quarta-feira, 29 de julho de 2015

A oposição sobe o tom (Luiz Carlos Azedo)





Na próxima semana, o PSDB começa a veicular inserções de 30 segundos convocando “os indignados” para a manifestação nacional convocada para 16 de agosto. A decisão da cúpula tucana coincide com as declarações do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso de que não seria hora de conversar com a presidente Dilma Rousseff e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, como chegou a sugerir o ministro da Comunicação Social, Edinho Silva.

Na mesma linha, o presidente nacional do PSDB, senador Aécio Neves (MG), critica as tentativas da presidente Dilma Rousseff de “dividir a crise” com os governadores, numa alusão ao encontro com eles programado pelo Palácio do Planalto para amanhã. O tucano também atacou as pressões do governo junto dos ministros do Tribunal de Contas da União (TCU) no sentido de que aprovem as contas de Dilma Rousseff de 2014.

Aécio aposta nas manifestações de rua para neutralizar a ofensiva do Planalto que visa recompor a base de apoio no Congresso. Nos bastidores, não esconde a preferência pela cassação de Dilma e do vice-presidente Michel Temer pelo Tribunal Superior Eleitoral, onde tramitam três pedidos de impugnação da chapa vitoriosa nas eleições por crime eleitoral, todos feitos pelo PSDB. O impeachment de Dilma não interessa ao tucano, que prefere a convocação de novas eleições.

É o que dá a entender: “O que vai acontecer depende mais do governo e do PT do que dos partidos de oposição. O que queremos é que as instituições funcionem e façam o seu trabalho. Eu digo uma coisa: se um dia eu tiver a oportunidade de ser presidente da República, será unicamente pelo caminho do voto, não por outra saída qualquer. Mesmo porque, ninguém conseguirá enfrentar a profunda crise que atravessamos se não for legitimado pelo voto.”

Para o tucano, porém, a presidente Dilma só agrava a situação a cada dia, o que deixa a incerteza de cumprir seu mandato até o fim. O Palácio do Planalto, porém, trabalha para evitar um pedido de impeachment, que poderia ser precipitado pela rejeição de suas contas de 2014 no TCU. É o que bastaria para o presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em rota de colisão com a presidente da República, colocar na ordem do dia os 12 pedidos de impeachment que guarda na gaveta.

Uma ala do PMDB conspira para levar adiante o impeachment, na esperança de que Michel Temer assuma o Planalto. Essa ala ainda mantém relações com o ex-presidente Lula e imagina a formação de um governo de união nacional. Temer, porém, tem dado manifestações ostensivas de lealdade a Dilma e se mantém longe da conspiração.

A voz das ruas
O PSDB subiu o tom do discurso contra Dilma à medida que avançam as denúncias e os julgamentos da Operação Lava-Jato, uma vez que as investigações chegam cada vez mais perto do Planalto e de Lula. E também em consequência da situação econômica, com inflação em alta e recessão aberta.

Entretanto, a oposição não sabe bem o que fazer. Os principais líderes tucanos preferem que Dilma permaneça no cargo, aos trancos e barrancos, sem recuperar a popularidade, e Lula vire suco com a Operação Lava-Jato. Nesse cenário imaginário, ambos seriam derrotados, com o PT, nas eleições de 2018.

Esse posicionamento, porém, pode ser alterado se as manifestações de rua programadas para 16 de agosto forem de grande porte, como as de 15 de março passado. Por enquanto, o clima não é esse. As organizações que convocam a manifestação competem entre si e são avessas aos partidos políticos.

O que pode dar mais combustível às manifestações é o programa de tevê e rádio do PT do próximo dia 6. Dilma participará do programa ao lado de Lula, sob direção do marqueteiro João Santana. Se errarem a mão, podem provocar uma reação popular, como ocorreu após o pronunciamento da petista no Dia da Mulher, 8 de março.

O PT ensaia um discurso nacionalista contra a Operação Lava-Jato, supostamente em defesa da Petrobras e da engenharia nacional, que está sendo acoplado à narrativa de que o juiz Sérgio Moro violaria direitos e garantias individuais. Até agora, não colou na opinião pública.

Esse discurso deve recrudescer com a aceitação da denúncia, pela Justiça Federal, contra o presidente da Odebrecht, Marcelo Odebrechet, e mais 12 envolvidos, que agora são réus, e a Operação Radioatividade, que deu início à 16ª fase da Lava-Jato, cujo foco é a Eletronuclear, empresa estatal encarregada da construção de Angra 3.

Foram bloqueados R$ 20 milhões do diretor-presidente licenciado da Eletronuclear, Othon Luiz Pinheiro da Silva, o mesmo valor do executivo da empreiteira Andrade Gutierrez Flavio David Barra e outros R$ 20 milhões da Aratec Engenharia, Consultoria & Representações Ltda., pertencente a Othon Luiz.

Os dois investigados foram presos na manhã de ontem, no Rio de Janeiro. Respeitado na comunidade científica e nos meios militares, o vice-almirante reformado Othon Silva é o grande artífice do programa nuclear brasileiro e nega ter recebido R$ 4,5 milhões em propina na construção de Angra 3.

Fonte: Correio Braziliense

'Quem lincha sabe que tem respaldo social no Brasil' (Ariadne Natal/entrevista)


O caso de Cleidenilson Pereira da Silva, de 29 anos, espancado e esfaqueado até a morte no início de julho após ser amarrado a um poste em São Luís, no Maranhão, chocou o país. Cercado e atacado por um grupo após uma acusação de roubo, ele foi linchado em plena luz do dia. No Rio de Janeiro, na segunda-feira, Newton Costa Silva também foi espancado até a morte na favela da Rocinha, acusado de tentar matar uma mulher e seus dois filhos.

Em comum, os dois casos trazem à tona a inegável brutalidade dos linchamentos, um fenômeno que tem chamado a atenção no país.

Apesar de justiçamentos pelas próprias mãos configurarem crimes de homicídio ou lesão corporal, o comportamento de alguns setores da população, de parte da polícia e até mesmo da mídia revela por vezes um clima de aceitação da violência quando cometida contra um suposto criminoso, na opinião da pesquisadora Ariadne Natal, doutoranda em sociologia pela USP.

"Quem lincha sabe que tem respaldo social para isso no Brasil. Quem está ali linchando sabe que não haverá depoimentos de testemunhas nem maiores investigações ou punições", afirma Natal, que analisou 589 casos de linchamento na região metropolitana de São Paulo entre 1980 e 2009.

Outro levantamento do Núcleo de Estudos da Violência (NEV), também da USP, identificou 1.179 linchamentos entre 1980 e 2006 em todo o Brasil.

Eis a entrevista.

Recentemente temos visto linchamentos motivados por assaltos e pequenos delitos, quando, em geral, reações semelhantes tendem a ocorrer após crimes chocantes como estupros de crianças. Há uma nova tendência nesse sentido ocorrendo no Brasil, de banalização da violência e da intolerância?

Diferentemente da Justiça, que fixa penas proporcionais à gravidade do crime, o linchamento não tem a mesma lógica. Um linchamento pode ser motivado por crimes contra a vida, contra os costumes - como estupros -, contra o patrimônio. É difícil indicar se há uma tendência clara de banalização, pois há ocorrências de todos os tipos atualmente. No entanto, nos 589 casos que analisei na região metropolitana de São Paulo, entre 1980 e 2009, os motivos variaram ao longo do tempo.

Na década de 1980 havia mais linchamentos por crimes contra o patrimônio. Depois, nos anos 1990 e 2000, essa proporção foi caindo e crimes mais graves passaram a ser respondidos com linchamentos. Podemos estar assistindo a uma nova onda, mas isso também é relativo. Cada vez que ocorre um caso de repercussão nacional, há mais cobertura da mídia. E, dependendo de como os casos são retratados, pode haver um efeito de "espelhamento", quando as pessoas se sentem compelidas a fazer o mesmo se deparadas com uma situação semelhante.

Quem são as pessoas com mais chances de serem linchadas no Brasil?

O perfil da vítima de linchamento é muito similar ao da vítima de homicídio: 95% homens, jovens, a maior parte entre 15 e 30 anos. É raro uma mulher ser vítima de linchamento, embora haja casos famosos, como o do Guarujá no ano passado. Em geral também são pessoas pobres. A maior parte dos linchamentos ocorre em regiões carentes e periféricas, seja em grandes metrópoles ou cidades do interior, onde o Estado é pouco presente.

O linchamento é previsto no Código Penal como crime específico? Torná-lo crime hediondo, por exemplo, poderia coibir sua prática?

O linchamento não é um tipo penal, ou seja, não existe o crime específico de linchamento no Código Penal brasileiro. Um caso de linchamento pode ser registrado como tentativa de homicídio, homicídio ou lesão corporal. Não acredito que o endurecimento penal possa ter um impacto sobre esse fenômeno. Precisamos promover mudanças nas instituições, incluindo as polícias, o Judiciário e sobretudo a sociedade, que considera linchar alguém algo aceitável.

Além disso, é um crime de difícil apuração. Apesar de ocorrer à luz do dia, em público, há um pacto de silêncio após o término. Juntando a isso a característica da Justiça brasileira, que busca individualizar a ação de cada pessoa, por não prever crimes coletivos, os linchamentos tornam-se situações onde a punição é rara.

Qual é o papel da polícia nisso? Como policiais tendem a se comportar quando chegam a uma cena de linchamento e como poderiam atuar por mais punição?

O linchamento ocorre a partir de uma suposta acusação inicial. Seja um estupro, um abuso ou um roubo. E, quando a polícia chega, de forma geral, vai lidar com aquela situação inicial. A polícia está ali para investigar o roubo, e o linchamento costuma passar a reboque, sem ser problematizado, sobretudo se a vítima já estiver morta.

Frequentemente o crime menos grave, de roubo ou assalto, vai ser o foco da atenção, e não o de lesão corporal ou até homicídio. A polícia não busca os responsáveis, apesar de estar diante de uma pessoa machucada ou morta, e a sociedade aceita isso como natural. Até mesmo a mídia aceita isso como natural, por não questionar a ação da polícia e a ausência de investigações.

Como explicar a atitude da polícia?

A atitude policial diante de um linchamento no Brasil pode variar da prestação de socorro até a participação, omissão e mesmo a incitação. No meu estudo, por exemplo, encontrei um exemplo de linchamento incitado por policiais.

Que tipo de participação os policiais tiveram nesse caso de incitamento? Há episódios recentes semelhantes?

Em São Paulo, na década de 1980, um rapaz foi acusado de roubar um taxista. A PM chegou e prendeu esse homem. Ao longo do caminho para a delegacia, os policiais paravam em pontos de táxi e alertavam que estavam com o suspeito. Esses taxistas começaram a seguir o carro da polícia e, quando a viatura chegou à delegacia, foi estacionada a uma distância do prédio policial, deixando o rapaz vulnerável na rua, e ele foi atacado pelos taxistas. Foi um linchamento programado, visivelmente incitado por policiais e documentado pela mídia na época.

No caso recente ocorrido no Maranhão (no início de julho), há imagens que mostram um policial chegando ao local onde o rapaz havia sido linchado. Mas, em vez de tentar socorrer a vítima ou preservar a cena do crime e deter os responsáveis, esse policial saca o celular do bolso e começa a filmar também.

É um cenário contraditório. De um lado, a ação da polícia é importante para impedir que uma tentativa de linchamento acabe em morte. E, ao longo dos anos, a ação da polícia fez com que os linchamentos se tornassem menos letais no país.

Mas a atitude perante os linchadores, no entanto, continua a mesma do passado. Por via de regra não são identificados, detidos, interrogados, e o anonimato coletivo é preservado, sem que ninguém seja nem sequer processado.

Com base nessas conclusões, é possível afirmar que o linchamento é um crime praticamente impune no Brasil? Até mesmo com filmagens em casos recentes?

No Brasil o linchamento é um crime de difícil elucidação e há grandes dificuldades para apontar as responsabilidades individuais de cada envolvido. Apesar da omissão e da cultura de aceitação da violência entre as forças policiais, até há tentativas incipientes de investigação. Quanto à impunidade, para ter uma ideia, de 589 casos analisados num período de 30 anos na região metropolitana de São Paulo, apenas um resultou em julgamento. E há muita subnotificação. Dependemos da mídia para saber, já que não há estatísticas oficiais.

Os vídeos podem ajudar, mas estas filmagens costumam ser feitas no calor dos acontecimentos, de forma irregular e muito movimento, e em geral a câmera foca na vítima, e não nos algozes.

No caso do Maranhão, a polícia conseguiu identificar uma facada no coração como a causa da morte do rapaz linchado, então provavelmente vão agora tentar identificar quem desferiu esse golpe, e essa pessoa, se encontrada, poderá responder pela morte do rapaz.

Uma pesquisa da USP listou 1.179 linchamentos ocorridos no Brasil entre 1980 e 2006, sendo 568 em São Paulo, 204 no Rio de Janeiro, e 180 na Bahia, dentre outros Estados. O que se pode fazer, de forma imediata e tangível, para tentar coibir este tipo de crime?

É preciso que a polícia veja os linchamentos como um problema de segurança pública, e não uma solução. O linchamento não pode ser encarado como uma punição aceitável a quem é acusado de um crime. Trata-se de uma outra forma de violência, outro crime, que merece igual investigação.

O linchamento tem que ser problematizado como algo condenável, e os responsáveis precisam ser punidos. Se houvesse conduta diferente dos policiais ao chegar a uma cena de linchamento, teríamos ao menos uma sensação de receio entre pessoas que um dia possam cogitar participar de algo dessa natureza.

Quem lincha sabe que tem respaldo social para isso no Brasil. Quem está ali linchando sabe que não haverá depoimentos de testemunhas nem maiores investigações ou punições. Do contrário, como explicar alguém que se dispõe a assassinar uma pessoa em praça pública, sem esconder identidade, à luz do dia, sendo até filmada? As ações dos que assistem, da sociedade, da polícia e das instituições dão a essas pessoas a certeza de que estão fazendo algo certo.

Fonte: Jefferson Puff  - (BBC Brasil, 24/07/15).

segunda-feira, 27 de julho de 2015

Sobre crises, golpes e saídas (Marco Aurélio Nogueira)





O tema das crises é polêmico. O uso comum do termo sugere cenários apocalípticos, mas sua raiz etimológica não: em grego, krisis significa essencialmente a abertura de uma situação à espera de um desfecho – um momento de decisão, em que se define a sorte de um processo político, de um governo ou de um paciente. Toda crise contém a semente de algo novo. Nesse sentido, ela valoriza o manejo, a direção: é a hora de o talento se sobrepor às imposições da realidade.

No mundo atual, tudo está "em crise": da economia e do Estado à política e à sociabilidade. A modernidade capitalista, ao se radicalizar, fez com que nada mais pudesse ter estabilidade e funcionar sem altas doses de incerteza. A sociedade não tem como se reproduzir sem ajustes sucessivos. Implodem-se as instituições dedicadas à organização e ao direcionamento (como os partidos políticos), com o que se vai projetando uma complicada "crise de autoridade e hegemonia": os que controlam o governo não conseguem mais dirigir e abusam da coerção, da fraude e da corrupção.

No Brasil, em particular, depois de um período em que os governos proclamaram que o País estaria imune a problemas e que o avanço social havia se tornado "definitivo", entramos em fase depressiva, na qual o tom do ajuste e da dificuldade prevalece sobre o do sucesso e da felicidade.

Entre o primeiro momento – os anos Lula – e os dias de hoje, tivemos o governo Dilma, entre 2011 e 2014. Foi um período complicado, marcado pelo improviso, pela falta de liderança e capacidade de governo, pela tentativa fracassada de fixar uma "nova matriz econômica" e por um agravamento da disfuncionalidade do sistema político. O sistema perdeu o eixo, não tanto por suas regras, mas, sim, pelo fracasso de seus operadores: a "classe política" e os partidos.

O governo foi-se inviabilizando, até cair numa vala, bloqueada por todos os lados.

Dilma não teve como corrigir a rota, desprovida que esteve de habilidade, apoio e convicção. Nas eleições presidenciais de 2014, a crise já atingira nível agudo e o jeito foi esconder os problemas para ganhar as eleições e seguir em frente. Para isso, adversários foram agredidos e a presidente-candidata adotou uma postura falsa e demagógica. As urnas a beneficiaram, mas por pouco.

Seu segundo governo começou com a crise a pleno vapor. Não teve como usufruir de qualquer tipo de tolerância da sociedade ou dos políticos. A economia pedindo água, políticas públicas sendo desativadas, a base aliada se decompondo, o País atarantado, sem saber para onde ir. O encolhimento dos políticos, sua entrega à política pequena, o empobrecimento assustador da linguagem do poder, a ruindade do ministério, a falta de coordenação, tudo ajudou a que o governo, três meses após a posse, fosse jogado nas cordas, de onde não consegue sair.

As cassandras ressurgiram. Cresceu a imagem da crise que a tudo arrasta e contamina. Eduardo Cunha se julga vítima de um "golpe" do Planalto, Dilma Rousseff vê na oposição a seu governo uma atitude "golpista" e o PSDB associa a vitória do PT em 2014 a um "estelionato eleitoral". Cogita-se abertamente da queda de Dilma e de seu impedimento, como se o governo não mais existisse. Ninguém olha a crise nos olhos.

Coube ao senador Aloysio Nunes Ferreira (PSDB-SP) lembrar que "Dilma não é Collor", afastado da Presidência em 1992. "Dilma tem respeitabilidade pessoal, um partido e o apoio de movimentos sociais".

A associação oportunista entre crise e mudança de governo impede que se valorize a que há de avanço democrático no País.

Há ganhos importantes de transparência e fiscalização. Corrupção, trambiques, enriquecimento ilícito, manipulação política de empresas, financiamentos irregulares de pessoas e partidos, tudo está vindo à tona em escala inédita, sob o impulso de um eficiente trabalho institucional. O Poder Judiciário agigantou-se, a Polícia Federal, o Ministério Público e os Tribunais de Contas ganharam poder, a mídia cresceu em capacidade investigativa e de denúncia. A situação só não evoluiu mais positivamente porque falta mobilização social, não há liderança política de peso e o Parlamento está suspenso no ar, com vários de seus integrantes, a começar dos presidentes da Câmara e do Senado, investigados por transgressão. E, também, porque o governo não pode entregar seus anéis mais preciosos.

As vias para a saída da crise se estreitaram, mas não estão bloqueadas.

Sem iniciativa, o governo se fecha em copas: não negocia, não cede, não concede. Os políticos o atacam, mas não conseguem feri-lo de morte. No caos instaurado, o governo se equilibra e respira. Mas lhe falta o básico para reagir.

O espalhafatoso rompimento do presidente da Câmara com o governo não joga o País numa "crise institucional". É como insinuar que a continuidade das tensões provocadas pela Lava Jato ameaça o Estado democrático. Há, no entanto, uma evidente e complicada crise no País, que deita raízes na crise na economia, na governabilidade, na ética e na política.

O mais inteligente, agora, é ver como o avanço das investigações pode abrir espaço para a emergência de novas lideranças, para a busca de articulações que isolem os retrógrados, fortaleçam as instituições e reagrupem os democratas. Se um sistema político dá sinais de falência, outro desponta impulsionado pelo ativismo social e pela democratização que se vem processando desde os anos 1980. Toda crise, afinal, destrói, desorganiza e força a reorganização.

Se há um Eduardo Cunha querendo travar o governo, se o caos geral ameaça a economia, exaspera a sociedade e cria insumos para regressões institucionais, mas se há, ao mesmo tempo, indícios claros de que se está varrendo um tanto de entulho privatista, oligárquico e antirrepublicano, então os democratas (do governo e da oposição) deveriam conversar. Coisa, aliás, que já poderiam estar fazendo há tempo.

Marco Aurélio Nogueira é professor titular e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp

Fonte: O Estado de São Paulo (25/07/15)

"O governo Dilma é um desastre" (Roberto Romano)





• Professor da Unicamp diz que o Estado brasileiro funciona à base da corrupção e considera grave a situação da presidente

Ludmilla Amaral - IstoÉ

Doutor em filosofia e professor de Ética Política na Unicamp, Roberto Romano mostra ceticismo em relação ao futuro do País. Para ele, a crise política é estrutural e remonta ao processo de criação de um Estado de modelo absolutista. "No princípio absolutista, os governantes estão acima do cidadão comum e, portanto, não têm de prestar contas a ninguém. Há o controle do poder no plano central, mas não há autonomia dos municípios e dos Estados. Um País onde 70% dos impostos vão direto para o cofre do poder central é um país de exército vencido", critica.

Na avaliação de Romano, a crise se agrava quando uma presidente, no caso Dilma Rousseff, encontra sérias dificuldades para dialogar com a sociedade e escala auxiliares tão ou mais inábeis quanto ela. "Se somar a incapacidade de dialogo notório que a presidente tem com a incapacidade de seus auxiliares, você tem um governo que é esse desastre". Para um partido que vendeu esperança, na eleição de Lula, o quadro é grave, avalia. Na opinião do professor da Unicamp, equivoca-se quem diz que as instituições operam normalmente. Ele considera a intervenção estatal no BNDES uma prova de que a democracia ainda capenga no Brasil.

ISTOÉ - O senhor disse uma vez que "a inflação é um desagregador político muito forte". A crise no governo Dilma se dá por conta da alta dos preços?

ROBERTO ROMANO -A inflação é um ingrediente complicador. Ela quebra a capacidade que o ser humano tem de confiar. Esse fenômeno desagregador da inflação é o ponto essencial, mas não é o único ponto da crise política.

ISTOÉ - Quais são os outros pontos?

ROBERTO ROMANO -O fato de o nosso Estado ser ainda gerado para combater a democracia moderna. Dom João VI trouxe para cá um Estado contra revolucionário. O modelo trazido para cá é um modelo absolutista. Tanto que na primeira Constituição independente do Brasil há a figura de irresponsabilidade do chefe de Estado. No princípio absolutista, os governantes estão acima do cidadão comum e, portanto, não têm de prestar contas a ninguém. Há o controle do poder no plano central, mas não há autonomia dos municípios e dos Estados. Nós não temos municípios até hoje. É uma ficção. Um País onde 70% dos impostos vão direto para o cofre do poder central é um país de exército vencido. O poder central age em relação aos estados e municípios como um poder invasor, que controla tudo.

ISTOÉ -Como esses pontos influenciam na crise do governo Dilma?

ROBERTO ROMANO - O problema não é só essa questão da estrutura do Estado que é obsoleta. Você tem essa figura do chefe de estado que possui prerrogativas de imperador. Em vez de a preocupação ser com a estrutura da máquina do Estado, a preocupação é com as pessoas. Se a pessoa está distribuindo favores e as políticas sociais são transformadas em favores, quando a fonte dos favores diminui evidentemente que a popularidade também diminui. Eu sempre digo que o presidente brasileiro é um gigante de pé de barro. É um gigante, mas precisa da base aliada, dos acordos com as oligarquias, do dinheiro das empresas. Então, você tem um presidente que, ao invés de mandar no sentido absolutista, ele é mandado. E se ele tiver capacidade política, diplomática, ele pode se sair razoavelmente bem. Infelizmente a presidente Dilma não tem essa capacidade política e diplomática. Para piorar, ela escolheu muito mal os seus auxiliares.

ISTOÉ - De quem o sr. está falando especificamente?

ROBERTO ROMANO -
Veja os chefes da Casa Civil escolhidos pela Dilma: Erenice Guerra, Gleisi Hoffmann e Aloízio Mercadante. Eles não sabem conversar. Eles sabem mandar. E são desastrados. Então, se somar a incapacidade de dialogo notório que a presidente tem com a incapacidade de seus auxiliares, você tem um governo que é esse desastre.

ISTOÉ -Na semana passada, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, anunciou o rompimento com a presidente Dilma Rousseff. A crise se agrava na opinião do sr.?

ROBERTO ROMANO -Enquanto presidente da Câmara e também como deputado, ele não pode dizer que está rompendo em caráter pessoal. Ele está cometendo um atentado à Constituição e isso é gravíssimo porque ele não é do Executivo. Um técnico do Executivo até pode cometer erros constitucionais assim, mas quem elabora as leis em nome do povo como pode dizer que decidiu pessoalmente uma coisa que não pode ser decidida pessoalmente?

ISTOÉ - Como o sr. vê a atuação dele como presidente da Câmara?

ROBERTO ROMANO -Desde que assumiu a presidência da Câmara, ele tem defendido uma pauta que não é do interesse geral, e sim de facções. Hoje ele é líder de uma facção. Como deputado ele tem direito de liderar uma facção, mas como presidente da Câmara, não.

ISTOÉ -O sr. acha que o PMDB realmente terá candidato próprio em 2018?

ROBERTO ROMANO - É uma situação muito interessante, porque na época do Sarney, o PMDB era quem decidia tudo no governo. Passado esse período, eles têm só suportado governos. Na ditadura, o MDB tinha presença em todo o Brasil, e ampliou suas bases municipais. Isso faz com que sempre em toda eleição eles consigam uma base parlamentar, tanto de deputados como de governadores, bem razoável. O PSDB e o PT não aproveitaram seus oito anos de governo para ampliar suas bases municipais, então eles continuam dependendo muito do PMDB para ter a famosa base parlamentar de apoio. No entanto, os peemedebistas ganham cargos, mas do ponto de vista macro, eles continuam coadjuvantes, o que não interessa. Isso, ao que parece, mudou. O problema é quem será o candidato deles. Existe a possibilidade de ser o Eduardo Paes, prefeito do Rio. O Cunha, antes cotado, se isolou no próprio PMDB, além de ter rompido com o Ministério Público e o Supremo. Foi um pulo mortal sem rede. Um ato de imprudência política.

ISTOÉ - E o papel do vice-presidente Michel Temer nesse momento?

ROBERTO ROMANO -O Temer é uma garantia de que a presidente não vai continuar fazendo impolidez ou falta de tato maior. Por enquanto ela está afastadinha e eu acho que é o mínimo que ela pode fazer. Não porque quando ela fala toca panela, não. É porque efetivamente a situação dela é muito grave.

ISTOÉ - O senhor enxerga alguma semelhança entre as situações de Collor, em 1992, e a de Dilma agora?

ROBERTO ROMANO -O Collor conseguiu muita impopularidade com o golpe que ele deu nas poupanças. Ele confiou demais na sua popularidade e arruinou o seu relacionamento com todas as classes brasileiras. Ele pertencia a um partido minúsculo que dependia vitalmente de outros partidos também, mas ele nunca teve, por exemplo, a base sólida do PMDB. Já a Dilma recebeu do Fernando Henrique e do Lula essa capacidade de aliança com grandes partidos. Mas Dilma não levou adiante isso graças a inabilidade de seus negociadores que agiram de forma imperial. Boa parte dessa erosão que a Dilma está vivendo já foi eclodida no segundo governo de Lula, quando essa aliança com o PMDB já começou a periclitar.

ISTOÉ -Mas os escândalos também começam a se aproximar do gabinete da presidente... Inclusive há uma outra CPI em gestação, a do BNDES, que pode ser arrasadora para o governo. Há quem diga que os estragos podem ser maiores do que o Petrolão.

ROBERTO ROMANO - Há um mantra entre meus colegas de que as instituições estão operando normalmente. Isso é conversa mole para boi dormir. Não estão operando normalmente e nunca estiveram operando normalmente. Não foram resolvidos os problemas de estrutura do Brasil em termos democráticos. O BNDES é uma instituição pública que tem dinheiro da população e que operava de maneira sigilosa até agora. Como isso pode ser normal numa democracia? Pega-se bilhões da população e coloca-se na mão de Eike Batista. Isso é normal? Não se justifica a atitude de gerir o BNDES no sigilo. É preciso, sim, fazer uma investigação das contas do BNDES, do Banco do Brasil, de todas as estatais para se constatar quanto está sendo subtraído dos planos propriamente econômicos.

ISTOÉ - Num capítulo do livro "Uma Oveja Negra al Poder" diz-se que Lula teria dito ao presidente uruguaio que ele teve de lidar com "coisas imorais, chantagens." Esse é o cenário da política brasileira?

ROBERTO ROMANO -O Estado brasileiro funciona à base da corrupção. Em todo o Estado do mundo ocorre essa negociação e essa tomada de cargos, mas tal como existe no Brasil é uma coisa absolutamente delirante. Não há outra saída, porque não houve o parlamentarismo. A Presidência da República é quase irresponsável e o Parlamento não é responsável. Não há o princípio da responsabilidade. O Congresso não assume a plena responsabilidade pela governança do País, ele ou chantageia o Executivo ou é subserviente a ele. Isso vem acontecendo desde a morte do Getúlio.

ISTOÉ -Em uma de suas colunas, o senhor disse que "usar utopia, como faz Luiz Inácio Lula da Silva, é pintar cinza sobre cinza."O que o senhor quis dizer com isso?

ROBERTO ROMANO - Em 1987, eu escrevi um artigo chamado "Lula, o senhor da razão", e eu mostrava claramente que ele tinha posição extremamente conservadora, muito carismática e muito ligada a sua pessoa, ele era o dono da razão. Isso não coaduna com um País democrático e com um partido democrático. Desde a greve do ABC, o Lula sempre é o protegido, nunca se pode criticar o Lula, o que faz com que ele seja uma continuidade de personalidade como Getúlio Vargas, Perón, e etc. Ele não tem a característica de um líder colegiado, tanto é verdade que hoje o PT só tem o Lula. Todas as tentativas de lideranças regionais do PT foram cortadas em favor do Lula. Hoje, se o Lula faltar, o PT está sem uma alternativa. O Lula adota um modo muito antigo de governar o País. Ele atua na base do caciquismo. O Lula é um cacique.

ISTOÉ -As investigações da Lava-Jato têm chegado cada vez mais perto de Lula. O que isso pode significar para a história do ex-presidente e para o futuro do PT?

ROBERTO ROMANO -Vamos supor que seja provado que ele fez lobby e tudo mais. Vai ser mais uma decepção para a população brasileira. Desde Getúlio Vargas nós vendemos pais do Brasil e o Lula sempre dizia que era o pai do Brasil. O caudal de tristeza e da perda de fé pública em termos de perda de confiança nos líderes vai ser algo muito grave. Um slogan muito usado na campanha do Lula era "a esperança venceu o medo". O que está acontecendo é que o medo está voltando e a esperança chegando a ponto mínimo. A popularidade de Dilma ilustra o índice da diminuição do nível da esperança. Eu diria que o povo brasileiro tem 7,7% de esperança na sua sobrevivência. E isso é muito grave.

"Não há condições políticas para um impeachment" (Brasilio Sallum Jr./entrevista)





• Estudioso da crise que culminou na queda de Collor, o sociólogo diz que não existe uma articulação consistente que leve ao afastamento da presidente

Guilherme Evelin e Vinius Gorczeski – Época

O sociólogo Brasilio Sallum, professor titular cia Universidade de São Paulo (USP), estudou minuciosamente o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o primeiro na história da América Latina. Seu estudo acaba de sair na forma de livro peía editora 34, com orelha assinada pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, num momento mais que oportuno. A palavra impeachment está de volta, na boca até da presidente Dilma. Como escreve Fernando Henrique, a tese de Sallum é que o processo de impeachment de Collor inaugurou o presidencialismo de coalizão - e o sistema, gestado para dar estabilidade política ao país, sofre agora percalços consideráveis. Pessimista em relação ao futuro imediato do país, Sallum não vislumbra o impeachment de Dilma nem saídas fáceis para a crise.

ÉPOCA - Alguns opositores da presidente Dilma Rousseff apostam que uma mobilização popular em agosto poderá ser o gatilho para detonar um processo de impeachment. No caso do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, houve uma mobilização importante nas mas. Com Dilma, isso poderá se repetir?

Brasilio Sallum Jr. - Contra o governo Collor, havia um processo de mobilização, que se manifestava em iniciativas da CUT, da CNBB, da OAB. Era uma mobilização razoável, mas não muito extensa. Até que surgiram as revelações do Pedro Collor dizendo que o PC Farias era o testa de ferro do presidente. Elas foram uma espécie de estopim de um barril de pólvora que estava crescendo. A demanda popular é importante porque ela dá legitimidade ao impeachment. Mas só a mobilização popular não basta. Depois dessas denúncias, houve uma articulação político-partidária do PT, do PSDB e do PMDB. Um pedido de CPI parado 110 Congresso ganhou força, e ela foi instaurada, somando-se à articulação da sociedade até então sem força. Contribuiu ainda a fundação do Movimento Ética na Política. Essa coalizão política foi fundamental, porque é preciso obter dois terços de votos da Câmara para que o processo de impeachment avance para julgamento no Senado.

ÉPOCA - O que tornou possível aquela coalizão contra Collor, apesar dos interesses políticos divergentes de partidos que depois acabariam se tornando rivais?

Sallum Jr. - A gente acabava de sair de um processo de democratização, que tinha produzido a democracia como valor. Grupos como OAB e CNBB elaboraram a campanha pelo impeachment do Coílor com essa retórica. Não havia experiência de impeachment na América Latina até então. Alguns políticos que participaram de todo aquele processo tinham muita cautela em relação ao que poderia acontecer no país se Collor fosse afastado. Só explicitaram a demanda por impeachment ao receberem a documentação contendo provas. A preocupação com a preservação da democracia era um elemento de unidade da coalizão. A articulação avançou também porque os parlamentares foram convencidos não apenas de que o presidente Collor não tinha mais condições de governar, mas também de que o próximo presidente -àquela ocasião o vice Itamar Franco - conseguiria articular uma coalizão que não os excluísse. Quarenta por cento do Congresso sustentava o governo Collor. Para quebrar essa resistência, não bastava dizer que Collor recebeu recursos do PC Farias. A dinâmica poiítica pede que o grupo que sustenta o presidente se desloque, e ele se deslocou em torno de uma coalizão do Itamar. O Collor atuava de um jeito que parecia que o Congresso não tinha relevância. O impeachment foi uma afirmação do Legislativo. Quando Itamar entrou, cie demorou para montar ministério e, quando o fez, fez um governo de coalizão, mostrando que o Congresso era relevante. Esse elemento foi chave.

ÉPOCA - O senhor vê a possibilidade de repetição de uma coalizão contra Dilma?

Sallum Jr. - Ainda não vejo essa possibilidade. As pessoas que pedem impeachment agora têm um problema. A presidente foi reeleita. Há uma discussão jurídica sobre se este governo e o anterior são uma coisa só e, portanto, se um crime noutro governo pode levar á perda do atual mandato. É preciso resolver, primeiro, essa questão. Outra questão-chave é saber para qual lado essas forças que pensam o impeachment se deslocarão. É preciso haver alguma coalizão partidária qualquer. Contra o Collor, você tinha um processo de unanimidade. Os grupos estavam mobilizados numa só direção. Hoje, há uma divisão. Temos uma fragmentação de demandas, vários coletivos, mas todos sem diretrizes e sem elementos para o qual as forças se polarizem. Existe um conjunto de partidos e parlamentares que tem derrotado o governo sistematicamente. Nem sempre pelos melhores motivos. Esse é um exemplo da gravidade da nossa crise. Você tem uma situação em que os agentes parecem não ter um destino comum, nem ao menos horizontes em disputa. Os agentes, os partidos, as forças políticas não desenham um futuro que seja atraente e que force uma articulação em prol disso. Nem governo nem ninguém aponta um horizonte para além dessa crise. Daí resulta uma boa dose da desesperança sobre nosso futuro.

ÉPOCA - Essa falta de horizontes se deve à falta de grandes lideranças políticas?

Sallum Jr. - Estamos no fim de uma época, dá ascensão do movimento de democratização que produziu a estabilização poiítica no Brasil. Esse grupo que vinha de longe ou morreu ou foi atingido pela corrupção e se retirou da vida pública. Ele é substituído por uma nova geração, sem lideranças de peso, em todos os partidos. Parte das lideranças do PT está presa. Metade do PSDB envia cartas para a Câmara contra o projeto do "distritão" e outra vota a favor desse projeto. Há uma dificuldade de gestão e articulação dentro dos próprios partidos. No processo do Collor, os partidos e suas lideranças foram muito hábeis em esperar que o fruto amadurecesse. Mas hoje, por enquanto, não vejo amadurecimento político suficiente, nem um elemento óbvio que resulte em impeachment. Não significa que não haja no futuro. Mas é preciso haver um grupo que vislumbre e atraia aliados para isso.

ÉPOCA - Na orelha de seu livro, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu que o impeachment deu forma ao presidencialismo de coalizão. Hoje,estamos assistindo ao colapso desse sistema?

Sallum Jr. - Não acho que seja uma crise do presidencialismo de coalizão, mas desta coalizão. Temos um sistema que funciona sob a liderança e a autoridade do presidente. Quando ele perde a autoridade, o sistema não funciona direito. A liderança que o presidente exerce é quase insubstituível. Isso, infelizmente, falta à presidente Dilma Rousseff. Ela não consegue produzir uma diretriz entre os aliados. Isso produz uma desorganização do processo legislativo e de gestão pública muito forte. A perda de autoridade tem a ver com o jeito que a campanha eleitoral foi tocada, muito aquém dos padrões desejados. Houve mentira. Da forma como foi obtida a vitória, criou-se um enorme ressentimento. A própria presidente é culpada por isso. No comício da vitória, ela não falou o nome do adversário. Depois, ela resolveu se envolver na disputa da presidência da Câmara e arrebentou a coalizão.

ÉPOCA - Dilma tem condições de se recuperar e terminar bem seu mandato?

Sallum Jr.- Ela tem tempo para isso, mas não sei se ela tem capacidade. A gente não sabe que gato vai sair dessa toca. No fundo, não depende SÓ dela. Depende do conjunto das forças e como elas se organizam. E não sabemos quanto tempo vai demorar o processo recessivo que vivemos. Outro problema é que a presidente tem uma dificuldade de gestão e claramente não se educou na arte de tázer política. Isso toma muito difícil a saída.

ÉPOCA - O senhor não vê então saída para essa crise?

Sallum Jr. - Não há crise que não seja superada. O processo político vai produzir alternativas. Mas não sou otimista de que serão imediatas. Nem sei que direção ela vai tomar. A crise que vivemos é maior que aqueia do Collor, mais pesada, complexa e complicada, e as saídas são menos óbvias e menos fáceis de vislumbrar. Há duas razões principais: a falta de autoridade da presidente e a falta de projeto para o futuro. Há uma polarização entre liberais e desenvolvimentistas que não ajuda a apontar uma saída da crise. Vamos fazer ajustes, mas qual a nossa meta? Para onde vai o país? Agora não é mais a democracia que está em jogo. É uma reorientação do país no cenário internacional e num mundo novo que surgiu dos anos 1980 para cá. Estamos imaturos para discutir essa nova situação do capitalismo mundial, em que não podemos mais nos fechar em nossos próprios territórios. A maioria dos desenvolvimentistas professa um nacionalismo muito defensivo como forma de enfrentar a crise. Ou bem mudamos essa visão e nos tornamos competitivos no mercado mundial, inovando na indústria, ou vamos encolher a cada dia. Em vez de nos defender das vicissitudes do mundo, poderíamos participar ativamente de sua construção. Isso daria um horizonte.

Conservadorismo com sutilezas (Marcos Nobre)




A farra do boi que marcou a atividade do Congresso no primeiro semestre se encerrou. Nada indica que vá se repetir no segundo semestre. Os lances de cabo de guerra e as chantagens vão continuar, evidentemente. Mas já não é mais necessário promover um show pirotécnico para tentar desviar a atenção do que realmente importa para o mundo da política oficial. Aos trancos e muitos barrancos, foram aprovados o ajuste fiscal e o financiamento privado de campanhas eleitorais. A partir de agora, a Operação Lava-Jato vai tomar conta do noticiário.

Nem por isso se deve perder a oportunidade de tirar lições desse período de montanha-russa parlamentar, especialmente na discussão de temas de sociedade polêmicos, como é o caso da redução da maioridade penal. Desde a eleição de 2014, um bordão antigo reapareceu e ganhou especial destaque nos últimos tempos: a população brasileira seria conservadora. Um indício estaria nas pesquisas de opinião sobre temas polêmicos. A prova irrefutável estaria na composição do atual Congresso, que seria um espelho desse conservadorismo de fundo.

De acordo com as últimas pesquisas realizadas pelo Datafolha, a maioria se mostra favorável à aceitação do homossexualismo, contra a pena de morte e a posse de armas, entende que a pobreza decorre da falta de oportunidades iguais. Em termos percentuais, há uma divisão entre quem se identifica como de direita ou como de esquerda. As pesquisas indicam ainda que há uma maioria favorável à redução da maioridade penal e à proibição do uso de drogas, que entende que a criminalidade é causada pela maldade dos indivíduos e que considera que acreditar em Deus torna as pessoas melhores.

Como enxergar em uma tal divisão de opiniões a confirmação irrefutável de um conservadorismo de base? Quando se olha para pesquisas como essas, o máximo que se pode razoavelmente dizer é que o país se encontra dividido em questões polêmicas, variando conforme o tema em disputa. É verdade que se pode definir conservadorismo de outras maneiras, ou mesmo questionar a metodologia das pesquisas de opinião. Mas é de um jeito bem pouco afeito a sutilezas que o assunto tem sido tratado no debate público.

Claro que falar em falta de sutileza já é um elogio no caso do conservador tipo pitbull. Não há como discutir com alguém que coloca uma questão difícil como a da redução da maioridade penal em termos de uma escolha entre ver o próprio pai assassinado em pleno dia em praça pública ou adotar a pena de morte para o adolescente perigoso que poderia fazer isso. O desafio aí é não cair na armadilha de aceitar uma disputa política nesses termos.

Mas uma real falta de atenção às sutilezas afeta muitas vezes o anticonservadorismo militante. Não é razoável afirmar que uma mesma pessoa seja consistentemente conservadora a respeito de todos os temas. Basta olhar as pesquisas sobre temas polêmicos para chegar a essa conclusão. E, no entanto, ao encontrar alguém favorável a uma medida conservadora, a reação de quem a combate é, no mais das vezes, de fixar automaticamente essa pessoa como conservadora em todas as frentes. Toma a parte pelo todo, rotula, perde a complexidade de cada posição política particular. E faz saltar pontes que poderiam permitir uma aliança em relação a outros temas que dividem a sociedade, nos quais a posição dessa mesma pessoa pode ser muito diferente.

É como se houvesse um impedimento lógico: alguém que se considera de esquerda não pode ser ao mesmo tempo a favor da redução da maioridade penal, por exemplo. E, no entanto, se as pesquisas estão certas, não são poucas as pessoas que defendem simultaneamente posições como essas, contraditórias de um ponto de vista idealizado. Será mesmo o caso de idealizar a política dessa maneira, condenando sem apelação tanta gente aos muros do conservadorismo por suposto crime de contradição?

Não bastasse isso, a mesma operação que toma uma única opinião como indicadora da natureza de todo o sistema de opiniões de uma pessoa é estendida para abarcar a maioria da população. Se as pesquisas indicam que a população brasileira é majoritariamente conservadora a respeito de um determinado tema, ela passa a ser considerada conservadora em seu todo. Não por acaso, a estratégia política do conservadorismo militante consiste em tentar convencer as pessoas de que elas são de fato essencialmente, integralmente conservadoras.

Chamar a atenção para essas operações da disputa política não significa ignorar a brutalidade da violência cotidiana no país nem esquecer que existe de fato uma agenda conservadora em processo de organização e de implementação. Significa apenas lembrar que não existe algo como uma posição conservadora unitária e monolítica, muito menos claramente majoritária. Afirmar sem mais que a população brasileira é conservadora apenas serve ao conservadorismo militante.

Questionado no mês de abril sobre o caráter conservador dos projetos apresentados pelos parlamentares, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha afirmou: "Se vocês consideram conservadores e a maioria colocou a pauta e aprovou, é porque a maioria é que é conservadora". Ao comentar a decisão recente do Supremo Tribunal Federal que negou liminar para suspender a votação da redução da maioridade penal, o mesmo deputado sentenciou: "Continuarei lutando para que a vontade da maioria da população prevaleça".

A alucinada multiplicação de temas polêmicos para discussão em curtíssimo espaço de tempo tem o sentido profundamente antidemocrático de bloquear qualquer real discussão. A democracia precisa de tempo. E, sobretudo, depende da aposta na capacidade de mudar a si próprio e aos outros. É isso o que o conservadorismo de tipo Eduardo Cunha mais teme: que haja tempo e oportunidade para a reflexão e o debate, que as pessoas possam reconsiderar suas opiniões e atitudes. As pessoas são muito mais complexas do que a opinião que têm sobre um tema polêmico específico. Desmontar o mito de uma suposta natureza conservadora da população brasileira começa por levar a sério essa complexidade.

Marcos Nobre é professor de filosofia política da Unicamp e pesquisador do Cebrap.

Fonte: Valor Econômico (20/07/15)

quinta-feira, 23 de julho de 2015

O PMDB, de Ulysses a Cunha ( Cláudio Gonçalves Couto)





A profunda crise política oferece oportunidades ambíguas para a compreensão de nosso sistema político, pois os eventos tanto podem lançar luz sobre a realidade - explicitando fatores - como turvar a percepção - tamanha a confusão instalada e a velocidade dos acontecimentos. Talvez por isso muitos têm usado a expressão "crise institucional" para se referir à atual conjuntura, sem se dar conta de que nem toda crise política é uma crise institucional.

Com o perdão da redundância, instituições políticas - como outras construções humanas - têm a capacidade de suportar tensões e pressões, e é justamente por isto que são "instituições" - e não qualquer arremedo de organização. Estruturas como os três Poderes (e talvez um quarto, o Ministério Público) podem e até mesmo devem operar em tensão e sob pressão. O fato de pressões e tensões expressarem crises políticas não leva a crises institucionais. Noutros termos, instituições são feitas para processar crises, não para acabar por causa delas.

Todavia, isto não implica negar que, por vezes, tensões e pressões superam a capacidade de processamento das instituições. Assim, se atingirem níveis altos demais, podem converter a crise política em institucional (como em 1964). Contudo, para tal é preciso que não apenas o nível de tensão/pressão seja muito alto, como também que os atores responsáveis por elevá-lo já não reconheçam as instituições como algo a preservar. Estamos distantes de tal cenário, mesmo que alguns atores políticos se indignem justamente com o fato das instituições cumprirem seu papel - note-se o inconformismo de parte da classe política com a atuação do MP e da Polícia Federal.

Se a preocupação com uma inexistente crise institucional é exemplo de percepção errônea provocada pela crise, o desvendamento do PMDB pode ser o oposto. A atual situação explicita os diferentes papéis que o partido desempenhou na democracia brasileira desde a redemocratização.

De principal polo aglutinador da oposição ao regime autoritário dos anos 60 ao início dos 80, o MDB (depois PMDB) se converteu no grande fiador dos governos da transição e da consolidação democrática no Brasil. Foi assim com Sarney, não foi com Collor (e deu no que deu), foi com Itamar e, depois dele, com Fernando Henrique e Lula. O caldo começou a entornar com Dilma Rousseff e sua proverbial incapacidade política.

Ironicamente, justo quando o partido ocupou novamente a chapa presidencial vitoriosa, com a Vice-Presidência, foi desprestigiado e ganhou motivos para se tornar cada vez mais arredio. Isso deu força dentro da agremiação para os segmentos menos propensos a um entendimento com o governo e com o PT, desembocando na atual barafunda. Nela, tornou-se imperativo à presidente (sempre tão refratária a delegar qualquer coisa a quem quer que fosse) abdicar da coordenação política em prol do vice pemedebista - embora talvez já demasiadamente tarde.

Em seu período áureo, entre 1982 e 1986, o PMDB arrebatou governos estaduais importantes, liderou a campanha das "Diretas Já", elegeu o presidente (encerrando o regime militar) e arrebanhou uma esmagadora (embora enganosa, pois fragmentária) maioria dos governos estaduais e do Congresso Constituinte nas eleições de 1986.

O fracassado governo Sarney, contudo, iniciou o ocaso do PMDB como protagonista na cena nacional. Isso fez com que o último dos líderes pemedebistas de projeção e discurso nacionais - Ulysses Guimarães - tivesse uma melancólica participação na eleição presidencial de 1989, amargando mirrados 4,7% dos votos e apenas o sétimo lugar.

Depois disso, o PMDB começou a se converter mais claramente no que conhecíamos até hoje: uma federação de caciques regionais e o maior dos partidos de adesão ao governo do dia. O canto do cisne do velho PMDB confirmou essa nova condição. Nas eleições de 1994, o então poderoso ex-governador paulista, Orestes Quércia, foi o último candidato próprio do PMDB à Presidência da República, amealhando uma votação inferior à de Ulysses cinco anos antes (apenas 4,4%) numa disputa com menos contendores. Ficou claro que se tratava de um candidato presidencial puramente paulista, já enfraquecido em seu próprio estado - um sub-Adhemar de Barros.

Contudo, restou ao partido uma grande máquina eleitoral, implantada em todo o país e forte nas disputas estaduais, locais e congressuais. Veio daí a sua força como principal partido de adesão e expressão maior de uma política particularista, pragmática, localista e internamente acomodatícia. Como organização, o PMDB era descompromissado de qualquer nitidez maior em termos programáticos, ideológicos ou éticos. Cada um faz o que quer e é tolerado pelos demais. Porém, como a esmagadora maioria é pragmática, a estratégia dominante e de interesse comum é aderir ao governo do dia, visando boas retribuições. Um ou outro faz oposição, mas não muda o curso geral.

Desse modo, pôde-se aderir indistintamente a Itamar, FHC e Lula. O programa governamental propriamente dito sempre foi pouco relevante. Porém, o fracasso de Dilma em manter o PMDB na sua própria senda deu espaço para o surgimento da primeira liderança partidária, desde Ulysses Guimarães, detentora de projeção e discurso nacionais.

Não é à toa que Eduardo Cunha começou a ser cogitado como possível candidato presidencial. Além da grande visibilidade pública e de se converter no principal opositor do governo petista, encampou projetos que ultrapassam o particularismo, o localismo, o pragmatismo e a prática acomodatícia. Em vez disso, levou adiante uma plataforma conservadora nos campos econômico, político e da moralidade privada. Do apoio à terceirização irrestrita à defesa da família tradicional e às propostas da bancada da bala, Cunha fugiu ao figurino tradicional do PMDB e, assim, deixou de ser um mero cacique regional ou um congressista de adesão.

A diferença em relação a Ulysses, contudo, não está só nas origens, mas também no destino. O primeiro era uma liderança progressista, enquanto o segundo encarna o regresso. Resta saber se não se tornará Cunha, o Breve.

Fonte: Valor Econômico (22/07/15)


segunda-feira, 20 de julho de 2015

A esquerda e seu déficit (Luiz Sérgio Henriques)






Compreensível, do ponto de vista pessoal, que a presidente da República, em momentos de crise, recorde situações-limite como a da tortura nos anos de chumbo. Vistas as coisas assim, não importa ter havido, por parte de frações significativas da esquerda, a opção ultrarradical pela “virtude reguladora das armas” em seguida ao golpe de 1964. Uma vez postos sob a guarda do Estado, aqueles militantes – ou quaisquer outros, em qualquer circunstância –, ao serem torturados, passaram a encarnar a dignidade e a inteireza humana, deixando aos carrascos a infamante marca da desumanidade.

Num contexto de liberdades, porém, a recordação obsessiva da situação-limite perde vigor argumentativo e vira exemplo de “ideia fora do lugar”. Confundir a informação arrancada em circunstâncias escabrosas com métodos de desarticulação de sistemas criminosos de poder só é possível caso, ao mesmo tempo, se cancele o virtuoso percurso que permitiu a uma ex-presa política se tornar por duas vezes, pelo voto, a primeira mandatária de uma grande nação redemocratizada.

Mas pode haver método até mesmo em ideias desarranjadas, considerando, para constatar tal desarranjo, que hoje não há ninguém, fora grupos exóticos, que apele a exércitos imaginários para resolver dramas políticos. Não há lugar para bravatas e, tudo somado, os mecanismos racional-legais reúnem suficiente grau de consenso para agir segundo a própria lógica, investigando e punindo seja quem for. E as vivandeiras de quartel estão condenadas ao destino de quem não tem mais soldados para ofertar sua mercadoria nem conta com a guerra fria para ganhar um mínimo de credibilidade.

Mesmo assim, o método existe e pode ser que tenha contribuído para produzir, nas novas condições de liberdade, a reiteração de um déficit histórico de nossa esquerda.
Recapitulemos. No nascimento do PT esteve presente, sem dúvida, uma intensa movimentação da sociedade civil, com a arregimentação do sindicalismo lulista de resultados, dos remanescentes da extrema-esquerda derrotada e da difusa rede do catolicismo popular, com suas instâncias de solidarismo estranhas aos mecanismos de mercado.

Anunciava-se uma “revolução social”, um inédito protagonismo das massas capaz de refundar o País – e a refundação, nesta narrativa, se daria a partir da eleição do primeiro presidente de origem operária, não da Constituição de 1988. Em outras palavras, e contra todas as evidências, o “social” pretendia se desassociar do “político”.

Pouco antes, nos anos de chumbo, os diferentes grupos esquerdistas demoraram para perceber – e talvez só o tenham percebido pragmaticamente, sem a devida revisão teórica – que a chave para a derrota do regime consistia na aliança com o centro político, este último definido segundo o “discurso burguês”. Foram imensas as resistências a participar do jogo eleitoral, a assimilar os termos da anistia e a participar do colégio eleitoral que, há pouco mais de 30 anos, inaugurou a Nova República e sepultou as chances de reatualização civil da autocracia militar.

Aquele centro tinha, então, nome e cara: tratava-se do MDB e, depois, PMDB, à frente Ulysses e Tancredo, com o reforço do extenso grupo de senadores eleitos em 1974 e dos governadores da safra de 1982, como Montoro e o próprio Tancredo. Negar este centro, e dele se cindir ruidosamente, foi a base do crescimento do PT originário, mesmo quando essa negação implicava riscos não desprezíveis, como, por exemplo, no impeachment de Collor e na sustentação do governo Itamar, por sinal um dos quadros que ganharam projeção nacional nas históricas eleições de 1974.

Sempre houve algo de antipolítica nos lances que cercaram a ascensão do novo partido. Os tais “300 picaretas” do Congresso foram uma espécie de senha para a ação institucional do petismo.

Não por acaso, e independentemente do declínio “ideológico” do PMDB após a realização de seu programa básico – a redemocratização –, recusar a aliança com o partido de centro, em 2003, esteve na raiz das práticas de cooptação das pequenas legendas que redundariam, poucos anos mais adiante, na Ação Penal (AP) 470. E, ainda recentemente, na transição do primeiro para o conturbado segundo mandato da presidente Dilma, a malograda aventura da criação de novo partido governista, isolando o próprio vice da chapa vitoriosa, foi tramada em gabinetes vizinhos ao da presidente Dilma. “Picaretas”, evidentemente, compram-se e vendem-se, partidos fazem-se e desfazem-se a preço de fim de feira: eis os pressupostos do exercício pedestre de dominação dos demais partidos por parte do ator mais organizado.

Catar os cacos desse sistema de partidos, agora quase todo enredado no esquema petista desde os anos Lula, não será a última nem a mais fácil tarefa daqui por diante. Das oposições (ainda?) não se pode esperar muito: de fato, não têm sabido ir além da “política dos políticos”, para usar a expressão de Marco Aurélio Nogueira, e responder na sociedade ao desafio trazido por um partido como o PT.

Quanto ao PT, uma das linhas de fuga poderá ser o cultivo da nostalgia das origens e o retorno ao “movimentismo”, de acordo com experiências que, em outros países, diagnosticam uma “crise orgânica (revolucionária) do capitalismo”. Confirmada a hipótese de uma “frente de esquerda”, com Lula à frente dos movimentos sociais a brandir um anticapitalismo retórico, dificilmente se tratará de um giro expansivo capaz de convencer, com os recursos da democracia, atores e áreas além da esquerda. Ao contrário, estará se repetindo o estágio de menoridade que já impediu ou retardou a contribuição ao País de parte das forças populares, deixando de lado, para os fins de nossa argumentação, atos de heroísmo individual em situações extremas.

Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil site: www.gramsci.org

fonte: O Estado de São Paulo (19/07/15)

O lucro e a fé (José de Souza Martins)




Na foto, o sorriso sem graça de Evo Morales é decifrado pela expressão de desapontamento do papa Francisco no ato cerimonial de entrega do presente que o governo boliviano fez ao representante do Estado do Vaticano. É a escultura de um Cristo crucificado sobre a foice e o martelo, símbolo do comunismo. Foi um presente de mau gosto. Outros governos, em diferentes países, têm cometido descuidos parecidos. O Museu da Presidência da República, em Lisboa, expõe presentes dados aos governantes portugueses. Um grotesco e antiecológico casco de tartaruga, sobre a qual um primitivista pintou uma paisagem, foi presente de Juscelino Kubitschek ao presidente Craveiro Lopes de Portugal. Está lá, no meio de objetos de prata e de obras de arte. O regalo se destaca pela impropriedade. É verdade que anos depois o presidente Ernesto Geisel nos redimiu oferecendo a outro presidente português uma bela escultura de Bruno Giorgi.

No caso de um presente a uma pessoa como o papa, é sempre complicado lidar com objetos simbolicamente controvertidos como dádiva a quem é altamente simbólico, pela posição que ocupa e por aquilo que personifica. Francisco ao ver o objeto comentou: “Isso não está certo”.

Trata-se da réplica de uma escultura simples feita pelo jesuíta Luís Espinal, assassinado na Bolívia, em 1980, durante a ditadura militar. O original pertence a outro jesuíta, que estava no mesmo quarto em que o assassinato se deu. Um conjunto de interpretações tentou consertar a antiplomacia do gesto de Evo Morales, ele próprio dizendo ter julgado que o presente agradaria o papa dos pobres, tendo em conta que ele, a caminho de La Paz, parara no local do assassinato para rezar. Mas papa dos pobres não quer dizer papa da foice e do martelo. Não é preciso ser comunista para se interessar pelos pobres, os que Marx definia como lúmpen-proletários, os sem lugar ativo no processo histórico, o oposto do proletariado do apreço marxista.

O incidente aponta para um conjunto de símbolos trocados e de personagens interpretando o objeto e o ato a partir de sistemas simbólicos opostos. Desde os anos 1960, a aproximação entre grupos da Igreja Católica e facções dos partidos comunistas tem sido demarcada pela tentativa de produzir um quadro de referência comum que permita o diálogo e a convivência entre materialistas e crentes, além da ação política conjunta. Tem sido um esforço para superar o veto católico ao comunismo e seus desdobramentos no âmbito da religião e da fé.

Quando da morte de Che Guevara na guerrilha da Bolívia, uma fotografia do cadáver percorreu o mundo como ícone de um Cristo latinoamericano imolado pelo poder do imperialismo explorador, inimigo dos humilhados e ofendidos da terra. Mais adiante, começaram peregrinações de católicos de esquerda ao lugar dessa morte. Mas não se fala que nas anotações do diário do Che, feitas poucas horas antes de sua captura e assassinato, ele se dera conta do equívoco de não ter se aproximado dos camponeses, cuja causa supostamente defendia. Era tarde demais. Che estava só.

Desde então, esforços foram feitos, tanto por setores da Igreja, quanto por diferentes grupos de esquerda para uma aproximação recíproca, o que não suprime equívocos frequentes de ambos os lados. Agora mesmo, na visita do papa a Equador, Bolívia e Paraguai, um militante brasileiro chegou a declarar que “eles” têm Obama e “nós” temos Francisco. O primeiro representando o capitalismo iníquo e opressor e o segundo representando o anticapitalismo libertador.

A crítica católica ao capitalismo vem de longe. João XXIII, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI a fizeram em nome de uma matriz conservadora, centrada na pessoa contra o mundo que gerou a figura segmentária, alienada e solitária do indivíduo, mais jurídica do que vivencial. Bento XVI, que cita Marx e nem por isso é marxista, retomou, num de seus documentos, o texto de Karl Marx que mais atrai e sensibiliza os cristãos que é o capítulo sobre alienação nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos, do mesmo modo que recorreu a Freud para falar sobre a libido no documento sobre o amor. O efeito, socialmente desagregador e desmoralizador, do primado do lucro no mundo contemporâneo não pode deixar de encontrar pela frente a resistência da Igreja Católica. A decomposição da pessoa e das instituições que dela derivam corrói as bases sociais da fé e anula a própria religião, diluída na errância de uma religiosidade de resultados, em que cada um inventa a sua.

Os discursos do papa sobre as iniquidades do mundo subjugado pelo capitalismo não pode ser interpretado como uma adesão ao chamado bolivarianismo, o que quer que isso signifique, e aos socialismos tópicos e superficiais de uma América Latina de incertezas e misérias. Tão escabrosas que nem mesmo os presos de uma prisão boliviana visitados pelo papa, injustiçados pela vida e injustiçados pela Justiça, estão minimamente assistidos pelo mesmo governo do Cristo crucificado na foice e no martelo.


José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da faculdade de filosofia da USP. 

Fonte: O Estado de São Paulo/Aliás (19/07/15) 

domingo, 19 de julho de 2015

Vácuo na centro-esquerda (Gustavo Müller)

• Lula e um setor do PT ensaiam uma saída ‘à esquerda’, com o criador negando a criatura como se fosse possível retornar ao estado anterior ao pecado original

O historiador alemão Geoff Eley, na sua obra “Forjando a democracia”, traça um histórico das esquerdas europeias, ressaltando a importância da experiência da negociação parlamentar para a construção do que veio a ser a social-democracia. Na mesma linha de raciocínio, Adam Przeworski, em “Capitalismo e social-democracia” destacou o papel das coalizões parlamentares na conquista do que o autor denominou de “bases materiais do consentimento”. Obviamente a consolidação de uma centro-esquerda abrigada no constitucionalismo liberal não representou um antídoto infalível contra os totalitarismos, mas assegurou reformas sociais que produziram estabilidade política.

Já na América Latina a trajetória esquerdista assumiu rota diversa. Num continente marcado por quarteladas e populismos, não foi possível a consolidação da arena parlamentar, fator agravado pela forma de governo presidencialista. Inserido neste contexto, o Brasil possui uma característica diferenciada desde a sua formação: o centralismo do Estado, que permitiu a este antecipar-se perante os movimentos da sociedade civil.

Nosso primeiro esboço de partido de massa foi o PTB, gestado no útero do Estado Novo. Com o regime militar o MDB passou a incorporar setores de centro e uma esquerda democrática que optou por ocupar os parcos espaços institucionais de resistência. A redemocratização e a dissolução do bipartidarismo permitiram a criação do PT, partido representante de uma esquerda, não necessariamente afeita ao constitucionalismo liberal, e o surgimento do PSDB como partido de centro-esquerda, fruto de uma dissidência do PMDB.

Enquanto o PT deitava raízes nos movimentos sociais, o PSDB, percebendo o esgotamento do ciclo desenvolvimentista, propunha o “choque de capitalismo” como uma solução para a modernização do Estado e da economia. Este modelo não destoava da centro-esquerda que tentava se reinventar na Europa.

O ponto em comum entre a centro-esquerda europeia e o PSDB estava na aceitação de algumas medidas de corte liberal, mas a diferença fundamental estava no fato de que o PSDB no governo teve que promover reformas estruturais mais profundas que as feitas na Europa até então. Por conta disso, o que seria uma proposta de centro-esquerda acabou sendo taxada de neoliberal. Por sua vez, o PT em 2002 ensaiou uma inflexão ao centro, aceitando o tripé econômico deixado pelo governo anterior como condição básica para novos avanços sociais. Durante parte do primeiro mandato de Lula o PT adotou o receituário tucano, e mesmo depois de se render ao antigo desenvolvimentismo, o PSDB não foi capaz de reocupar seu lugar de partido social-democrata, deixando que seu conteúdo programático fosse esvaziado por marqueteiros que operam em um mercado eleitoral exacerbado.

Com a profunda crise em que se encontra o governo Dilma, Lula e um setor do PT ensaiam uma saída “à esquerda”, com o criador negando a criatura como se fosse possível retornar ao estado anterior ao pecado original, e enterrando definitivamente quaisquer possibilidades de adoção dos princípios da centro-esquerda. Por outro lado, o PSDB também recusa seu legado buscando um protagonismo oposicionista guiado pelas circunstâncias.

Como resultado deste atraso na formação de uma moderna social-democracia, liberais extremados, que nada aprenderam com a crise de 2008, ganham espaço. Enquanto isso permanece não apenas o vácuo na centro-esquerda, mas a dúvida a respeito de um possível distanciamento dos partidos políticos em relação ao centro, e indo rumo aos extremos.

(*) Gustavo Müller é professor de Ciência Política da Universidade Federal de Santa Maria (RS)

Fonte (O Globo)

O cronômetro de um presidente (Maria Cristina Fernandes)




• Em “O impeachment de Fernando Collor”, o sociólogo Brasilio Sallum Jr. Faz a anatomia do momento que levou a derrubada do primeiro presidente eleito pelo voto direto em 30 anos

São Paulo - O que derruba um presidente - corrupção, voluntarismo, crise econômica, perda de sustentação política ou erosão do apoio social? "O Impeachment de Fernando Collor - Sociologia de Uma Crise" (Editora 34, 2015, 421 pags.) tem uma tese, a de que as relações entre o Executivo e o Legislativo se trincaram num momento de superação do que Brasilio Sallum Jr. chamou de Estado varguista. Mas o autor vai além do subtítulo. Numa minuciosa reconstituição dos fatos, o chefe do Departamento de Sociologia da USP conduz o leitor à conclusão resumida pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso na orelha do livro: os dias de Collor só entraram em contagem regressiva no momento em que os partidos perceberam o que ganhariam com sua derrubada.

Sallum oferece evidências tanto a quem busca semelhanças com a crise que hoje cerca a presidente Dilma Rousseff quanto a quem se ocupa em distingui-la da de Collor. O livro, no entanto, não se presta a compará-las. É a anatomia, sem a dramaticidade de relatos jornalísticos, dos acontecimentos que levaram à queda do primeiro presidente eleito pelo voto direto em 30 anos. "Sallum ressalta algo que pode parecer banal, mas é essencial na vida política: o momento", diz FHC, protagonista daquele de 23 anos atrás e do atual.

A eleição de Collor se propunha a ser o marco divisório daquela que o autor chama de "crise de hegemonia" da transição: o impulso da democratização política trazido pela Constituinte de 1988 que cede à liberalização econômica.

A economia brasileira vivia um momento muito mais dramático que o de hoje. Collor tomou posse em março de 1990 sob inflação mensal de 82%. Para estabilizar a moeda, nomeou a economista da equipe de Dilson Funaro, Zélia Cardoso de Mello, mas declarava a quem quisesse ouvir que a Fazenda era ele.

O Plano Collor foi o primeiro carimbo do seu voluntarismo. Desde a posse, anunciara que não estava disposto a conter a inflação, mas a "liquidá-la". O núcleo do plano, o confisco de 80% dos ativos financeiros, foi acrescido de um ajuste fiscal que elevou tarifas, cortou subsídios, demitiu funcionários, extinguiu órgãos públicos e deu início a privatizações. O calhamaço das medidas provisórias foi entregue ao Congresso depois de cinematográfica caminhada do presidente e seus 12 ministros pela praça dos Três Poderes.

O cesarismo foi aceito pela maioria. Seis em cada dez brasileiros aprovaram as medidas. O plano teve a chancela do Supremo, contra o voto do relator da ação de inconstitucionalidade, Paulo Brossard: "A apropriação indébita de bens é furto".

O apoio não duraria. Ainda que desidratado ao longo de sua tramitação no Congresso, o plano levaria o país a perder 4% de sua riqueza no primeiro ano do governo Collor.

A primeira derrota veio do bloco sindical. Começava ali o precoce desmonte da única barricada de Collor no movimento social, o sindicalismo de resultados. A erosão desse apoio deixaria lições ao líder petista Luiz Inácio Lula da Silva, que, 15 anos depois, recorreria aos seus exércitos sindicais contra o mensalão. O temor do contágio sindical também inspiraria sua queda de braço, nos bastidores do governo Dilma, pela adoção das medidas de proteção ao emprego.

A resistência se espraiaria por um conjunto de entidades reunidas pelo Movimento pela Ética na Política. A adesão das igrejas foi capitaneada pelos bispos católicos, num ativismo muito distante da cruzada moral que hoje une o pentecostalismo sob o beneplácito de Eduardo Cunha. À época, o atual presidente da Câmara, havia sido recompensado com a Telerj pelo trabalho de montagem do PRN.

O fracasso das primeiras medidas levaria à decretação do Plano Collor II em 1991, mas, a essa altura, o presidencialismo plebiscitário já tinha perdido parte de seu apelo. Um Congresso renovado, além de 27 governadores, havia tomado posse reivindicando uma fatia da legitimidade que parecia exclusiva do presidente. O descasamento dos mandatos teria fim a partir das eleições seguintes, mas ameaça voltar na reforma ora em curso no Congresso.

Para reconquistar a confiança do empresariado o presidente substituiu Zélia pelo embaixador nos EUA e ex-diretor do Unibanco Marcílio Marques Moreira. O novo ministro exigiria novos esforços fiscais para recompor relações com credores internacionais, aumentando as tensões federativas. Mas, a despeito de Collor depender de sua âncora mais do que Dilma depende do ministro Joaquim Levy, Marques Moreira não seria capaz de blindar Collor junto ao PIB até o fim.

Três meses antes do impeachment, Jorge Gerdau seria porta-voz de uma comitiva de empresários que hipotecaria apoio a Collor: "O senhor pode contar conosco [...] Seu programa de modernização tem todo nosso apoio". No apagar das luzes, a agenda liberalizante do governo ainda seria capaz de aprovar a regulamentação da concessão de serviços públicos.

O avanço do cerco sobre o presidente, no entanto, lhe tiraria o colchão empresarial. Ao transmitir seu cargo na Fiesp, Mario Amato divulgaria nota que pedia "absoluta necessidade de exemplar punição dos responsáveis e o restabelecimento da moralidade da administração pública". Àquela altura, sob o impulso da corrupção, a rua já estava contaminada pelo impeachment.

Sucessivas denúncias iniciadas pela entrevista do seu irmão, Pedro Collor, chegariam ao ápice com o testemunho do motorista Eriberto França e exporiam a condição do tesoureiro da campanha presidencial, Paulo César Farias, como operador dos negócios do presidente da República.

A exposição pessoal de Collor chegou ao limite com a descoberta de que retirara recursos de suas contas bancárias às vésperas do confisco, uma corrosão moral da qual a presidente hoje parece blindada. "O que elas [as denúncias] punham em questão já não era o desempenho de Fernando Collor de Mello na Presidência; era se ele dispunha, ou não, dos requisitos morais implícitos naquela investidura", escreveu Sallum.

Acuado, Collor redobrou as demonstrações de vigor físico. Também passeava de bicicleta, mas preferia as corridas matinais. O derradeiro canal foi a agressividade. O ódio que hoje se volta contra o PT e Dilma, era, em 1992, a estampa do presidente.

A mesma imprensa que ajudara a projetar o salvador da pátria passou a fazer campanha por sua saída, em editoriais com ponto de exclamação e na divulgação dos horários e locais de atos pró-impeachment. Humoristas como Jô Soares, que hoje são acusados de defender Dilma, transformaram seus programas de televisão em palco para a devastadora crônica de um governo que se desmanchava.

Com o circo armado na rua, os partidos de esquerda, capitaneados pelo PT, viram crescer as adesões à coalizão que viabilizou, institucionalmente, o desfecho daquela crise. A Comissão Parlamentar de Inquérito, montada para acuar o presidente, transformou-se no purgatório do impeachment. As lideranças dos principais partidos, em entendimentos com o vice, Itamar Franco, o Judiciário e os militares, começaram a dirimir as incertezas geradas por aquele momento, montando as bases do que seria a coalizão do novo governo.

Com o impeachment, o PT, liderado no Congresso pelo então deputado José Dirceu, por um lado, deixaria clara a opção do partido pelas saídas institucionais, isolando as alas mais radicais, e, por outro, vetaria a participação de seus integrantes no futuro governo para se manter como galvanizador da oposição.

O PMDB mantinha suas divisões. O partido tinha mais prefeitos e parlamentares que hoje, mas não ocupava os três cargos na linha sucessória da República. O senador Orestes Quércia foi entusiasta de primeira hora do impeachment, levando até mesmo o governador Luiz Antônio Fleury Filho a oferecer almoço a manifestantes no Palácio dos Bandeirantes. Com sua candidatura à Presidência já na praça, conseguiu evitar que o partido aderisse oficialmente ao governo Itamar.

Quem ocupou esse espaço foi o PSDB, partido ainda incipiente, com um único governador (Ciro Gomes), que viu na coalizão formada em torno de Itamar a chance de reforçar seu capital político. Graças a essa adesão, costurada nos bastidores do impeachment, os tucanos capitaneariam o plano de estabilização que, dois anos depois, lhe daria as chaves do Palácio do Planalto.

Fonte: Valor Econômico / Eu & Fim de Semana (18/07/15)