Conversando esta semana com um jornalista sobre a situação excessivamente belicosa que parece estar configurada no Brasil, me lembrei de uma imagem que costumo usar em aulas: a sociedade brasileira é como um caminhão de mudanças que carrega toda a tralha acumulada ao longo da vida por uma família que não teve tempo de se preparar para a nova casa. Leva tudo consigo, dos móveis e objetos recém-adquiridos à tranqueira esquecida no porão, naquele canto perdido do armário, guardada numa caixa de papelão empoeirada.
O Brasil se moderniza mas não se separa de seus defeitos históricos. Moderniza-se sem enterrar seus mortos e eles, a todo momento, voltam à vida para assustar os vivos. Sempre que isto acontece, os ânimos encrespam.
A metáfora me ajuda a entender por que, ao longo deste ano, há mais tensão e intolerância nos discursos públicos, na linguagem da vida cotidiana e no modo como os brasileiros passaram a se relacionar.
Alguns dizem que isto é tão-somente efeito colateral da disputa eleitoral. Em 2014, brasileiros teriam passado a demarcar melhor suas posições. Voltaram a discutir política, a manifestar suas opções e sua insatisfação, seus desejos e expectativas. Neste raciocínio, não haveria motivo para preocupação: a tensão que se percebe seria apenas nuvem passageira. Pode-se agregar, aqui, a ideia de que se trata de um subproduto da modernização e da democratização das últimas décadas, que deslocaram interesses e mexeram com os equilíbrios sociais. Os mais ricos perderam espaço e exclusividade, os mais pobres subiram à luz do dia e passaram a buscar reconhecimento, direitos e afirmação. O sistema teria ficado, assim, mais “nervoso”.
Há outros que relativizam o problema: só haveria tensão nas redes sociais e entre aqueles que são por elas sugestionados. O resto da sociedade estaria pacificada, ou continuaria a viver com as mesmas taxas de tensão de sempre. Nada, portanto, de luz amarela no horizonte. Os brasileiros continuam “cordiais” como antes, calorosos, passionais, afetuosos e chegados a intimidades no espaço público.
A versão mais próxima da realidade é a de que se trata de uma pequena minoria, uma elite rústica e grosseira, ativa nas redes e com facilidades de voz e exposição. Na contramão da massa da população, seria este segmento enraivecido que agita com violência, xinga e agride.
Acontece que esta minoria está aí e sempre será importante saber qual é seu real poder de fogo, sua capacidade de influenciar partes ponderáveis dos demais. Como não podemos dimensionar o tamanho desta elite, não dá para concluir muita coisa. Especialmente quando vemos tanta gente usando as palavras como se fossem adagas afiadas.
Problema distinto, portanto, é tentar entender porque cresceu a exasperação, ou porque ela ganhou tanta força no espaço público e no debate político, incorporando não somente os integrantes daquela elite grosseira, mas muito mais gente. Ou será que isto não está ocorrendo?
A baixaria está virando norma de conduta, sob o pretexto, por um lado, de honrar a informalidade típica do brasileiro e seu tradicional descuido com a linguagem. Por outro lado, é justificada como sendo o expediente que se tem à mão para que cada um possa demonstrar “combatividade” na defesa das próprias opiniões.
No próximo texto deste blog, pretendo refletir melhor sobre as razões que têm impulsionado esta inflexão em nossa vida cotidiana.
Agora, gostaria somente de enfatizar que o problema existe e deveria nos preocupar. Sempre há uma ligação entre linguagem política e linguagem da vida cotidiana. Uma influencia a outra, por menos que percebamos isto. Fala-se errado nas tribunas parlamentares porque se fala errado em casa e nas ruas. As narrativas do poder são tacanhas porque também o são as do cidadão. A voz do Estado é ruim porque também é ruim a da sociedade e porque o Estado, entre nós, funciona pouco como “educador” e muito como “repressor”. Somos deficientes em gramática, em concordância, em frases com verbo e sujeito bem colocados, em vocabulário. Por que a linguagem política seria diferente?
A linguagem política, por sua vez, funciona como efeito-demonstração e também modela a linguagem da vida cotidiana. Passa a sugerir que não é mais suficiente você ser contra o governo ou contra um ou outro partido: você precisa triturá-los, estraçalhá-los, atribuir todos os qualificativos negativos a eles, sem meio-termo ou papas na língua. Não basta ser contra a Dilma: é preciso apresentá-la como a encarnação de Behemot, a corrupção em pessoa, o diabo em forma de mulher.
Não basta você não gostar do Aécio: você deve dizer que ele é um “playboyzinho viciado que bate em mulheres”. Não basta ter antipatia por Marina: deve-se dizer que ela é uma ilusionista, uma fada mística das florestas, uma farsante. E assim por diante.
O que está acontecendo hoje, neste mundo de redes e hiperatividade verbal em que vivemos, é a afirmação progressiva de uma convicção social: quanto mais grosso você for, mais chance terá de chamar atenção. Tua comunicação irá parar na sarjeta, mas você poderá terminar o dia com a sensação de ter vencido uma batalha a mais.
Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política, Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo (08/11/14)
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