terça-feira, 15 de novembro de 2016

É hora de rediscutir programas e ideias na esquerda brasileira (Celso Rocha de Barros)

Não contente em sofrer impeachment e ver grande parte de suas lideranças acusadas de corrupção, a esquerda brasileira aproveitou o embalo e tomou uma surra na eleição para prefeito.
O PT se tornou um partido médio, ninguém conseguiu ocupar seu espaço, e mesmo siglas de esquerda que nunca aceitaram cargos nos governos petistas, como o PSOL, sofreram com a ressaca do fracasso da Nova Matriz Econômica e com a ascensão de ideias direitistas que se seguiu a ela.
O antipetismo se tornou condição necessária e suficiente de sucesso: a banda direita do petrolão, PP e PMDB, sairá de 2016 com mais poder do que entrou. PSDB e demais partidos de oposição ao PT foram recompensados por sê-lo, mesmo depois de citados na Lava Jato. Qualquer coisa não petista viu sua cotação subir, inclusive coisas que a direita adulta provavelmente preferisse que não crescessem.
A esquerda perdeu porque o PT foi pego levando dinheiro do cartel de empreiteiras que roubava a Petrobras; e porque implementou, no primeiro mandato de Dilma, uma política econômica que fracassou. Daí em diante, os adversários jogaram com todos os recursos de poder de que dispunham para derrubar o governo, como é da natureza das coisas que aconteça. Reclamar disso é como reclamar da chuva.
Houve também azar: não existia nada na natureza das coisas que exigisse que a Lava Jato, a ressaca da Nova Matriz Econômica e a queda dos preços das commodities acontecessem ao mesmo tempo. Mas, novamente, quem aceitou correr esse risco foi quem não quis realizar o ajuste quando as coisas iam bem.
O que fazer de agora em diante? As perspectivas de médio prazo para a esquerda não são ruins. A Lava Jato vai bater nos partidos de direita como bateu no PT. Por mais que a cobertura seja menor e a anistia provável, a vantagem da direita sobre a esquerda deve diminuir. O ajuste fiscal é impopular. Não parece provável que o PT afaste os dirigentes acusados de corrupção, mas vários deles devem ir aos poucos perdendo espaço quando sua inviabilidade eleitoral se tornar evidente. A renovação de quadros facilitará muito a reconstituição da esquerda nos próximos anos.
Mas o que deve ser essa esquerda reconstruída, e o que ela deve propor? Qual deve ser a nova casa da esquerda? O PT já não é muito maior do que os outros partidos progressistas, mas nenhuma outra sigla chegou perto do tamanho que ele já teve. No momento, a liderança da esquerda está inteiramente em disputa.
FRENTE E PRÉVIAS
Nos últimos meses, ganharam impulso duas propostas baseadas em experiências internacionais: a formação de uma frente de partidos de esquerda e a realização de prévias independentes para escolher os candidatos de 2018.
A proposta de uma frente de esquerda foi defendida recentemente por Lula e por Flávio Dino (PCdoB), governador do Maranhão. Em entrevista ao jornal "O Estado de S. Paulo", Dino sugeriu uma frente que "consiga atrair o chamado centro político". O modelo evidente da proposta da Frente de Esquerda é o Frente Amplio (FA) uruguaio, uma reunião de grupos de esquerda e centro-esquerda (socialistas, democratas-cristãos, comunistas e outros menores) que governa o Uruguai já há alguns anos. É o partido de Pepe Mujica e Tabaré Vázquez, e vem conseguindo resultados eleitorais muito expressivos.
Francisco Panizza, da London School of Economics, considera válida a ideia de organizar algo como o FA no Brasil, mas admite que suas chances de sucesso seriam incertas: o FA baseia-se na experiência histórica do Uruguai, bem como na legislação eleitoral do país, que torna a organização de frentes partidárias mais fácil.
Nas últimas semanas, também ganhou impulso um movimento pela realização de prévias independentes, por fora dos partidos de esquerda (sem que eles sejam impedidos de participar), com o objetivo de escolher candidatos para as próximas eleições.
O movimento Quero Prévias! tem o apoio de intelectuais como Marcos Nobre e Laura Carvalho, e se inspira em iniciativas como o francês Notre Primaire e o chileno Primeras Primarias Ciudadanas. O Frente Amplio também é citado como exemplo, embora pareça um caso de maior institucionalização do que os proponentes das prévias têm em mente. De qualquer forma, que tanto as prévias quanto a frente usem o mesmo movimento como exemplo sugere que as duas alternativas podem conversar.
Um dos temas centrais do Notre Primaire francês, apoiado por intelectuais como Thomas Piketty e Daniel Cohn-Bendit, parece pertinente no caso brasileiro: o medo de que a divisão da esquerda leve a um segundo turno sem a esquerda nas próximas eleições presidenciais francesas (nesse cenário, o embate seria entre direita e extrema-direita). No documento que fez o apelo pelas prévias, os organizadores citam como justificativas para a proposta os altos índices de abstenção, a virada da sociedade para a direita e a imobilidade diante das desigualdades sociais: todos são temas familiares à esquerda brasileira.
A experiência francesa mostra que a realização do projeto é difícil: a organização do movimento desistiu de organizar as prévias, alegando desentendimentos com os partidos Comunista (que exigiu que o socialista François Hollande não participasse do processo) e Socialista (que agendou um grande evento para o mesmo dia em que seriam convocadas as prévias). Não se deve descartar a iniciativa por esse fracasso: talvez a própria fraqueza dos partidos brasileiros em tempos de Lava Jato lhes ofereça incentivos para participar de discussões fora de suas fronteiras.
REATIVAR O DEBATE
Não sabemos se as prévias ou a proposta da frente de esquerda prosperarão. E ninguém, é claro, deve subestimar o peso que terão nesse processo as diferenças de poder entre os participantes e as estratégias de cada político.
Mas, de qualquer forma, tanto as prévias quanto a frente teriam uma função ainda mais importante do que a de escolher candidatos: reativar o debate de ideias dentro da esquerda brasileira, inteiramente travado durante os 13 anos de governo. As prévias seriam, supomos, um processo de debate, e uma frente de esquerda precisaria discutir um programa mínimo.
Discutir ideias poderia retroagir sobre as formas de organização da esquerda brasileira. Muitos partidos mantêm sua identidade em torno de ideias que precisam ser revistas ou abandonadas. Se as ideias de esquerda forem discutidas a sério, é possível que mais de uma fronteira partidária desabe, e a aproximação e recombinação entre militantes e movimentos se torne mais fácil. Se tiverem que desabar para que a esquerda se reorganize, que desabem.
Se vamos discutir ideias, um bom ponto de partida pode ser o artigo recente de Ruy Fausto na "Piauí" ("Reconstruir a Esquerda"). As preocupações (e muitas das soluções) de Fausto são iguais às nossas. Em especial, concordamos que "se o discurso dominante da esquerda não mudar, perdemos hoje e perderemos sempre".
Fausto identifica três "figuras patológicas" na história da esquerda, que seria necessário exorcizar.
Uma delas, o adesismo, seria característica de partidos que perderam sua identidade se movendo demais para o centro (Fausto crê que é o caso do PSDB). A segunda é o totalitarismo –a simpatia por regimes ditatoriais brutais como o stalinismo e o maoismo. Finalmente, o populismo é a conjunção de líderes carismáticos/autoritários, clientelismo e um discurso de conciliação de classes.
É fácil perceber como algumas distinções políticas brasileiras ainda são baseadas nessas figuras patológicas. O exemplo mais óbvio é o PCdoB, um partido com bons quadros que, entretanto, defende regimes intoleráveis do passado e do presente. Por que desperdiçar lideranças estudantis, várias das quais muito talentosas, com a defesa do bolchevismo? Por que sobrecarregar Flávio Dino, que já precisa derrotar o clã Sarney, com a defesa do injustificável? Por que não se concentrar na defesa de objetivos razoáveis de redistribuição de renda no quadro da sociedade brasileira (em defesa dos quais, aliás, o PCdoB tem história)? Esse raciocínio se aplica também às defesas que PT ou PSOL fazem do regime cubano.
Para uma crítica da herança totalitária na esquerda brasileira, remetemos o leitor ao artigo de Fausto, confessando certo desânimo por essas ideias ainda circularem por aí para ser criticadas.
Só diremos isto: vira e mexe a esquerda flerta com o discurso segundo o qual o Estado de Direito é um instrumento de dominação ou uma mera ficção. Isso não ocorre por acaso. Ao escrever "A Questão Judaica", Marx afirma que o direito faz do homem um ser isolado: o fundamento da sociedade burguesa, a liberdade individual e, sobretudo, a propriedade privada, faz com que encontremos nos outros não a realização de nossa própria liberdade, mas sim sua limitação.
De forma quase premonitória, ainda em 1979, Claude Lefort afirma que isso é um enorme equívoco por parte de Marx (e, consequentemente, de muitos marxistas). A liberdade de opinião garantida na Declaração de Direitos de 1789, por exemplo, não cria uma cisão entre o indivíduo burguês e o resto da sociedade, mas, pelo contrário, assegura a circulação do pensamento, das palavras em contraposição ao poder.
Propomos, portanto, que, no contexto de reformulação da esquerda pós-impeachment, o PCdoB e tendências que, de alguma forma, reivindicam a herança bolchevique (trotskistas incluídos) revejam inteiramente seus programas de forma a eliminar qualquer traço de ideias totalitárias. PT, PSOL, e, em certa medida, PCdoB, por outro lado, precisam urgentemente se distanciar da defesa do regime cubano, assumindo postura de vigorosa defesa da instauração da democracia em Cuba.
É provável que a defesa de ideias totalitárias dentro da esquerda brasileira já não represente postura propriamente programática, mas um ritual, uma tradição que dá identidade a certos grupos. Tais rituais são parecidos o suficiente com ideias para atrapalhar a discussão programática. Devem ser criticados –e se, como resultado, os grupos precisarem ser reestruturados, que sejam. As novas discussões dentro da esquerda podem ser propícias a isso.
RISCO POPULISTA
Se o risco de uma reversão geral da esquerda brasileira ao totalitarismo é mínimo, uma recaída populista é um risco real. Como diz Jan-Werner Müller em seu recém-lançado livro sobre o tema ("What is Populism?", University of Pennsylvania Press), o populismo floresce especialmente bem na crise de sistemas partidários. A dos partidos brasileiros é brutal e deve piorar com as delações em curso, por mais anistias que se aprovem.
Um dos sintomas da crise dos partidos é que a conversa na esquerda é cada vez mais sobre nomes: Lula, Ciro Gomes, Marina Silva. Esse personalismo tipicamente populista é algo a ser evitado. Qualquer um dos três candidatos pode ser um bom nome caso se apresente no espírito da esquerda democrática. Mas todos desperdiçarão seu potencial (e, no caso de Lula, seu legado) se concorrerem como populistas. A esquerda precisa de líderes que a ajudem a se reconstruir para o longo prazo. Vencer 2018 não é o essencial.
Vale perguntar: o PT, no poder, foi populista? Não no sentido forte. Fausto observa, corretamente, que, embora tenha havido carisma e clientelismo, faltou o autoritarismo para caracterizar o pertencimento ao clube populista. O PT manteve as instituições democráticas funcionando –e foi derrubado por elas. Não é difícil achar observadores de países de nível de renda semelhante ao brasileiro lamentando que algo como a Lava Jato não teria como acontecer por lá.
O cientista político Carlos Pereira já destacou que o que aconteceu no mensalão –a prisão de uma elite política enquanto ainda está no poder– é fato raríssimo na política mundial. Müller também não cita o lulismo como exemplo de populismo em seu estudo (reservando a caracterização para os "bolivarianos").
Por outro lado, é bem documentado, por exemplo no trabalho de André Singer, que o PT resgatou a retórica do populismo varguista quando ficou claro que o Brasil não se tornaria um grande ABC industrial. Em sua origem, o partido era radicalmente antipopulista, e sua proposta fundamental era a afirmação de uma identidade política singular para a classe trabalhadora (daí o nome da sigla).
Com o tempo, ideias e figuras retóricas do populismo foram usadas para mobilizar os pobres desorganizados que o sindicalismo não conseguia atingir. O retorno de Vargas na reversão da industrialização brasileira é um dos movimentos ideológicos mais interessantes dos últimos anos.
Não se sabe muito bem se essa retórica populista, afinal, foi bem-sucedida –ou se os pobres votaram no PT só porque suas vidas melhoraram muito em decorrência das políticas petistas (essa é a minha suspeita). A retórica populista no lulismo serviu mais como discurso sobre inclusão dos pobres; se paramos nesse ponto, é provavelmente inofensiva.
Da mesma forma, se a recuperação de Vargas parar no elogio às suas indiscutíveis medidas sociais inclusivas, não há o que protestar. Mas não é óbvio que pararemos aí. Como já dissemos, o momento atual oferece uma fortíssima tentação populista. A esquerda tem que se precaver contra sua própria pulsão e se preparar para combater o populismo que vem (e está vindo forte) pelo outro lado, especialmente depois do resultado da eleição americana.
A discussão recente nos documentos petistas é muito preocupante. Alguma radicalização era de se esperar no momento de mobilizar a militância contra o impeachment, mas a direção da conversa sugere fortemente que a discussão de ideias não está sendo conduzida pelas lideranças responsáveis.Houve teses no 5º Congresso do PT, em 2015, afirmando que faltou à legenda a mesma disposição para o enfrentamento que tiveram os governos da Venezuela e da Argentina. Muita gente no partido criticou o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo por não ter "controlado" a Polícia Federal. Em uma "autocrítica" recente particularmente picareta, petistas lamentaram não ter promovido oficiais do Exército fiéis ao partido.
Isto é, há gente no PT que acha que o que faltou ao partido nesses quase 14 anos foi populismo político. Como se essa falta não tivesse sido um dos méritos do período petista, que tantas outras culpas teve. Se a recusa do populismo tivesse se estendido à economia, não estaríamos onde estamos.
Enfim, propomos que, nas conversas suscitadas pelas prévias ou pela formação da frente, PT, PDT e demais partidos de esquerda eliminem o que houver de populismo em seus programas e reconheçam-se como forças social-democratas (que é o que foram sempre que funcionaram bem).
Se as fronteiras do PT estiverem ligadas demais ao culto a Lula, ou se as do PDT dependerem exclusivamente do culto a Brizola (ou a Ciro), que todas se dissolvam e deem lugar a recombinações de ideias.
Até aqui nossa concordância com as teses de Ruy Fausto é quase integral. A esquerda brasileira precisa se livrar dos resquícios de totalitarismo e populismo, e não reverter a velhos hábitos na hora da crise. Também estamos de acordo com diversas de suas posições sobre ambientalismo e combate à corrupção, e sobre como os governos petistas falharam por esses critérios.
ANTICAPITALISTA?
Mas discordamos de um dos pontos centrais do programa que ele defende para a esquerda: o anticapitalismo. Na discussão de Fausto, o termo não se refere a nenhum dos movimentos anteriormente descritos como totalitários. É proposto como um horizonte a ser perseguido inteiramente dentro das regras do jogo democrático. Mas o que, de fato, seria o anticapitalismo?
Uma análise detida das propostas de Fausto sugere que, na verdade, trata-se de propor limites à acumulação de capital: impostos que restrinjam o quanto pode ser apropriado como riqueza pessoal pelos capitalistas, por exemplo, regulação do setor financeiro ou uma regulamentação ambiental rigorosa. Tudo isso é inteiramente realizável dentro do capitalismo democrático –e, aliás, só foi até hoje realizado dentro dele. Por que chamar isso de anticapitalismo?
O conceito traz ecos da história do marxismo que Fausto, como especialista na obra daquele, sabe evitar. Mas quem mais o saberá? Que trabalho analítico e político o conceito de anticapitalismo faz dentro do programa de Fausto que não poderia ser realizado pelas caixas de ferramentas de autores mais claramente identificados com o programa social-democrata, como Amartya Sen ou John Rawls?
O próprio Thomas Piketty propôs sua cartilha de redução de desigualdades dentro de um esquema teórico bastante ortodoxo. O programa de expansão da democracia apresentado por Fausto tem muitos pontos positivos, mas talvez sua própria natureza democrática fosse melhor afirmada sem a associação com experiências anticapitalistas anteriores.
Não estamos deslegitimando a discussão de propostas de transformação radical. É inteiramente procedente que se discutam alternativas ao capitalismo, desde que dentro da democracia. Se a condição for satisfeita, experiências alternativas poderão, se assim o desejarem os eleitores, ser testadas localmente e descartadas sempre que derem errado. Historicamente, foi assim que se deu a expansão do Estado de bem-estar social, o paradigma de intervenção da democracia sobre o capitalismo.
Propomos que, nas discussões no âmbito das prévias ou na formação da nova frente, o capitalismo seja aceito como algo a ser reformado, mantido dentro de certos limites, expulso de certas áreas da vida, mas digno de ser preservado e bem gerido até que alguém tenha uma ideia melhor.
Enfim, nos entusiasmam as propostas que têm potencial de produzir uma renovação da esquerda brasileira, como a frente de esquerda ou as prévias. Vale a pena tentá-las. Se não funcionar, que ao menos a discussão tenha servido para reembaralhar as identidades, que só devem ser preservadas na medida em que se mostrem à altura das tarefas dos próximos anos.
(*) CELSO ROCHA DE BARROS, 43, colunista da Folha, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford.
Fonte: Folha de São Paulo (15/11/12)

Pesadelo do PT só começou (Jose Roberto de Toledo)

Iniciada em 2015, a noite que deu pesadelos aterrorizantes ao PT em 2016 não deve acabar antes de 2018 – com chance de se prolongar ainda mais se os dirigentes petistas não acordarem logo. Cientistas políticos reunidos em seminário da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo na semana passada apresentaram estudos distintos com a mesma conclusão: a bancada de deputados federais do PT deve diminuir significativamente em 2018.
O principal motivo é a redução inaudita de prefeitos e vereadores sofrida pelo partido em 2016. Artigo ainda a ser publicado pelos professores George Avelino e Ciro Biderman confirma, estatisticamente, que há uma forte associação entre a quantidade de prefeitos eleitos por um partido e o número de deputados federais que a mesma legenda elege dois anos depois.
A diferença entre os candidatos que conseguem se eleger para a Câmara daqueles que ficam pelo caminho é que eles obtêm votações expressivas em várias microrregiões do Estado. O jeito de conseguirem isso é garantir o apoio de atores políticos locais que lhes emprestam sua credibilidade nos respectivos municípios. Os principais atores são prefeitos e vereadores, em geral do mesmo partido que ele. Quanto mais apoiadores, mais votos.
O PT terá 60% menos prefeitos a partir de 2017 e governará uma população 85% menor do que governa hoje nos municípios. A derrocada foi consequência de uma votação 60% menor na comparação entre os primeiros turnos de 2012 e 2016: foram 10 milhões de votos a menos para os petistas em quatro anos. Nenhum grande partido brasileiro sofreu uma queda tão abrupta de sua base municipal desde o advento do pluripartidarismo.
“Certamente vai reduzir o número de cabos eleitorais locais relevantes dispostos a apoiar os candidatos do PT. Isso torna as previsões de redução da bancada bem razoáveis”, resume Avelino.
Serão 384 prefeitos a menos para fazer campanha para os atuais 58 deputados federais petistas. Em nenhum Estado eles terão reeleição fácil, mas a tarefa deverá ser ainda mais difícil em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde o partido perdeu proporcionalmente mais prefeitos.
Na eleição para vereador não foi diferente. O professor Jairo Nicolau, da UFRJ, analisou a votação dos petistas candidatos às câmaras municipais, por Estado e porte de município. Em praticamente todos os segmentos analisados o PT regrediu ao patamar de 2000 ou anterior. Em comparação à eleição de 2016, a votação total dos candidatos a vereador petistas caiu à metade.
“O quadro é de uma derrota avassaladora”, resume Nicolau, que prevê: “Como existe uma associação estatística entre o voto para vereador e deputado federal, prevejo, mantidos constantes outros fatores, que a bancada do PT na Câmara dos Deputados volte ao padrão dos anos 1990. Entre 30 e 40 deputados federais.”
Na Câmara de hoje, isso colocaria o PT num patamar entre o PSB (33) e o PR (42). Ou seja, de segunda maior bancada (perde apenas para o PMDB), se tornaria a quinta, sexta ou sétima. Perderia peso nas votações em plenário, o comando de comissões importantes e a relatoria de projetos relevantes. Além disso, em 2020 e 2022 os candidatos do PT teriam direito a menos tempo de propaganda na TV e menos dinheiro do Fundo Partidário.
Se o PT perde, quem ganha? A resposta é menos óbvia do que pode parecer. “Essa redução na bancada do PT provavelmente nāo beneficiará nenhum partido em especial, contribuindo para aumentar a fragmentação partidária”, diz Avelino, da FGV-SP.
Isso já aconteceu em 2016. Os 18 menores partidos pularam de 336 para 508 prefeituras. De 10,5 milhões, passarão a governar 17 milhões de eleitores. Ou seja: a tendência é os próximos presidentes da República terem que administrar uma base de apoio parlamentar cada vez mais fragmentada, volátil e cara.
Fonte: O Estado de São Paulo (14/11/16)

Democracia exposta (Marcos Nobre)

14 de novembro de 2016


Aconteceu uma vez, no plebiscito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, e a explicação bem pensante disse que tinha sido raio em céu azul. Veio o referendo na Colômbia sobre o acordo de paz e uma série de explicações tiradas da cartola tentou mostrar que era ponto fora da curva. A eleição de Donald Trump fixou de vez a exceção como regra, o desvio como tendência.
Ainda como candidato, Trump já tinha deixado claro que não aceitaria um resultado que não fosse o da sua vitória. Acusou o processo de fraudulento antes mesmo de ser iniciada a votação. Após sua vitória, bateu boca pelo Twitter com manifestantes que não aceitaram o resultado. Escreveu o presidente eleito dos EUA: "Eu tive uma eleição presidencial aberta e bem-sucedida. Agora, manifestantes profissionais, incitados pela mídia, estão protestando. É muito injusto!". O fato de ter tentado se desdizer no tuíte seguinte só mostra o grau de confusão em que se encontra o líder de algo que ele mesmo não sabe bem o que é. O mais grave é que provavelmente ninguém sabe. Mas é urgente tentar descobrir.
Parecem fazer sentido as explicações que enfatizam a raiva de quem se sente "deixado para trás" tanto na bonança internacional até 2007, como no período de recessão e no momento de recuperação econômica. Também parece fazer sentido a ideia de que figuras como Trump vocalizam a insatisfação porque se apresentam como candidatos "antissistema". Mas o cenário trumpesco que se abriu deveria servir pelo menos para enterrar de vez as posições que deduzem disso que o eleitorado não sabe votar, que vota contra seus próprios interesses e por aí vai.
Explicações como essa não apenas estigmatizam o voto da maioria do eleitorado como expressão de ignorância e estupidez. Acabam fazendo coro a uma desconfiança bastante difundida em relação à própria democracia. Porque insistem em negar que as divisões de um mundo agora tornado trumpesco são também o resultado de décadas da prática democrática elitista e excludente que essas mesmas explicações ajudaram a moldar e a difundir.
Quem saiu às ruas para se manifestar contra os resultados do Brexit, do referendo na Colômbia e da eleição de Trump o fez em nome da defesa da democracia. O voto vencedor nos casos em que a tendência trumpesca saiu vitoriosa diz que não pode haver resultado mais democrático do que o resultado eleitoral. Velhas evidências não funcionam mais, ao mesmo tempo em que não se sabe se e quais novas evidências vão surgir. Em disputas cada vez mais acirradas, em que as margens das vitórias eleitorais são cada vez mais apertadas, a não aceitação ativa do resultado pelo lado perdedor mostra uma divisão muito mais profunda do que aquela entre duas posições. Mostra que a própria democracia deixou de ser uma evidência, se é que o foi algum dia.
No caso da eleição de Trump, o lado perdedor considera que é o futuro da democracia que está em risco. A reação mostra que não é evidente qual seria o solo comum aceito pelas diferentes posições em conflito, mostra que não é visível um acordo de base sobre o que seja convivência democrática. O máximo que o processo eleitoral conseguiu produzir foi uma organização em dois campos. Não há acordo básico a partir do qual se torna possível divergir, disputar e, ao final, aceitar o resultado como legítimo. Pelo contrário, a eleição de Trump foi vista como ameaça à já pouca autonomia que têm pessoas e grupos no seu cotidiano, seja em relação à sobrevivência material, à posição social, ou a escolhas de como de levar a própria vida.
O problema não é se um dia existiu de fato esse solo comum, ou se as fraturas que emergiram agora foram sempre a regra, apenas tinham ficado antes reprimidas. O problema é que manter instituições democráticas funcionando se torna um exercício bastante arbitrário e estruturalmente instável quando há uma divisão tão profunda sobre o que deva ser a democracia como padrão da sociabilidade. Como não está no horizonte nenhum novo contrato social democrático, as fraturas tendem a tomar cada vez mais a forma de enfrentamentos diretos, com menos ou nenhuma mediação institucional.
Tentar adivinhar o que Trump vai realmente fazer pode ser importante para o curto prazo. Mas diz muito pouco sobre como vão se resolver as fraturas sociais expostas por sua eleição, fraturas de dimensão planetária. Tentar continuar empurrando com a barriga tanto o Brexit quanto a recusa do acordo de paz na Colômbia pode ser a única atitude que restou para quem pretende reverter adiante esses resultados tentando preservar de alguma maneira pelo menos as aparências democráticas. Mas terá como consequência para uma parte bem pouco desprezível dos eleitorados pelo mundo a confirmação da visão de que não existem eleições limpas. Será a prova cabal da ideia de qualquer processo eleitoral é intrinsecamente fraudulento. A fórmula perfeita para produzir novos Trumps.
Parece claro que as pessoas já estão cansadas de simplesmente ouvir. Querem o que não encontram nas instituições políticas existentes: espaço e oportunidade efetivas para vocalizar insatisfações, frustrações e expectativas Para gente treinada na política tal como existiu nas últimas décadas, esse desejo parece algo como um retrato do caos primordial. O problema é que já ficou claro que os eleitorados não vão recuar diante da ameaça do caos. Já foi tentado três vezes e não funcionou. Dobrar a aposta é não apenas insensato, mas sinal de completa desorientação política. E, no entanto, parece ser a atitude mais provável. A política oficial simplesmente não consegue entender as novas configurações sociais da democracia surgidas nos últimos anos. O máximo que consegue fazer é ser atropelada pelos Trumps em sua própria casa.
Uma figura como Trump não dará às pessoas o espaço e a oportunidade de expressão política que procuram. Mas dá a impressão de ter parado para escutá-las, pelo menos. Para quem votou em Trump, uma figura como Hillary Clinton acabou aparecendo como uma espécie de ouvidora da política oficial de sempre, aquela que só ouve o que quer ouvir.
(*) Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.
Fonte: Valor Econômico (14/11/16)

Crime e política (Denis Lerrer Rosenfield)

A política brasileira virou crônica policial. Não há dia sem envolvimento de políticos denunciados e investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público. Num país aparentemente pobre, milhões e bilhões são desviados de suas finalidades públicas para as mais variadas formas de apropriação pessoal e partidária. O Brasil é rico em corrupção e pobre em medidas sociais.
A Lava-Jato tem a grande virtude de estar passando o país a limpo. Sem ela, os mais diferentes tipos de crime estariam se desenrolando normalmente, muitas vezes mascarados de políticas sociais, como tornou-se usual na forma petista de governar. Sua contribuição à República é inestimável.
Em sua nova etapa, a partir das delações do grupo Odebrecht, outros crimes e personagens, além dos já existentes, serão acrescentados à longa lista dos já demonstradamente envolvidos. Estes terão provas ainda mais robustas contra si.
Acrescente-se que o ex-deputado Eduardo Cunha, muito provavelmente, fará a delação premiada. Se não a fizer, será difícil a sua saída da prisão, além de nela entrarem a sua mulher e filha. Homem meticuloso e organizado, deve ter as provas de tudo o que delatar. E atingirá seus colegas parlamentares e o seu próprio partido.
Se o PT, por ter sido o partido do poder, além de arquiteto deste tipo de organização político-criminosa, foi o mais atingido até agora, outros partidos se acrescentarão a essa lista. PMDB e PSDB são os próximos na fila. Provavelmente, o cenário poderá ser de terra arrasada, como se uma tsunami estivesse por se abater sobre o país. De fato, as águas estão revoltas, aumentando o seu nível.
Isso significa que ministros, deputados e senadores poderão ser severamente atingidos, mudando as expectativas para 2017 e alterando o cenário para 2018. Imagine-se, por hipótese, que os candidatos atuais sejam alcançados por essas investigações. O país precisaria, então, se renovar até esta data, sob o risco de abrir as portas para os mais diferentes aventureiros. O que restará de todo este cenário? A classe política será devastada. Talvez, se tudo se confirmar, não sobrará pedra sobre pedra. Ora, uma classe política devastada coloca um problema de extrema gravidade no que diz respeito à representação política.
Parlamentares e partidos, por exemplo, cumprem um importante papel de representação política. Sem eles, a arquitetura do Estado carece de mediação, estabelecendo-se um vácuo na delegação para o exercício do poder. É como um edifício sem suas vigas mestras. Ou ainda, como pode um Estado funcionar se os representados não se reconhecem nos seus representantes? Pode-se mesmo, no limite, falar de uma crise institucional.
Surge aqui um problema de monta, agravado pelo fato de alguns juízes, promotores, policiais e formadores de opinião estarem misturando coisas distintas na relação que está se estabelecendo entre crime e política.
Há uma confusão que está perigosamente se generalizando entre doação empresarial legal, caixa dois e crime de propina e corrupção. São coisas distintas que exigem um tratamento diferenciado.
Doações eleitorais empresariais eram legais até poucos meses atrás, sendo uma prática corrente por todos reconhecida e aceita. Empresas doavam segundo seus interesses e conveniências, sem que estes recursos derivassem necessariamente da corrupção e da propina.
Hoje, aparecem retrospectivamente como práticas criminosas numa espécie de retroatividade da lei, o que é, evidentemente, um absurdo constitucional. Não se pode considerar que um empresário, por ser empresário, seja portador de uma espécie de presunção da culpabilidade, enquanto somos regidos, todos, pela presunção da inocência.
O caixa dois, por sua vez, era um crime eleitoral, embora fosse uma prática comumente admitida. Ora, por ser admitida, não significa que não deva ser julgada. Contudo, o seu julgamento é basicamente afeito à Justiça Eleitoral, com suas penalidades próprias, como multas pecuniárias e perdas de mandato. O caixa dois não pode ser identificado com a corrupção, embora os corruptos também tenham dele se aproveitado.
O crime de corrupção, que deveria ser o foco exclusivo da Lava-Jato e de seus desdobramentos, é o crime de propina, em uma apropriação de recursos públicos via empreiteiros, políticos e funcionários de estatais, além de seus mais diferentes intermediários. Trata-se de um crime de extrema gravidade, que atinge o âmago mesmo do Estado e deve ser punido exemplarmente. Ele é, porém, essencialmente distinto dos dois outros casos, apesar de eles terem servido de disfarce para atividades criminosas de corrupção.
Ora, se juízes, policiais, promotores e formadores de opinião vierem a identificar esses dois crimes e uma atividade outrora legal, poderemos, aí sim, marchar para uma grave crise institucional, na medida em que ninguém poderá escapar de tal tipo de confusão. Inocentes serão levados juntos com criminosos. Crimes eleitorais serão tidos por crimes de propina e corrupção quando não o são.
Nestas circunstâncias, como poderá o país se reconstruir? Como poderá enfrentar a derrocada do PIB, o desemprego crescente e a falta de expectativas? Como a crise econômica e social poderá ser superada com a devastação da classe política?
Façamos uma analogia. A Alemanha, pós-guerra, foi reconstruída pela burocracia estatal e por políticos, muitos dos quais foram nazistas ou simpatizantes desta forma de eliminação da política e, mesmo, da humanidade. Soube distinguir grandes crimes de crimes menores. Foi o preço que tiveram de pagar.
A França foi também reconstruída por colaboracionistas e membros e/ ou simpatizantes do regime de Vichy. Dois deles se tornaram presidentes, como Valery Giscard d’Estaing e François Miterrand, este último, paradoxalmente, tendo se tornado um símbolo da esquerda mundial.
Não deverá o país, guardadas as proporções, enfrentar um mesmo tipo de desafio?
(*) Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Fonte: O Globo (14/11/16)

Trump e a curva do Rio (Fernando Gabeira)

EUA e Rio mostram como o mundo pirou. O mundo não acabou, apenas ficou mais louco. Esta frase, de um dirigente alemão, é precisamente o que penso depois da vitória de Donald Trump. Mas, às vezes, sou tentado a revê-la quando olho o Rio de Janeiro, lugar onde moro, ameaçado pelo caos e pela anarquia. Todos se lembram do Brexit, o rompimento da Inglaterra com a comunidade europeia. Também ali, imprensa e pesquisa foram traídos pelas circunstâncias. Esperavam um resultado que não veio.
Oque há de comum nas supresas de Trump e do Brexit é a confiança na racionalidade inevitável da globalização. O filósofo John Gray escreveu muitas vezes sobre o tema. Para ele, o comunismo internacional e a expansão planetária do livre comércio são duas utopias nascidas do Iluminismo. Discordo apenas num detalhe: o livre comércio não se impõe à força, ninguém é obrigado a tomar Coca-Cola ou comprar tênis Nike.
Mas a verdade é que a globalização produziu perdedores nos países mais ricos e contribuiu para que alguns estados mais frágeis se dissolvessem em guerras fratricidas. As ondas de imigração levaram medo e inquietude. Na Inglaterra, temia-se pelo emprego e também pelos leitos de hospital e assistência médica.
Nos Estados Unidos, Trump denunciou acordos importantes como o Nafta e prometeu construir um muro na fronteira com o México. No seu discurso, um outro fator também aparece: o medo da desordem, da presença de criminosos que possam perturbar a paz americana, igualando o país a outros lugares caóticos do mundo.
Walt Whitman, num poema de 1855, dizia que os Estados Unidos é um país que não se representa por deputados, senadores, escritores ou mesmo inventores, e sim pelo homem comum. Durante quase toda a campanha, observando as entrevistas dos eleitores de Trump, não havia neles apenas o medo dos efeitos da globalização, mas também uma repulsa pelos políticos tradicionais. Alguns, mesmo discordando das bobagens que ele dizia, afirmavam: pelo menos é sincero, ao contrário dos profissionais. Outros mais exaltados gritavam abertamente para as câmeras: foda-se o politicamente correto.
A suposição de que o progresso triunfa sempre é um contrabando religioso na teoria política. A história não é linear. E talvez os formadores de opinião e pesquisadores tenham perdido o pé por acharem, equivocadamente, que o triunfo sempre estará ao lado do que consideramos certo. É preciso mais humildade, mais presença na vida das pessoas para compreender que a globalização produz ressentimentos e que muitos anseiam pelos “velhos e bons tempos” de sua experiência nacional.
O caso do Rio deveria ser tratado à parte. Mas é um estado falido, algo que também não é estranho à história mundial. O Haiti é aqui, já dizia, profeticamente, a canção de Caetano e Gil. Falavam da Bahia, mas o verso inicial é válido para todos: pensem no Haiti.
Uma grande contradição na falência do Rio é o fato de que os mesmos políticos que arrasaram o estado são os responsáveis para liderar sua reconstrução. A falta de legitimidade torna a tarefa quase impossível. Depois de tanta incompetência e corrupção, grande parte das pessoas gostariam de vêlos na cadeia, e não no comando do estado.

Eles não vão renunciar. Será preciso que a sociedade se movimente, sem quebradeiras, sem gritos, para que as coisas voltem à normalidade. Ela também se deixou levar pela febre do petróleo. Em 2010, quando disputei com Cabral, já era evidente o colapso do sistema de saúde, a corrupção assustadora. Naquele momento, percebi que muitos intelectuais, alguns amigos queridos, continuavam seduzidos por um governo que mascarava a incompetência e corrupção com os abundantes recursos do petróleo. A sedução não envolveu apenas intelectuais críticos, mas todo o establishment. Hoje, os manifestantes gritam Bolsonaro, quando invadem a Assembleia. Como são policiais, e a família Bolsonaro sempre apoiou a corporação, não significa ainda um sentimento mais amplo na sociedade carioca, embora Bolsonaro, pai e filho, já sejam campeões de voto.
Será preciso humildade para compreender o que se passa, independentemente de nossas projeções teóricas sobre futuros luminosos. A cidade maravilhosa, cosmopolita etc. já está nas mãos de um grupo cristão que tende, ao contrário do Velho Testamento, a defender não uma ética particular, mas um caminho que deva ser universalmente aceito.
A gravidade da crise no Rio, caso sobreviva à quadrilha que o governou, e caso a sociedade não se esforce para buscar soluções, pode nos levar a um tipo de dissolução que encha as ruas de fantasmas perambulando com suas cestas de pequeno comércio, gangues dominando amplos setores da cidade e, sobretudo, saída em massa para o interior, para outros estados, para fora do país.
Pensem no Haiti, diz a canção. Precisamos mais do que isso: pensar no Haiti e fazer algo para evitar o mesmo destino.
Fonte: O Globo (13/11/16)

O preço da perversidade (José de Souza Martins)

• Tanto nos EUA do presidente eleito Trump como no Brasil das últimas eleições, as urnas têm rechaçado o capitalismo da caridade iníqua e da pobreza conveniente, diz sociólogo
Um conjunto relativamente extenso de questões está vinculado à inesperada eleição do republicano Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, derrotando no colégio eleitoral Hillary Clinton, democrata, que teve a maioria dos votos populares. Questões relativas ao fato de que estas eleições americanas representaram o ápice de um processo político mundial de redefinição da própria política, de anulação dos sujeitos tradicionais e típicos da concepção de política inaugurada com a Revolução Francesa, da própria concepção de povo. As transformações neste episódio não dizem respeito apenas à sociedade americana e ao capitalismo que ela representa e centraliza.
Na campanha, Trump não falou em nome de uma doutrina política nem mesmo em nome de seu partido. Falou em nome da multidão que não se identifica com os canais históricos de expressão da vontade política. Falou em nome da antipolítica, de um capitalismo que não é o capitalismo da Bolsa, de quem especula e ganha sem trabalhar, mas sim o capitalismo do bolso, de quem só pode ganhar se tiver trabalho. Ainda assim, esses eleitores são os que pensam o trabalho no marco da possibilidade de ascensão social, de negar-se sendo o outro que a sociedade de consumo promete. Trump falava sério. Não é estranho que seu primeiro discurso tenha sido um discurso de teor keynesiano, o trabalho gerador de emprego e renda para reincluir os esquecidos. Um plausível discurso rooseveltiano. Mas há um milenarismo bufo em sua fala populista e nacionalista, que não houve em outros atores bufos da política contemporânea, como Bóris Yeltsin, que demoliu a União Soviética sem propiciar sua superação. Ou como Berlusconi, melancólica expressão da decadência da Itália culta e civilizada.
O voto desta eleição americana foi contra o que representa Wall Street, mas não foi contra o que representa o Tio Patinhas. A personagem decisiva no eleitor decisivo foi, mesmo, a classe média do Pato Donald, com sua frustração e sua ira acumuladas nas várias décadas da globalização que em vários lugares anulou identidades nacionais, aniquilou regras históricas de integração social e de atuação política, que aplainou as fantasias da igualdade jurídica na competição com base na desigualdade econômica. Não há aí nenhuma novidade: sob a máscara da cidadania perfeita a sociedade moderna tem sido a sociedade da iniquidade perfeita, a dos ardis que dizem a cada um o que é não sendo.
As pesquisas eleitorais enganaram os analistas costumeiros munidos de elaboradas técnicas de adivinhação do que vai acontecer. Só o Los Angeles Times, pró-Clinton, associado à Universidade do Sul da Califórnia, acertou, fazendo suas previsões com base em minúcias de mentalidade e de comportamento eleitoral e político, supostamente irrelevantes, que acabariam decisivas no resultado final das eleições. Mais antropologia e sociologia do que ciência política.
Nesse assunto, as ciências sociais se equivocaram ao deixar de lado o que é próprio do homem comum e cotidiano dos tempos atuais. E, ao deixarem de lado em suas análises a extensa categoria de pessoas que nem são ricas nem são pobres, motivadas por carências próprias, abandonadas pelo classificacionismo pseudo-sociológico que conhece por imputação e não por investigação, mais dedutivo do que indutivo, mais para confirmar o supostamente sabido do que para descobrir o não sabido. Deixaram de lado as multidões tolhidas e silenciadas, as vítimas da manipulação política e ideológica para as quais não há lugar no catálogo de anomalias relevantes da sociedade atual. Caso do desemprego, dos favorecimentos falsamente corretivos da pobreza, os recursos de maquiagem dos defeitos e feiuras do mundo contemporâneo. Caíram nas ilusões que inventaram.
Isso tem acontecido também aqui no Brasil, os analistas perdidos mais entre acusar do que explicar, aprisionados pela estreiteza de considerações pouco convincentes sobre direita e neodireita. Não será por aí que proporão a compreensão do que vem acontecendo no País, especialmente desde as manifestações de rua de 2013, até a cassação de Dilma Rousseff e ainda o que virá pela frente. Criaram o artifício do neo-isto, neo-aquilo, que acaba sendo neo-coisa-nenhuma: neoliberalismo, neodireitismo, neoesquerdismo; neopentecostalismo político.
Na verdade, lá e cá, os eleitores destas manifestações eleitorais recentes opuseram-se ao capitalismo da ordem social regulada pelos auxílios, benefícios e favorecimentos aos desvalidos e marginalizados, os sobrantes, desempregados e subempregados, os estrangeiros clandestinos e baratos, à pobreza conveniente e lucrativa.
Ao capitalismo de remendos e curativos, de caridades compreensíveis mas iníquas do ponto de vista dos que sucumbem sob o peso de taxações, de tributações que mantêm bolsas e cotas, à violação do princípio da igualdade e da competição, a isso reage eleitoralmente a vítima. Mandaram o recado: não se corrige perversidades econômicas com injustiças.
(*) José de Souza Martins, sociólogo (USP).
Fonte: O Estado de São Paulo/Aliás (13/11/16)

Isolados de grupos, eleitores se atraem por populistas (Philippe Schmitter)

No período de distensão latino-americana, o livro "Transições do Regime Autoritário", escrito pelo cientista político Philippe Schmitter com Guillermo O'Donnel, foi bastante lido por políticos que tiveram papéis relevantes nas novas democracias da região.
A tese era que o movimento teria sucesso se fosse feito um pacto no qual membros das ditaduras se sentissem incluídos. Deu certo.
Hoje, os países da região têm democracias consolidadas, mas elas –e as do resto do mundo– enfrentam dilemas de uma dificuldade de representatividade e, principalmente, suas implicações.
O americano, que foi professor em Stanford e é emérito do Instituto Universitário Europeu, esteve no Brasil para dar palestras a outros cientistas políticos.
• Folha - O sr. empregou a palavra "dissed", que é um tipo de rap de ridicularização, para falar sobre a democracia. O que quer dizer com isso?
Philippe Schmitter - Tirei mesmo do rap. Nem sei se é palavra dicionarizada.
A ideia é que, em períodos de mudanças na divisão de trabalho, os novos conceitos torpedeiam os antigos e, nesse processo, as pessoas perdem a noção de pertencimento a um grupo estabelecido.
Hoje, ninguém ousaria falar no papel do proletariado. Isso aparta pessoas de círculos sociais e identidades que antes tinham. Elas se sentem isoladas e manipuladas. É uma combinação de isolamento com ressentimento.
• Quais as implicações disso?
Ressentidos não votam, e há um declínio na presença em eleições que permeia todas as democracias. Há também um avanço populista e um colapso dos partidos tradicionais centristas.
A consequência mais documentada é a desconfiança das instituições políticas.
Isso é independente da corrupção –a corrupção faz parte da equação em alguns países, mas em outros, como o Chile, pouco corrupto, os sintomas são os mesmos.
• No Brasil, partidos pequenos venceram em cidades importantes. Isso é um sintoma?
Outra característica deste momento da democracia é o surgimento de partidos de margens. O Brasil, no entanto, sempre teve muitos partidos em função –ou disfunção– do federalismo.
• Mas eles só compunham governos, agora assumiram.
Não surpreende. É a mesma coisa que acontece na França ou na Itália. Às vezes é à esquerda, como o Podemos.
• O sr. escreveu sobre uma volatilidade de eleitores. Isso muda os governos, também?
Se eleitores são mais voláteis, governos também o serão. O "turnover" [alternância de poder], Deus do Céu! A média na Europa era de oito a dez anos. Hoje, a rotação é muito mais frequente.
• Há algum problema inerente ao "turnover" alto?
Na teoria, não. Historicamente, é pouco usual. O ponto é ver se as políticas terão continuidade. Isso vai depender de saber se os partidos vão lutar pelo centro do espectro político. Depois da Segunda Guerra, esquerda e a direita centristas dominaram eleições e a rotatividade não teve consequências.
• No Brasil se fala sobre um aventureiro chegar ao poder. A chance de isso acontecer é maior neste momento?
Sim. Esses partidos de margens ganharam força e os de centro precisam se preocupar com a perda de eleitores. Estão menos centrípetos e mais centrífugos ao tentar ter apelo.
Algo mais sobre eleições. Vocês, jornalistas, tendem a culpar os políticos pela abstenção, pela força dos populistas e pela desconfiança das pessoas nas instituições.
É o contrário. O problema real são os cidadãos. Os políticos se esforçam para se comunicar com os eleitores e têm fracassado.
Para dialogar, é preciso fazer isso por meio de categorias, e geralmente isso significava grupos de trabalhadores, de bairros, associações empresariais etc.
Essas organizações perderam sua capacidade de ser um espaço de identificação e solidariedade interna.
Hoje há um número muito grande de circunstâncias e não há maneira de falar com elas todas. A sociedade civil é que está em declínio.
• Permita-me discordar. Em 2013, tivemos manifestações que, ainda que não fossem de uma categoria, eram de pessoas que compartilhavam ideais ou projetos. E isso aconteceu novamente durante"¦
O impeachment de Dilma, eu sei. Passeatas são um produto da sensação de anomia. As pessoas estão ressentidas.
O problema é que essas megamanifestações não deixam organização com a qual se possa lidar ou negociar, que são elementos importantes das democracias liberais –elas têm poder para influenciar o comportamento dos membros, por exemplo, na decisão de entrar em greve.
Eu dava aulas no Egito pouco antes da revolução. É o exemplo dos protestos gigantescos que a internet potencializa. Quando acabou, as pessoas não deixaram traço. Elas foram importantíssimas e derrubaram o Mubarak, mas depois sumiram e foi fácil para os militares tomar o poder novamente.
• Qual a orientação aos políticos agora?
Historicamente, a resposta seria reformar os partidos. Acho que eles estão mortos, no entanto. São um instrumento de representação ineficaz. Há uma pulverização de candidatos em mais partidos ou então os políticos fingem que não são de partido nenhum –Donald Trump é o exemplo perfeito.
O populismo agarra os indivíduos: as pessoas não sentem solidariedade dentro de grupos, mas se identificam com uma pessoa. O populismo é justamente centrado em uma pessoa que diz ser capaz de resolver os problemas.
Partidos podem persistir por serem importantes para eleições ou para formar um parlamento, mas não vão ter a importância que tiveram.
• Há alternativas a eles?
Uma é a ideia de dar ênfase à participação dos cidadãos. Um dos casos mais estudados é [do orçamento participativo criado inicialmente em] Porto Alegre. A ideia é a de democracia participativa.
A outra direção é a oposta: fortalecer as instituições guardiãs. Distribuir poder a órgãos deliberadamente não democráticos, gerenciados por tecnocratas. Nessa direção, aumentam o número de agências regulatórias e o papel das cortes. A ideia é que o futuro da democracia está na despolitização. Isso tem apelo.
• O que o senhor prevê é que as eleições serão "pro forma"...
Não prevejo nada. Apresentei os dois modelos e, para ser sincero, não gosto de nenhum. Sou um democrata.
Fonte: Felipe Gutierrez – Folha de São Paulo (12/11/16)