As ocupações começaram em São Paulo, no ano passado, contra a organização por ciclos proposta pelo governo; depois foram para o Rio de Janeiro, contra o sistema de avaliação do ensino, o Saerj. Em Goiás elas eram contra a parceria com as organizações sociais. Agora são contra a PEC 241 e a reforma do ensino médio, e se concentram no Paraná. O motivo vai mudando, mas o ambiente em que elas acontecem é sempre o mesmo: a rede pública. Na rede privada ninguém parece disposto a perder uma aula de matemática.
Nossos revolucionários de colégio público apresentam-se como um movimento de resistência. Ninguém expressou melhor essa imagem do que a estudante Ana Júlia Ribeiro na tribuna da Assembleia Legislativa do Paraná. Com a voz embargada, ela garante que o movimento é apartidário e que a preocupação é com as futuras gerações. É possível que seja verdade. Com mais de 1 milhão de views, no YouTube, quem diria que não?
De minha parte, vou na contramão. É quase sempre o que acontece quando os astros do politicamente correto se alinham. Me dá um mal-estar. A sensação de que essa mistura de ideologia e violência termina sempre do mesmo jeito. Na cena que vi nesta segunda-feira (31) em Brasília: os políticos em festa e a turma da periferia de Curitiba sem aula. Foi o que eu ouvi de um pai de aluno com ar de cachorro molhado, sem 10% do charme de Ana Júlia, perguntando para ninguém: “E quando eles vão recuperar os dias parados?”.
Minha interpretação é a seguinte: esta onda de ocupações de escolas é um exemplo do que o biólogo americano Garrett Hardin chamou de “tragédia dos comuns”. É o mesmo fenômeno que leva à poluição dos oceanos e ao desmatamento da Amazônia. Alguém vai lá e toma conta do espaço público, jogando lixo ou cortando árvores para fazer madeira e deixa a conta para todo mundo pagar.
Nas escolas públicas funciona mais ou menos do mesmo jeito. A turma tem uma ideia na cabeça: o combate à reforma do ensino médio, mas poderia ser o MBL a favor da privatização das escolas ou ainda todos contra o bruxo Voldemord, de Harry Potter. Não importa. O pessoal vai lá e ocupa um espaço público. Promove sua agenda, aparece no jornal, faz capa de revista. O prejuízo fica para todo mundo pagar. Prejuízo nos dias parados, na escola quebrada, na guerra que pode levar, em um situação extrema, à morte de um adolescente.
Quando a estudante Ana Júlia acusou os deputados de terem as “mãos sujas de sangue” pela morte do estudante Lucas era exatamente isso que ela estava fazendo. O movimento que ela representa criou o contexto no qual o adolescente perdeu sua vida. O “custo” de sua atitude, porém, é socializado para os deputados, para o “estado”, para todo mundo que der na telha da Ana Júlia.
Lucas Mota era um garoto tímido e boa-praça. Filho único da Monique, feita viúva muito jovem e dona de uma loja no Bairro Santa Felicidade, em Curitiba. Lucas não cometeu erro nenhum. Foi vítima de um “contexto”. Seu colega foi na cozinha da escola e pegou uma faca. A sala dos professores havia se transformado em alojamento da ocupação. Alguém podia se perguntar como uma coisa dessas pode acontecer em uma escola? Também me pergunto, ainda que seja inútil. Todo mundo sabe a resposta. É nossa tolerância ao delito e ao truque retórico que o justifica. A morte do Lucas é uma tragédia sem volta para Monique. Mas é apenas um “acidente” para a turma das ocupações. Um pequeno custo encaramos numa boa e logo esquecemos, enquanto Ana Júlia vira heroína no Facebook.
A pergunta relevante é por que diabos nossa sociedade tolera que escolas públicas sejam ocupadas por ativistas adolescentes e virem um campo de guerra? Por que aceitamos que a lógica banal da tragédia dos comuns se instale em nossos colégios e substitua o espaço regulado do dissenso democrático?
Não acho que a resposta seja fácil. Alguns dirão que é preciso ocupar escolas exatamente porque não há uma verdadeira democracia, no Brasil. Intuo que, para essas pessoas, uma verdadeira democracia seria aquela em que nem sequer seria cogitada uma proposta como a PEC 241. É possível. A democracia nunca é perfeita para quem já sabe das coisas.
Minha resposta vai por outro caminho. Intuo que, lá no fundo, nossa elite pensante tolera isto pela mesmíssima razão que o faz com a tragédia de nosso ensino público: a conta vai para os filhos dos outros. É inútil, mas gosto de me perguntar o que aconteceria se ocupações como estas, por qualquer razão que seja, ocorressem no colégio Bandeirantes, em São Paulo, ou no colégio São Bento, no Rio de Janeiro. A turma bacana perdendo aula, chupando “bala” de LSD na sala dos professores, pegando faca na cozinha do colégio.
Ok, é ridículo pensar nessas coisas. Escola privada tem dono, os pais pagam a conta, ficam em cima, e não demoraria meia hora para a polícia acabar com a bagunça. Não tem conta nem custo nenhum a ser socializado. Não tem essa da Ana Júlia perguntando “de quem é a escola?”, como se não soubesse que ela é de todos e não de quem é favor ou contra a PEC 241.
No fundo vem daí o mal-estar. Ao menos o meu mal-estar. A sensação do truque. Do país malandro que, parece, trata o “direito à ideologia” como um valor mais importante do que o direito à educação. Em que um debate democrático no Congresso seja aceito como justificativa para transformar espaços públicos em terra de ninguém. Que acha bacana quando um grupo de adolescentes entra numa escola e simplesmente interrompe na marra o ano letivo. Tudo de um jeito seletivo. Com a conta indo para os mais pobres, que não têm como se proteger da Ana Júlia e seu desejo de salvar o país da PEC 241.
Fonte: Época (02/11/16)
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