Compreensível, do ponto de vista pessoal, que a presidente da República, em momentos de crise, recorde situações-limite como a da tortura nos anos de chumbo. Vistas as coisas assim, não importa ter havido, por parte de frações significativas da esquerda, a opção ultrarradical pela “virtude reguladora das armas” em seguida ao golpe de 1964. Uma vez postos sob a guarda do Estado, aqueles militantes – ou quaisquer outros, em qualquer circunstância –, ao serem torturados, passaram a encarnar a dignidade e a inteireza humana, deixando aos carrascos a infamante marca da desumanidade.
Num contexto de liberdades, porém, a recordação obsessiva da situação-limite perde vigor argumentativo e vira exemplo de “ideia fora do lugar”. Confundir a informação arrancada em circunstâncias escabrosas com métodos de desarticulação de sistemas criminosos de poder só é possível caso, ao mesmo tempo, se cancele o virtuoso percurso que permitiu a uma ex-presa política se tornar por duas vezes, pelo voto, a primeira mandatária de uma grande nação redemocratizada.
Mas pode haver método até mesmo em ideias desarranjadas, considerando, para constatar tal desarranjo, que hoje não há ninguém, fora grupos exóticos, que apele a exércitos imaginários para resolver dramas políticos. Não há lugar para bravatas e, tudo somado, os mecanismos racional-legais reúnem suficiente grau de consenso para agir segundo a própria lógica, investigando e punindo seja quem for. E as vivandeiras de quartel estão condenadas ao destino de quem não tem mais soldados para ofertar sua mercadoria nem conta com a guerra fria para ganhar um mínimo de credibilidade.
Mesmo assim, o método existe e pode ser que tenha contribuído para produzir, nas novas condições de liberdade, a reiteração de um déficit histórico de nossa esquerda.
Recapitulemos. No nascimento do PT esteve presente, sem dúvida, uma intensa movimentação da sociedade civil, com a arregimentação do sindicalismo lulista de resultados, dos remanescentes da extrema-esquerda derrotada e da difusa rede do catolicismo popular, com suas instâncias de solidarismo estranhas aos mecanismos de mercado.
Anunciava-se uma “revolução social”, um inédito protagonismo das massas capaz de refundar o País – e a refundação, nesta narrativa, se daria a partir da eleição do primeiro presidente de origem operária, não da Constituição de 1988. Em outras palavras, e contra todas as evidências, o “social” pretendia se desassociar do “político”.
Pouco antes, nos anos de chumbo, os diferentes grupos esquerdistas demoraram para perceber – e talvez só o tenham percebido pragmaticamente, sem a devida revisão teórica – que a chave para a derrota do regime consistia na aliança com o centro político, este último definido segundo o “discurso burguês”. Foram imensas as resistências a participar do jogo eleitoral, a assimilar os termos da anistia e a participar do colégio eleitoral que, há pouco mais de 30 anos, inaugurou a Nova República e sepultou as chances de reatualização civil da autocracia militar.
Aquele centro tinha, então, nome e cara: tratava-se do MDB e, depois, PMDB, à frente Ulysses e Tancredo, com o reforço do extenso grupo de senadores eleitos em 1974 e dos governadores da safra de 1982, como Montoro e o próprio Tancredo. Negar este centro, e dele se cindir ruidosamente, foi a base do crescimento do PT originário, mesmo quando essa negação implicava riscos não desprezíveis, como, por exemplo, no impeachment de Collor e na sustentação do governo Itamar, por sinal um dos quadros que ganharam projeção nacional nas históricas eleições de 1974.
Sempre houve algo de antipolítica nos lances que cercaram a ascensão do novo partido. Os tais “300 picaretas” do Congresso foram uma espécie de senha para a ação institucional do petismo.
Não por acaso, e independentemente do declínio “ideológico” do PMDB após a realização de seu programa básico – a redemocratização –, recusar a aliança com o partido de centro, em 2003, esteve na raiz das práticas de cooptação das pequenas legendas que redundariam, poucos anos mais adiante, na Ação Penal (AP) 470. E, ainda recentemente, na transição do primeiro para o conturbado segundo mandato da presidente Dilma, a malograda aventura da criação de novo partido governista, isolando o próprio vice da chapa vitoriosa, foi tramada em gabinetes vizinhos ao da presidente Dilma. “Picaretas”, evidentemente, compram-se e vendem-se, partidos fazem-se e desfazem-se a preço de fim de feira: eis os pressupostos do exercício pedestre de dominação dos demais partidos por parte do ator mais organizado.
Catar os cacos desse sistema de partidos, agora quase todo enredado no esquema petista desde os anos Lula, não será a última nem a mais fácil tarefa daqui por diante. Das oposições (ainda?) não se pode esperar muito: de fato, não têm sabido ir além da “política dos políticos”, para usar a expressão de Marco Aurélio Nogueira, e responder na sociedade ao desafio trazido por um partido como o PT.
Quanto ao PT, uma das linhas de fuga poderá ser o cultivo da nostalgia das origens e o retorno ao “movimentismo”, de acordo com experiências que, em outros países, diagnosticam uma “crise orgânica (revolucionária) do capitalismo”. Confirmada a hipótese de uma “frente de esquerda”, com Lula à frente dos movimentos sociais a brandir um anticapitalismo retórico, dificilmente se tratará de um giro expansivo capaz de convencer, com os recursos da democracia, atores e áreas além da esquerda. Ao contrário, estará se repetindo o estágio de menoridade que já impediu ou retardou a contribuição ao País de parte das forças populares, deixando de lado, para os fins de nossa argumentação, atos de heroísmo individual em situações extremas.
Luiz Sérgio Henriques é tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das obras de Gramsci no Brasil site: www.gramsci.org
fonte: O Estado de São Paulo (19/07/15)
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