domingo, 19 de novembro de 2017

Liberalismo vai além do livre mercado (Fernando Abrucio)

O mercado financeiro está em polvorosa com a eleição de 2018. Depois do desastre da política econômica da presidente Dilma Rousseff, é possível até entender esse sentimento, o que se soma ao costumeiro exagero derivado das apostas entre os agentes. O problema começa quando se adota uma perspectiva míope, segundo a qual só vale olhar para as propostas econômicas dos candidatos, esquecendo-se de todo o resto das ideias - ou da falta delas. Por essa via, já tem gente no mercado que começa a achar palatável a candidatura do deputado Bolsonaro à Presidência da República. Tal postura é a falência do liberalismo moderno, baseado em valores e estudos acadêmicos.
Dois aspectos deveriam levar a uma reflexão mais profunda por parte do mercado financeiro. O primeiro deles diz respeito a que tipo de liberalismo se quer adotar como bússola das decisões. O segundo ponto se refere às ideias de Bolsonaro e sua trajetória, pois sua candidatura representará uma visão de mundo e um estilo de se fazer política que vão guiar suas propostas econômicas.
O liberalismo, em um sentido mais geral, é uma corrente política que defende a liberdade como principal valor humano. Se bem protegida e expandida, a liberdade teria efeitos positivos sobre vários campos da vida social, inclusive a economia. Claro que a partir desse grande guarda-chuva há divisões dentro do pensamento liberal. Sugiro a leitura do livro "O Liberalismo: Antigo e Moderno", de José Guilherme Merquior, para quem quiser conhecer melhor toda essa história.
Mas não basta ficar no terreno das ideias. É preciso analisar de que maneira as concepções liberais deram certo, ajudando no desenvolvimento das nações. Obviamente que a evolução dos países mais desenvolvidos não se deveu apenas ao liberalismo, pois várias correntes de pensamento contribuíram para isso. De todo modo, certas concepções liberais, sozinhas ou na junção com outros ideários, foram importantes para produzir sucessos políticos, econômicos e sociais.
Para garantir a liberdade, é preciso, antes de mais nada, defender os direitos civis. Países que violam regularmente tais liberdades têm maior dificuldade de se desenvolver. É claro que episódios negativos nesse campo podem ocorrer, e nesse momento a visão mais liberal de mundo têm de aparecer. Até o ex-presidente americano George W. Bush lembrou disso ao criticar firmemente às loucuras de Donald Trump no campo da imigração e dos direitos humanos, que podem condenar o país mais desenvolvido do mundo a decair no panteão das nações.
Correntes liberais defendem a diversidade de ideias e o estímulo à criatividade, como fazia John Stuart Mill, como elementos essenciais para uma sociedade mais livre e melhor. Não por acaso, as grandes inovações científicas atuais vêm do Vale do Silício e não do Meio-Oeste americano. Nesta linha de liberalismo, ambientes que atrapalhem a livre circulação de ideias, inclusive no campo artístico, são obstáculos para o desenvolvimento.
A liberdade política, o pluralismo de ideias e a possibilidade de resolver os conflitos por meio do diálogo e por uma via pacífica são valores caros ao liberalismo que deu certo, capaz de ser influente e frutificar em nações hoje democráticas e prósperas. Muitos podem lembrar que Milton Friedman e Ludwig Von Mises, dois autores com base liberal, defenderam a ditadura chilena, dizendo que ela primeiro criaria liberdade econômica e depois o resto viria. É bom ressaltar que eles disseram isso em plena Guerra Fria, quando os dois lados justificavam qualquer coisa (muitas besteiras, aliás) em nome da derrota do outro polo - e muitos defensores do socialismo fizeram a mesma coisa, quando não disseram bobagens ainda maiores.
Olhando para a história, sabe-se que regimes autoritários não produzem democracias como consequência imediata de sua natureza. No Chile, o que tornou o país melhor foi a democracia, que foi capaz de acabar com o ataque oficial aos direitos humanos, conseguiu lidar com as divisões ideológicas do país, aperfeiçoou o aparelho do Estado, reduziu as desigualdades com políticas públicas mais universais e debatidas publicamente, e fez tudo isso sem precisar começar do zero, aprendendo democraticamente com as coisas que estavam no caminho certo. Tudo isso regado com bom liberalismo, abandonando o modelo autoritário de Friedman e Von Mises.
Mesmo do ponto de vista econômico, o melhor do liberalismo não é uma mera defesa do livre mercado. Aliás, isso é válido desde Adam Smith, que deveria ser relido, principalmente "Teoria dos Sentimentos Morais", um livro brilhante. A ciência econômica, inclusive a visão mais rotulada como "mainstream", há décadas mostra que regulações estatais são fundamentais para criar condições para o desenvolvimento e combater as externalidades negativas produzidas pelas trocas mercantis. Nessa linha, a regulação bancária, políticas que busquem aumentar a igualdade no ponto de partida - como a educação - e a defesa do meio ambiente (e das inovações tecnológicas vinculadas a esse tema) são questões que estão em qualquer receituário econômico de um liberalismo dito moderno, presente nos principais departamentos de economia das melhores universidades do mundo.
Claro que muitas dessas ideias liberais atuais se misturaram com outras propostas, aprenderam com outras escolas de pensamento, mas é isso que estava nas origens desse pensamento, particularmente na vertente britânica: a liberdade deve ser um instrumento para aprender, de forma pragmática, os melhores caminhos para o desenvolvimento individual e das nações.
O que o deputado Jair Bolsonaro tem a ver com o ideário liberal construído e experimentado nos países democráticos e desenvolvidos? Nada. Sua história é o inverso disso tudo. Defendeu o regime militar e foi contra a investigação de crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura, inclusive exaltando a figura de um conhecido torturador. Já propôs o fuzilamento do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que considerava um notório comunista. Criticou os quilombolas e sua diversidade, do mesmo modo que por diversas vezes demonstrou homofobia - num dos casos, já perdeu na Justiça. Defendeu a castração química de estupradores, embora tenha dito a uma deputada que ela não merecia ser estuprada, o que demonstra uma visão machista indesculpável em pleno século XXI. Em suma, as visões de Bolsonaro estão mais para o presidente das Filipinas, Rodrigo Duterte, que choca a comunidade internacional atacando os direitos humanos, do que para a de um liberal autêntico.
Para os que pensam apenas nas razões do mercado, é bom lembrar que o desrespeito a direitos civis, políticos e sociais tem custos econômicos. Um presidente que desrespeite as mulheres e minorias constantemente fará com que o pais perca investimentos de multinacionais, que cada vez mais levam esses temas em consideração. Um governo que defenda uma visão beligerante da política piorará nossas relações internacionais - vide o que está ocorrendo com Trump - e terá enorme dificuldades de governabilidade interna. Na verdade, a vitória de alguém com ideário tão próximo do autoritarismo como Bolsonaro só exacerbará a polarização que tomou conta do país nos últimos anos. E realço algo fundamental que os mercados financeiros talvez não percebam: sem sair dessa polarização e resolver minimamente as questões de desigualdade, o Brasil não voltará aos trilhos do desenvolvimento.
As promessas de liberalismo econômico de Bolsonaro não se coadunam com as suas outras ideias e com a sua trajetória. Para que ele seja confiável em relação à economia e a tudo que possa afetá-la, ele terá que fazer um mea culpa de seu passado e reordenar o restante de seu pensamento. Isso me parece pouco provável, porque o bolsonarismo está intimamente ligado com uma parcela de eleitores nos quais predomina uma visão autoritária de mundo, bem diferente do concepção liberal-democrática que ancora o sucesso dos países desenvolvidos.
Alguém do mercado poderia sugerir que Bolsonaro faça a sua "Carta aos Brasileiros", como Lula fez em 2002. Mas o paralelo não se sustenta. O petismo, naquele instante, caminhava para o centro em todo o seu ideário, além de ter então governado Estados e municípios, mostrando compromissos com a democracia. O bolsonarismo é uma aventura populista e autoritária, sem suporte partidário ou social realmente comprometido com a visão liberal-democrática.
Tudo o que não precisamos, nesse momento, é de extremismos, tanto piores quanto mais procurarem nos enganar. A estratégia bolsonarista é, de um lado, trazer palavras doces ao mercado, mas, de outro, montar um discurso baseado no porrete autoritário do poder para o povão. Bolsonaro quer ser o novo Jânio Quadros, o da eleição de 1960, que de manhã falava com os empresários, à tarde ia até a Faculdade de Direito da USP conquistar os jovens progressistas, e à noite discursava na Vila Maria fazendo promessas populistas ao lumpesinato e propunha uma visão moralista aos conservadores. Jânio foi eleito, e não se esqueçam qual foi o resultado disso.
Fonte: Valor Econômico (17/11/17)

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