam o fio terra com o mundo real e se entregaram às artes da feitiçaria política, esquecidos de que feitiços podem virar-se contra os feiticeiros.
Fonte: O Estado de São Paulo (05/11/17)