A nova lei eleitoral reduziu o peso do marketing político, seja por conta da diminuição do financiamento, seja em razão do encolhimento do horário eleitoral gratuito. Isso é uma boa notícia, depois de anos de campanhas milionárias e fantasiosas. Mas a qualidade do debate não melhorou. Ao contrário, a visão antipolítica, a busca de escândalos na vida pregressa dos candidatos e a apresentação de propostas demagógicas e mirabolantes dominaram a cena nas principais cidades do país.
Em termos ideais, as campanhas deveriam ser a antessala do que serão os futuros governos. Caso o debate eleitoral não esclareça razoavelmente o que será feito pelo eleito, o processo democrático sai enfraquecido. As atuais eleições municipais ocorreram sob um forte sentimento de renovação da política, só que a prática dos partidos e candidatos não apontou claramente para aonde iremos. Ao ímpeto de mudanças não foi incorporada uma reflexão sobre como melhorar a qualidade da classe política e, sobretudo, das políticas públicas.
Uma forma de antever o que poderá ser o futuro governo é analisar a trajetória dos candidatos, pois suas ideias têm de ter alguma relação com o que fizeram. Mas o exagero na personalização do debate pode mascarar a falta de propostas dos concorrentes. Em algumas disputas pelos país repetiu-se o mesmo roteiro: a busca de fatos insólitos, de episódios mal explicados, de frases infelizes (embora por vezes isoladas do contexto), de imagens e fotos comprometedoras. Tudo isso sempre esteve presente em alguma medida no jogo político. Porém, é visível o esforço de se concentrar apenas nisso, tornando a eleição uma forma de desmoralização do outro, muitas vezes por meio de baixarias, contribuindo para o aumento de uma rixa artificial, quando não da violência.
O excesso de críticas personalizadas presente na campanha das capitais esteve muito contaminado pela visão antipolítica que tomou conta do eleitor brasileiro. Aliás, se há um grande vencedor no atual pleito municipal é o discurso difuso contra os políticos. Foi assim que muitos ganharam ou chegaram ao segundo turno. Mas é preciso lembrar que essa postura não ajudará em nada na hora de governar.
Qualquer governante precisa fazer opções por tipos de políticas públicas. Isso já é fazer política, dado que está se definindo um rumo, entre os possíveis, para a coletividade. Além disso, é preciso dialogar com os diversos atores relevantes, como os vereadores, associações da sociedade civil, empresários, outros níveis de governo, entre os principais interlocutores. Novamente, o prefeito estará simplesmente fazendo política E se ele melhorar a gestão pública, mudando a prática corrente e adotando um novo modelo, também estará no terreno nas escolhas e mudanças políticas. Grandes estadistas, como Roosevelt e Adenauer, no plano internacional, ou JK e Vargas, no caso brasileiro, foram reformadores do Estado, o que lhes exigiu uma capacidade política extraordinária.
Em vez de reforçar a visão preconceituosa da antipolitica, os candidatos deveriam ter dito como fariam para mudar a situação atual. Seria preciso fugir da velha praga da demagogia, que nos assola desde o mundo antigo - como realçaram Aristóteles e Cícero. Todavia, o debate eleitoral aconteceu num período curto de tempo e foi baseado fundamentalmente em qualificações (ou desqualificações) pessoais.
A consequência disso foi que poucos foram os candidatos capazes de dizer claramente o que virá pela frente. Para começar, a maioria das prefeituras encontra-se numa péssima situação financeira. Nos próximos dois anos haverá, relativamente, bem menos recursos do que na década passada, ao passo que as demandas aumentarão mais, em razão da atual situação econômica. A recessão eleva a pressão por ações governamentais, porque o desemprego leva às famílias a buscarem mais os serviços de saúde e educação, já que não têm mais como pagar os congêneres privados. No fundo, devem crescer, no curto prazo, tanto a pobreza quanto a desigualdade, e o modelo político e constitucional brasileiro já não admite mais a "naturalização" dessa situação. O governante que não percebe isso, perde a legitimidade num curto espaço de tempo.
Seguindo essa linha argumentativa, frise-se que no campo social a atuação dos governos subnacionais brasileiros é muito forte hoje. Por isso, é preciso fortalecer as políticas públicas, mesmo que com arranjos organizacionais variados, nos períodos de crise econômica e social. Uma espécie de neoliberalismo local será muito difícil para os próximos prefeitos, embora também seja muito complicado imaginar como atender à população com a escassez fiscal vigente. Ingenuidades antiestatistas e arroubos populistas em termos de gastos não serão factíveis.
O futuro real, e não aquele pintado pelas campanhas personalistas e antipolíticas de 2016, exigirá muita capacidade dos prefeitos em construir diagnósticos precisos sobre as políticas públicas, propondo, a partir disso, aperfeiçoamentos, reformas e inovações. Tudo isso seria mais fácil, política e gerencialmente falando, se as campanhas tivessem discutido com mais profundidade os problemas. Claro que exatamente por termos uma safra de futuros governantes composta, em maior ou menor medida, por muitos "outsiders", é esperado um choque de realidade bem duro ao início.
Os novos prefeitos descobrirão, rapidamente, que há um descompasso que vai além da questão financeira. Perceberão que as máquinas públicas municipais, em geral, estão defasadas em termos de capacidades gerenciais. Elas precisam de reformas e de maior profissionalização e qualificação. Também devem ser criados instrumentos de motivação e cobrança mais efetivos. Essas ações, apesar de terem um custo menor do que os ganhos para a sociedade, geram resultados de médio e longo prazo, exatamente num contexto de emergência social. Pior: a situação atual do funcionalismo público, em todos os níveis de governo, revela que o enorme dispêndio com os aposentados dificulta fazer o necessário investimento na burocracia da ativa.
Para enfrentar essa realidade dura, os eleitos terão de mobilizar três armas que, infelizmente, pouco ou quase nada apareceram no debate da eleição de 2016: políticas públicas baseadas em evidências científicas; aprendizado em relação às experiências bem-sucedidas, particularmente no plano internacional; e muito diálogo social, inclusive com os adversários.
Em relação às políticas públicas baseadas em evidências, é importante frisar que quanto mais forem objeto de avaliação, mais chances os governantes terão de encontrar o caminho adequado e saber o que não deve continuar. Os instrumentos técnicos também podem ser utilizados nas formas de gestão, uma vez que há estudos que podem revelar a maior ou menor efetividade de determinados modelos. Claro que a ciência não pode tudo no reino das decisões coletivas. Há incertezas explicativas ou, com maior frequência, situações em que os dados sugerem um leque de alternativas e não uma resposta única. De todo modo, diante de tais situações, mais do que um gerente é necessário um político, capaz de escolher e de responder à sociedade por suas escolhas.
Pergunto ao leitor: quantos foram os candidatos que, efetivamente, usaram as evidências científicas para justificar suas propostas? E aqueles que propuseram grandes mudanças, quais foram as bases técnicas apresentadas? Posso estar enganado, mas o debate antipolítico das eleições municipais também foi pouco ou quase nada científico.
As experiências bem-sucedidas não são um receituário, mas sim, uma forma de inspiração que deve se adequar à realidade local. Um bom exemplo disso se dá no plano das megacidades e da discussão sobre as "smart cities". Muitos são as inovações produzidas globalmente para lidar com os desafios da urbanização e das demandas da sociedade do século XXI. Soluções diversas têm sido adotadas em vários países e é muito interessante constatar que quase nenhuma apareceu nos debates das principais capitais brasileiras.
A combinação de muitas demandas e poucos recursos nas grandes cidades brasileiras vai exigir o reforço do diálogo social, seguindo uma linha diferente da lógica da campanha personalista de 2016. Será preciso obter mais legitimidade para tomar decisões, algumas muito duras ou contrárias ao senso comum, bem como será necessário ter um modelo mais colaborativo, tanto no plano federativo como na relação do público com a sociedade e com o setor privado. A experiência dos antigos governantes também pode ser uma arma aos novos prefeitos. Nesse caso, há de se elogiar enfaticamente a proposta do novo prefeito de São Paulo, João Dória, de criar um conselho de ex-prefeitos. A "terra da garoa" virou, nos últimos anos, o reino da polarização exacerbada, e isso inviabiliza a governabilidade da cidade, qualquer que seja o partido do governante.
De todo modo, a primeira grande e acertada decisão do novo prefeito paulistano mostra que só a boa política pode nos tirar da enorme crise que afeta o país e os governos locais.
(*)Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e coordenador do curso de administração pública da FGV-SP,
Fonte: Valor Econômico/Eu&Fim de Semana
(29/10/16)
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