14 de novembro de 2016
Aconteceu uma vez, no plebiscito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, e a explicação bem pensante disse que tinha sido raio em céu azul. Veio o referendo na Colômbia sobre o acordo de paz e uma série de explicações tiradas da cartola tentou mostrar que era ponto fora da curva. A eleição de Donald Trump fixou de vez a exceção como regra, o desvio como tendência.
Ainda como candidato, Trump já tinha deixado claro que não aceitaria um resultado que não fosse o da sua vitória. Acusou o processo de fraudulento antes mesmo de ser iniciada a votação. Após sua vitória, bateu boca pelo Twitter com manifestantes que não aceitaram o resultado. Escreveu o presidente eleito dos EUA: "Eu tive uma eleição presidencial aberta e bem-sucedida. Agora, manifestantes profissionais, incitados pela mídia, estão protestando. É muito injusto!". O fato de ter tentado se desdizer no tuíte seguinte só mostra o grau de confusão em que se encontra o líder de algo que ele mesmo não sabe bem o que é. O mais grave é que provavelmente ninguém sabe. Mas é urgente tentar descobrir.
Parecem fazer sentido as explicações que enfatizam a raiva de quem se sente "deixado para trás" tanto na bonança internacional até 2007, como no período de recessão e no momento de recuperação econômica. Também parece fazer sentido a ideia de que figuras como Trump vocalizam a insatisfação porque se apresentam como candidatos "antissistema". Mas o cenário trumpesco que se abriu deveria servir pelo menos para enterrar de vez as posições que deduzem disso que o eleitorado não sabe votar, que vota contra seus próprios interesses e por aí vai.
Explicações como essa não apenas estigmatizam o voto da maioria do eleitorado como expressão de ignorância e estupidez. Acabam fazendo coro a uma desconfiança bastante difundida em relação à própria democracia. Porque insistem em negar que as divisões de um mundo agora tornado trumpesco são também o resultado de décadas da prática democrática elitista e excludente que essas mesmas explicações ajudaram a moldar e a difundir.
Quem saiu às ruas para se manifestar contra os resultados do Brexit, do referendo na Colômbia e da eleição de Trump o fez em nome da defesa da democracia. O voto vencedor nos casos em que a tendência trumpesca saiu vitoriosa diz que não pode haver resultado mais democrático do que o resultado eleitoral. Velhas evidências não funcionam mais, ao mesmo tempo em que não se sabe se e quais novas evidências vão surgir. Em disputas cada vez mais acirradas, em que as margens das vitórias eleitorais são cada vez mais apertadas, a não aceitação ativa do resultado pelo lado perdedor mostra uma divisão muito mais profunda do que aquela entre duas posições. Mostra que a própria democracia deixou de ser uma evidência, se é que o foi algum dia.
No caso da eleição de Trump, o lado perdedor considera que é o futuro da democracia que está em risco. A reação mostra que não é evidente qual seria o solo comum aceito pelas diferentes posições em conflito, mostra que não é visível um acordo de base sobre o que seja convivência democrática. O máximo que o processo eleitoral conseguiu produzir foi uma organização em dois campos. Não há acordo básico a partir do qual se torna possível divergir, disputar e, ao final, aceitar o resultado como legítimo. Pelo contrário, a eleição de Trump foi vista como ameaça à já pouca autonomia que têm pessoas e grupos no seu cotidiano, seja em relação à sobrevivência material, à posição social, ou a escolhas de como de levar a própria vida.
O problema não é se um dia existiu de fato esse solo comum, ou se as fraturas que emergiram agora foram sempre a regra, apenas tinham ficado antes reprimidas. O problema é que manter instituições democráticas funcionando se torna um exercício bastante arbitrário e estruturalmente instável quando há uma divisão tão profunda sobre o que deva ser a democracia como padrão da sociabilidade. Como não está no horizonte nenhum novo contrato social democrático, as fraturas tendem a tomar cada vez mais a forma de enfrentamentos diretos, com menos ou nenhuma mediação institucional.
Tentar adivinhar o que Trump vai realmente fazer pode ser importante para o curto prazo. Mas diz muito pouco sobre como vão se resolver as fraturas sociais expostas por sua eleição, fraturas de dimensão planetária. Tentar continuar empurrando com a barriga tanto o Brexit quanto a recusa do acordo de paz na Colômbia pode ser a única atitude que restou para quem pretende reverter adiante esses resultados tentando preservar de alguma maneira pelo menos as aparências democráticas. Mas terá como consequência para uma parte bem pouco desprezível dos eleitorados pelo mundo a confirmação da visão de que não existem eleições limpas. Será a prova cabal da ideia de qualquer processo eleitoral é intrinsecamente fraudulento. A fórmula perfeita para produzir novos Trumps.
Parece claro que as pessoas já estão cansadas de simplesmente ouvir. Querem o que não encontram nas instituições políticas existentes: espaço e oportunidade efetivas para vocalizar insatisfações, frustrações e expectativas Para gente treinada na política tal como existiu nas últimas décadas, esse desejo parece algo como um retrato do caos primordial. O problema é que já ficou claro que os eleitorados não vão recuar diante da ameaça do caos. Já foi tentado três vezes e não funcionou. Dobrar a aposta é não apenas insensato, mas sinal de completa desorientação política. E, no entanto, parece ser a atitude mais provável. A política oficial simplesmente não consegue entender as novas configurações sociais da democracia surgidas nos últimos anos. O máximo que consegue fazer é ser atropelada pelos Trumps em sua própria casa.
Uma figura como Trump não dará às pessoas o espaço e a oportunidade de expressão política que procuram. Mas dá a impressão de ter parado para escutá-las, pelo menos. Para quem votou em Trump, uma figura como Hillary Clinton acabou aparecendo como uma espécie de ouvidora da política oficial de sempre, aquela que só ouve o que quer ouvir.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (14/11/16)
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