domingo, 30 de novembro de 2014

Elite branca do B (Fernando Gabeira)





Um amigo que veio do exterior estava surpreso com o Brasil. Soube da campanha eleitoral, da luta contra a elite branca, dos filmes mostrando como um banqueiro iria tirar a comida da mesa dos pobres. Ao chegar, encontra a vencedora procurando alguém do mercado, com capacidade para ajustar suas contas, que por sinal bateram um recorde negativo em outubro: R$ 8,13 bilhões negativos nas transações correntes.

Como explicar isso? Respondi que os números falavam por eles próprios. Ou melhor, começaram a falar depois das eleições, porque muitos deles foram, devidamente, engavetados durante a campanha. E as famílias pobres diante da mesa de jantar? A lógica implacável dos números acaba impondo do PT o que mais estigmatizava no adversário: um fazedor de contas, alguém que não espanque a aritmética.

Mais surpreendente ainda é a possível escolha de Kátia Abreu para a Agricultura. O amigo leu no “Guardian” sua primeira entrevista dela. Kátia disse que seu modelo político era Margaret Thatcher. E o repórter concluiu que combaterá os ecologistas como Thatcher combateu os mineiros em greve. Para isso não tenho grandes explicações. Conheci Kátia no Congresso e tanto com ela como com Ronaldo Caiado tive discussões produtivas. Não acredito que veja no meio ambiente um entrave ao progresso, como Dilma, naquele célebre ato falho em Copenhague. Mas as pessoas mudam. Não entendo como se espelhar em Thatcher e querer subir na carreira política sem conhecer melhor a trajetória da mulher que a inspira sua jornada.

Thatcher jamais mudou de partido e dificilmente entraria num governo no auge de um escândalo de proporções mundiais, o maior das democracias ocidentais, segundo o “New York Times”.
Ela pode usar uma bolsa a tiracolo, como Thatcher, mas seu programa é muito distinto dos conservadores ingleses, ainda hoje no poder. Eles têm uma das políticas ambientais mais avançadas do mundo. Talvez em outras entrevistas ela possa se explicar melhor. A impressão que o “Guardian” transmitiu era de que o meio ambiente e os grupos indígenas seriam um obstáculo para o projeto de Kátia: superar os EUA na produção de alimentos. Ela sabe que grande parte dos problemas tem solução negociada, e a própria ciência pode ser uma excelente referência para definirmos o caminho de um crescimento sustentável. Grandes dramas como a crise hídrica envolvem, por exemplo, a agricultura e toda a sociedade brasileira: não há bala de prata nem dama de ferro que dê conta deles.

O tom da reportagem assusta. Mas não deixa de ser irônico, concluí para o amigo que chega: o grande fantasma da campanha de Dilma era a elite branca e agora nos oferecem um diretor de banco e uma discípula de Margaret Thatcher numa versão tropical. Só mergulhando na nossa cultura política para tornar isso ao menos inteligível. O PT tem o hábito de dividir o país; pobres contra ricos, regiões contra regiões.

Mas quando a situação aparece com mais complexidade, precisa de novas subdivisões. Daí a necessidade de uma elite branca do B. A mesma subdivisão já aplicada à direita: uma direita como Ronaldo Caiado e uma direita do B, Paulo Maluf, Jader Barbalho, Newton Cardoso. Ninguém deve, portanto, temer ser considerado de direita ou da elite branca. Há sempre a escolha: elite branca do B ou direita do B. Uma política econômica sensata é o que precisamos, inclusive nesta conjuntura internacional. Seria algo estável no horizonte, porque os céus da política indicam tempestade.

O escândalo do Petrolão deve deixar inúmeras marcas. A própria imagem internacional do Brasil está em jogo. O momento é especial porque entramos num pesadelo de cifras. Todos os protagonistas levando milhões, até as formigas no Espírito Santo custaram R$ 67 milhões à Petrobras. Sessenta e sete milhões para as formigas, 200 para um subgerente, quanto não desapareceu nesse circuito?

Os malabaristas terão trabalho para explicar. Sua tática é sempre sumir no tempo e na multidão, com duas frases típicas: sempre foi assim, todo mundo faz. Houve corrupção na Petrobras em governos anteriores. Mas nada se compara ao uso sistemático da empresa para alimentar partidos políticos. O argumento de que sempre foi assim e todos fazem assim é a maneira de nos ejetar do aqui e agora e mergulhar num espaço mítico. Aliás, esta ideia de que sempre foi assim lembra um pouco da rigidez da morte. É só nela que não existem caminhos de renovação. Enquanto os petistas estiverem escondidos nas dobras do tempo e na multidão de corruptos, será difícil abordá-los.

Creio que é de Mark Twain esta frase: é mais fácil enganar as pessoas do que convencê-las de que foram enganadas. Compreender o Petrolão é uma dura tarefa. Se falharmos, o Brasil vira uma espécie de buraco negro. No espaço, esses buracos são uma singularidade gravitacional: não valem na sua proximidade as leis da física. Aqui embaixo, buracos negros são os países onde não valem as leis do Código Penal.
Fonte: O Globo 

Uma presidente que virou refém das circunstâncias (Carlos Melo)




Por pontos, Dilma Rousseff venceu a eleição; vitória legítima. Mas a realidade que a cerca a torna refém das circunstâncias. Reduzidas são suas condições de impor pontos de vista e deixar fluir o jorro ideológico que brotou na campanha. Ao contrário da retórica triunfalista dos primeiros dias, a natural potência da reeleição agora escoa num indesmentível desgaste que drena o poder e a capacidade de ação da presidente.

Sem condescendência ou ressentimento, o analista perceberá que são várias e simultâneas as frentes de conflito em que o governo está metido - mais numerosas que os dedos das mãos. Pode-se dizer que Dilma envolveu-se - ou foi envolvida - numa penca de problemas. Vem ao caso discutir, aqui, apenas as aflições mais prementes: o escândalo da Petrobrás e o front da economia.

É nesses dois campos que, no curto prazo, residem os mais elevados riscos. Independentemente da vontade do governo ou de seu partido, não há controle sobre o duto da delação premiada: mais e mais implicados avaliam que o único meio para reduzir suas penas seja colaborar e também abrir o bico, liberando o fluxo de novas denúncias e envolvidos. O rio é caudaloso; quem saberá aonde vai dar?

Diante disso, as alternativas de Dilma se escassearam. O melhor seria fugir para frente: implementar processo de desenvolvimento elevado, garantir empregos e renda. Mas, como fazê-lo sem recursos e com a credibilidade econômica em pane? A crise de credibilidade reduz a confiança do investimento privado, as expectativas de melhora são corroídas. A piora econômica se alimenta do mau momento político, potencializado pela economia em frangalhos. Um ciclo de horrores. Necessário cessar o ciclo, estancar a sangria: dar alguns anéis para não ceder todos.

O front econômico é onde Dilma poderia mais imediatamente fazê-lo: acalmar os impacientes agentes de mercado é mais razoável do que enfrentá-los assim enfraquecida. Sim, implica morder a língua, conceder, capitular; reconhecer que o marketing não passou de bravata. Por isso, e não por paixão, a presidente foi em busca do prestígio de Joaquim Levy. Não foi convicção técnica, mas decisão política. Nem gosto, nem opção. Como o sapo, Dilma não pulou a cerca por boniteza, mas por precisão. Claro, pode-se prever que, mais a frente, os efeitos deletérios do ajuste atingirão aliados. Só então se saberá se Dilma se conformará (ou não) com esta margem do rio.

Cientista político e professor do INSPER
Fonte:  O Estado de S. Paulo

O petrolão não é um fato isolado (Sergio Fausto)




Ante os fatos estarrecedores que surgem na apuração do escândalo da Petrobrás, o governo empenha-se em tentativas disparatadas de ora borrar a singular gravidade do esquema de corrupção descoberto, ora atribuir a si os méritos pelo desenrolar desimpedido dos trabalhos da Polícia e do Ministério Público Federais, como se isso não se devesse à autonomia constitucionalmente assegurada a esses órgãos do Estado brasileiro. Melhor teria feito o governo se não tivesse solenemente ignorado, desde 2009, os alertas do TCU de que havia algo de muito errado acontecendo na maior empresa brasileira.

O disparate chega a tal ponto que dias atrás o ministro da Justiça se aventurou em análise sobre a "cultura brasileira" para "explicar" as causas do petrolão. A culpa seria de todos nós, supostamente tolerantes com a prática diária de atos de corrupção, como se o assalto continuado aos cofres da Petrobrás, perpetrado pela associação criminosa de agentes públicos, atores políticos e um cartel de empresas privadas, fosse fenômeno equivalente ao pagamento de propina ao guarda da esquina para evitar uma multa de trânsito. Por mais reprovável que seja este ato, uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa, muito mais grave aquela, por suas repercussões gerais, do que esta. Trata-se de uma obviedade que não deveria escapar a um homem esclarecido e normalmente sensato como José Eduardo Cardozo. É que mesmo as mais lúcidas cabeças do governo andam confusas nos dias que correm.

O rei está nu. No caso, a nudez decorre da revelação de um padrão de desvio de recursos públicos que é novo não apenas por sua escala, mas também porque é parte integrante de um fenômeno político inédito no Brasil: a formação de um bloco de poder articulado por um partido com máquina política e sindical, que mobiliza os instrumentos de um Estado em expansão desregrada para cooptar setores do empresariado e da sociedade e assim tornar viável seu projeto de hegemonia política duradoura. A captura de empresas estatais, agências reguladoras, bancos públicos e fundos de pensão é uma operação constitutiva desse modelo e de sua perpetuação (não um acidente de percurso). Nele há uma peculiar acoplagem dos interesses políticos dominantes à ideologia de que cabe ao Estado o papel de líder e motor do desenvolvimento. Os ideólogos de boa-fé, imbuídos do propósito de fazer a grandeza do Estado e da Nação, não raro confundidos como uma só e mesma coisa, preparam inadvertidamente o terreno ideológico e operacional, quando têm poder para tanto, em que vicejam esquemas de corrupção nos moldes do petrolão.

Com a bonança econômica dos anos Lula, propiciada em boa parte por condições externas muito favoráveis, com a oposição enfraquecida social e politicamente, o modelo rodou a mil por hora. Havia condições financeiras e políticas para contemplar todos os apetites, os legítimos e os ilegítimos. Como costuma acontecer em momentos de euforia, os operadores do modelo - e, por favor, não confundamos os "de boa-fé" com os "de má-fé" - perderam a noção dos riscos econômicos e/ou criminais em que incorriam. Os "de má-fé" experimentaram até recentemente a sensação de impunidade que só o poder aparentemente irrefreável é capaz de oferecer.

O petrolão não pode ser analisado como um ato isolado. Ele é o sintoma mais grave de uma doença que se instalou nos fundos de pensão, nos quais o PT passou a controlar a representação governamental e dos empregados, quando antes havia equilíbrio de forças; nas agências reguladoras, em que a nomeação por critérios técnicos foi substituída pela ocupação partidária; nos bancos públicos, cujas diretorias se abriram aos partidos, a ponto de o tesoureiro de um deles ter sido recentemente nomeado para uma das vice-presidências da Caixa Econômica Federal - para ficar apenas em algumas referências.

Dizer que já havia corrupção nas relações entre agentes públicos, atores políticos e empresas privadas antes de o PT chegar ao poder é afirmar o óbvio. Nessa matéria nenhum partido é puro, nem aqui nem em nenhuma parte do mundo. Não se trata, portanto, de apontar mocinhos e bandidos, mas de verificar em que medida essas relações vão ganhando forma de organização criminosa e penetrando as estruturas do Estado e do sistema político. No limite, dá-se a constituição de um poder paralelo e oculto que comanda o jogo político e empresarial, sob a carapaça da legalidade formal do Estado democrático. É o que aconteceu na Itália, onde até o venerando Giulio Andreotti, diversas vezes primeiro-ministro, se tornou parte integrante da rede mafiosa desbaratada pela Operação Mãos Limpas, no início dos anos 1990.

É desse risco que o Brasil possivelmente se está livrando com a operação Lava Jato, se ela produzir os efeitos desejados na esfera penal. A corrupção que ganhou forma nos últimos 12 anos não é moralmente mais condenável do que a que a precedeu.

Mas é politicamente mais perigosa, pela imbricação sistemática de partidos,
instituições do Estado e cartéis de empresas de grande porte, num esforço coordenado para desviar recursos públicos com o fim último de perpetuar no poder o mesmo sistema que engendrou ou permitiu a ação criminosa organizada. Não é que exista um gênio do mal por trás de tudo isso. O que temos é uma lógica de poder que, se não for quebrada, produzirá um mostro que possivelmente fugirá ao controle mesmo dos que se imaginavam capazes de controlá-lo.

Claro que reformar o sistema político é imprescindível para reduzir as chances de novos petrolões e fortalecer a democracia. Para isso, no entanto, nada é mais importante agora do que traçar com nitidez a divisória que separa a legalidade democrática da atividade criminosa, punindo exemplarmente os que cruzaram essa fronteira, não importa a cor partidária que tenham ou os interesses que representem.

Fonte: O Estado de S. Paulo



A tragédia petista - 2 (Zander Navarro)




Nesta página esbocei uma interpretação sociológica acerca do desenvolvimento do campo petista (A tragédia petista, 26/10) e agora cabe determinar uma equação que possa revelar as principais variáveis de sua sustentação. Quem sabe, assim, entenderemos os ingredientes que explicam o continuado êxito eleitoral do PT.

Na analogia com a matemática, seriam muitas as variáveis a desvendar, entre as principais e as secundárias. Algumas surpreendem, como a espantosa passividade de nosso povo, sujeitando-se às corriqueiras manipulações do sistema partidário, comportamento que inclui até cientistas sociais com elevada formação científica.

Mas outras variáveis não são inesperadas, como o uso do Estado com fins primordialmente partidários ou a ocorrência dos absurdos gastos com propaganda. São fatos que tornam remotos os ideais republicanos que nos deveriam orientar.

Neste comentário sugiro que duas constantes e uma incógnita também compõem a equação, todas demonstrativas do crescimento do campo petista, especialmente nos anos pós-Constituinte e no curso da democratização do País. Contudo não são as variáveis que seriam logicamente antecipadas e a incógnita, provavelmente, não tem nenhuma chance de ser desvendada. Já as duas constantes constituem o eixo central do edifício petista.

A primeira delas diz respeito à capacidade de elevar ininterruptamente o caudal de votos destinados ao partido. Numa democracia eleitoral, o acesso ao poder e ao Estado requer maiorias em eleições regulares. Aqui, o mecanismo decorreu da sorte circunstancial do campo petista, que foi a explosão contemporânea da expressão participação social. Esta surgira pelas mãos da clássica teoria democrática pluralista, definida, em especial, por autores norte-americanos, como Robert Dahl e outros, nos anos 1970. Mas foi expressão tornada obrigatória apenas na década de 1990, em quase todo o mundo. Ideólogos petistas, entretanto, dela se apropriaram, tornando-a (falsamente) uma prerrogativa da tradição da esquerda.

Participação social tornou-se o fulcro da propaganda do partido, prometendo que os cidadãos teriam poder decisório sobre as coisas públicas, um sonho de teorias democráticas que a esquerda petista, espertamente, vendeu como criação sua. Foi assim com o Orçamento Participativo, a grande bandeira do partido naqueles anos, e tem sido da mesma forma com a multiplicação de conselhos, iniciando-se pelo setor da saúde e seus coletivos municipais. Posteriormente, o ideal participativo irradiou-se para as demais áreas, unindo uma narrativa que é irresistível, pois abriria o Estado à voz dos cidadãos, porém combinada a uma camuflada ação partidária capaz de capturar, cada vez mais, currais eleitorais e, ao fim, mais votos. Em poucas palavras: um discurso em si mesmo democrático, mas distorcido pela desonestidade petista, escondendo seu principal objetivo, que é a manipulação dos participantes, vistos apenas como portadores de votos necessários à conquista dos governos.

A presidente reeleita conhece bem esse mecanismo: seu antigo abrigo, o PDT, era o principal partido em Porto Alegre, mas foi varrido do mapa pelo Orçamento Participativo, o qual cooptou as lideranças dos bairros, recrutando-as para o guarda-chuva petista. Conselhos e conferências nacionais, somados à oferta de todos os tipos de bolsas: nada disso tem alguma coisa que ver com a venezuelização e menos ainda com a democratização do Brasil. Relaciona-se, exclusivamente, à conquista do Estado por meio de um processo de clientelismo partidário sem precedentes em nossa História.

A segunda constante da equação se chama corrupção. Nenhum partido sobrevive sem dinheiro, é preciso financiar seu funcionamento, com custos cada vez mais altos. Aqui serei breve, pois os fatos atuais, divulgados em escala crescente, emudecem a cidadania, perplexa com a ousadia de um partido que antes pregava a correção ética, à exaustão. O assalto à Petrobrás torna tal escândalo o maior já registrado e, simultaneamente, marca o PT como o partido mais corrupto da História brasileira. Os petistas serão capazes de lidar serenamente com os fatos iluminados pelo avanço das investigações? 

Como responder à colossal transferência de recursos públicos para garantir o sucesso de um partido? 

E lembremos, pois é gigantesca a crueldade política: o escândalo incide sobre uma sociedade desigual como a nossa, na qual prevalece uma estrutura regressiva de tributos, prejudicando os mais pobres. Como um partido autointitulado de esquerda se pode envolver nesse inominável crime?

E assim chegamos ao terceiro elemento que pretendo apontar nestas notas e que diz respeito à incógnita da equação. Ou pelo menos assim aparece, pois ainda não foi decifrada. Trata-se da pergunta: qual o objetivo finalístico de tudo isto? Há no horizonte de longo prazo um projeto para o Brasil ou um plano para reconfigurar a Nação que igualmente descreva a estratégia do jogo?

A resposta a essas indagações realça a maior de todas as vilanias, pois esses objetivos são inexistentes. Deixo o desafio: que alguém aponte algum documento de alguma significação mais substantiva, com a assinatura do Partido dos Trabalhadores, no qual esteja delineado um cenário de transformações para o Brasil. Como insistido no artigo anterior, o partido deixou de pensar desde os anos 90 e, em tempos recentes, tem sido incapaz de sequer refletir sobre o País, apontando os desafios e as mudanças que nos fariam uma Nação próspera e justa. Conformou-se com as delícias do poder, do consumo e do dinheiro produzidos pela ascensão social de seus operadores.

Esse é o coração da tragédia petista e nos deixa, os cidadãos, prostrados e à espera. Seria o anúncio da mudança que os atuais detentores do poder nem ao menos sabem enunciar, mesmo que retoricamente.

Sociólogo/professor aposentado da UFRGS
fonte: O Estado de S. Paulo

terça-feira, 25 de novembro de 2014

Macunadilma (Fernando Gabeira)




Dois dias depois do Juízo Final, fui nadar como de costume. Um grupo de torcedores do Flamengo desceu do ônibus e bloqueou o passeio. Eram do Espírito Santo, vieram num ônibus especial. Um deles me olhou com raiva e disse que eu tinha cara de vascaíno. Ele vestia uma camisa vermelha e preta com o símbolo da Alemanha. Um alemão me aporrinhando, pensei, e deixei para cuidar disso, como faço com toda irritação matinal, depois dos 400 metros na água.

A ideia da divisão emergiu na minha cabeça. Estamos divididos. O olhar que me lançou era um olhar de desdém ao vascaíno. O outro dele era o vascaíno com uma série de defeitos que se atribui a ele. Eu mesmo, ao pensar num alemão, no sentido em que se usa nos morros do Rio, fortalecia a ideia de divisão, entre mim e o outro, nós e eles. Passamos por uma campanha eleitoral pesada. O outro do petista era o tucano e vice-versa. Todos falamos em superar a divisão, depois de outubro, e achar sai ; das para os grandes problemas nacionais.

Entre o lugar onde estamos agora e a ilha onde nos reconciliaremos há um oceano de petróleo, na verdade um petrolão, o maior escândalo de nossa História. .

Dilma afirmou na Austrália que seu governo foi o primeiro a combater a corrupção. Jogou o Lula na fogueira, tentando, como um canguru, driblar a tempestade que a ameaça.

Dilma não quis investigar. O que apareceu no escândalo surgiu de um trabalho autônomo da polícia e da Justiça.

Nesse período, Dilma brincou de esconde-esconde. Orientou sua base a boicotar a CPI. Abriu-se um inquérito na Petrobras para apurar denúncias de suborno na compra de plataformas, e constatou-se que nada houve de errado, inocentes. Na Holanda, a empresa SBM confessou ao governo de seu país que pagou US$ 139 milhões a diretores da Petrobras.

Milhões pra cá, milhões pra lá, um diretor indicado pelo partido na cadeia, o tesoureiro do partido denunciado na delação premiada, a cunhada do tesoureiro levada à PF, tudo isso acontecendo, Dilma e o PT fazem cara de paisagem, como se não fosse com eles.

Nos depoimentos até agora, mais de R$ 200 milhões foram entregues ao homem do PT na Petrobras. O homem é amigo do tesoureiro. Talvez Dilma acredite que esse dinheiro todo foi doado à Africa para combater o surto do ebola. Mas a lógica indica que tenha sido usado nas campanhas políticas. Campanhas caras, de líderes e postes, estes mais caros ainda, porque demandam profissionais para redesenhá-los da cabeça aos pés, passando, naturalmente, pelo cérebro.

Estamos entrando numa tempestade, e a única forma de atravessá-la é admitir as evidências e aceitar que o bloco no poder assaltou a Petrobras. Isto vale também para as empresas. Os advogados vão orientá-las a negar, embora já existam tantos depoimentos incisivos. No exterior, o conselho óbvio seria admitir o erro, pagar por ele, reformular sua estratégia. A visão macunaímica de que não importam os fatos, mas sim as versões, certamente será superada pelo realismo.

O bloco no poder pensou que isso poderia ser apenas do tamanho do mensalão. Ignorou que estava assaltando uma empresa com vínculos internacionais. Investigam na Holanda, nos Estados Unidos: o cerco está fechado. Dilma e o PT não perceberiam que estão no fim da linha. E acabaram de ganhar as eleições. Será preciso muita humildade para sobreviver.

E isso não é o forte de quem quer dobrar a aritmética nas contas públicas, esconde o salto de 122% no desmatamento da Amazônia, põe para baixo do tapete números da redução da miséria.

Tudo por um modelo que preserva o emprego, dizia Dilma. Enquanto isso, 30.283 pessoas perderam seus postos de trabalho no mês em que ela se reelegeu. E como não bastasse o domínio dos números, querem o domínio das mentes: o ministro da Justiça diz à oposição como ela deve se comportar diante do escândalo. Todo um complexo político-empresarial que atrasa o Brasil foi por terra no dia do Juízo Pinai. Nem precisava de um impulso tão grande: estava podre,

Quando Dilma se distanciou, olimpicamente, do escândalo da Petrobras, lembrei-me do primeiro artigo que escrevi sobre o tema: "Passa passa Pasadena, quero ver passar". Era o seu título. E veio o petrolão como uma onda gigantesca.

Dilma aprovou a compra de Pasadena "sem ter os dados" Isso cola no Brasil. Nos Estados Unidos, onde a negociata está sendo investigada, a responsabilidade alcança também os dirigentes. Ao se distanciar do escândalo da Petrobras, Dilma parece acreditar que nasceu de novo nas eleições e vai enfrentar a tempestade com guarda-chuva e galochas do marketing.

Vai se molhar. Há uma crise econômica pela frente. Investidores estrangeiros observam cautelosos. Precisamos deles, inclusive no pré-sal. Não dá para enganar mais e erguer o punho cerrado entrando na cadeia. Já era patética a performance de José Dirceu no mensalão. No petrolão, seria um gesto, num certo sentido, libertador: sair dali para uma clínica psiquiátrica.
Fonte: O Globo (23/11/14)

No fio da navalha (Marco Aurélio Nogueira)





Há uma dissonância querendo crescer no Planalto. Ela dá o ar da graça mediante uma velha conhecida das esquerdas no mundo todo. Pode ser assim apresentada: quanto mais complexas parecem ser as tarefas do governo reeleito, mais deveriam as forças que o apoiam pressioná-lo a ir para a esquerda, ou seja, a radicalizar suas posições, seu discurso, suas políticas e suas alianças. Se o raio de manobra diminuiu, a melhor saída seria "empoderar" o governo pela via do movimento social, libertando-o dos gargalos que lhe impõem o sistema político e a estrutura econômica.

Todos reconhecem, sem exceção, que ficou mais difícil a situação do governo, em que pese Dilma ter vencido a eleição. Há o megaevento da Petrobrás, cujos desdobramentos não se consegue prever, há o rombo nas contas públicas, a disputa pela presidência da Câmara, o crescimento econômico que não desponta e a inflação que persiste, a educação e a saúde a latejar, tudo isso combinado com a presença de uma oposição mais forte e a necessidade que o governo terá de formar nova maioria no Congresso sem se deixar levar pela chantagem excessiva do PMDB e de seus aliados.

O governo estará obrigado a dedicar tempo e atenção à política, negociar mais e melhor, dialogar de verdade, buscar novas fontes de legitimação e recuperar o tempo perdido, fazendo tudo isso com uma marca clara de inovação. Não poderá simplesmente reproduzir o toma-lá-dá-cá que tem prevalecido nas relações Executivo-Legislativo ou a rotina das políticas assistencialistas dos últimos anos, que deverão ser sustentadas e consolidadas sem que sejam tidas como a única marca registrada da ação governamental. Se o governo forçar a mão, poderá perder parte de seus apoios e comprar briga com o mercado; sua base parlamentar, aliás, que operou em regime de engorda crescente ano após ano, bateu no teto. Se mantiver tudo como está, poderá terminar engessado e frustrar os eleitores que viram na reeleição da presidente a possibilidade de "mudar mais". Caminhará, pois, no fio da navalha.

Um Ministério "mais qualificado" é esperado tanto pelo mercado quanto pelo PT, mas por motivos distintos. Os operadores econômicos querem uma equipe que estabilize e promova crescimento, ao passo que o partido quer nomes que agreguem suas correntes e seus militantes, ajudando-os a permanecer no campo da mudança e do reformismo social. O País, por sua vez, espera que a presidente lhe apresente uma agenda para o futuro.

A "reforma política", que está na ordem do dia, não poderá ser o principal recurso para enfrentar o furacão que se anuncia. Corrupção casa com financiamento eleitoral, mas tem mil tentáculos. Governos podem funcionar seja qual for o sistema de voto. E uma reforma política, por mais bem-sucedida que venha a ser, não produzirá efeitos imediatos nem sobre a dinâmica política, nem sobre a governabilidade, pouco servindo, portanto, para melhorar o desempenho governamental.

O momento indica que o PT deve reposicionar-se. Sua direção nacional fala em "construir hegemonia na sociedade". Se a expressão for bem traduzida, poderá significar que o partido dará maior atenção à elaboração de uma cultura que sirva de parâmetro para a educação política dos brasileiros, podendo até implicar maior questionamento das ações governamentais. Isso jogaria o PT mais no longo que no curto prazo, mais na guerra de posição que na guerra de movimento. O partido, porém, deseja atuar, "em conjunto com partidos de esquerda", para desencadear um amplo processo de mobilização social.

Como disse o governador Tarso Genro (RS) - defensor de uma reestruturação profunda do PT -, o partido "deve deixar de ser mero apoiador-espectador, excessivamente preocupado com cargos e espaços na máquina pública, para se tornar um partido apoiador-proponente, disputando os rumos do governo". Sua proposta põe em xeque o sistema de alianças em vigor, o que significaria aumentar a distância do PMDB: "O governo da presidenta Dilma deve não só ser defendido da direita tradicional dos tucanos, mas também da direita que integra sua própria base parlamentar". Cabe ao PT ser "o núcleo de sustentação mais coerente das medidas progressistas e democráticas do segundo governo Dilma".

Uma "frente de esquerda" voltou assim a frequentar os discursos petistas.

O contraponto tem sido feito pelo ministro Gilberto Carvalho, um dos mais próximos do ex-presidente Lula. Para ele, o momento é de valorizar o diálogo tanto para "reunificar o País" quanto para sanar deficiências que se acumularam. Imprimir outro curso ao governo, corrigir falhas e erros, mas sem implodir a base parlamentar duramente construída, mantendo próximos e unidos todos os partidos que apoiam o governo, sem vetos.

O PT da "frente de esquerda" distingue-se do PT do "diálogo" à direita, mas ambos se compõem: o governo governaria com a aliança à direita e o partido o pressionaria pela esquerda, ativando os movimentos sociais, numa espécie de "duplo poder", o do governo e o do partido.

Diante disso, três questões ficam em aberto. A primeira é se o diagnóstico acerta ao constatar a existência de forças e movimentos de esquerda para integrar uma frente como a pretendida; mesmo que existam, elas podem não ter disposição para atuar de modo unitário. A segunda é se a união dessas correntes encontraria respaldo efetivo no PT e ajudaria o governo. E a terceira tem que ver com o que a "frente de esquerda" fará com os democratas liberais e a esquerda democrática não petista. Se empurrá-los em bloco para a "direita", estará praticando uma infâmia e turbinando as oposições. O mais razoável seria agregá-los ao "novo ciclo reformista" que se deseja inaugurar em 2015. Para isso, porém, a "frente de esquerda" precisaria ser convertida numa "frente democrática", proposta para a qual a cultura petista majoritária não se mostra suficientemente preparada.

Professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da UNESP
Fonte: O Estado de S. Paulo (22/11/14)

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Estatais aos pedaços (Eduardo Giannetti)




O paradoxo salta aos olhos. Temos um governo de perfil estatizante, cioso da sua orientação nacional-desenvolvimentista, mas que logrou a proeza de arrebentar nossas duas principais empresas estatais. Obra de raro descortino.

A Petrobras, orgulho nacional, não só perdeu a condição de apresentar um balanço auditado crível como será forçada a republicar balanços anteriores, corrigindo as baixas referentes ao pagamento de bilhões de reais --quem saberá ao certo?-- em propinas nos últimos anos (outro exemplo da máxima, atribuída a Pedro Malan, de que "no Brasil até o passado é imprevisível").

Já a Eletrobras, vítima da MP 579, de 2012, que antecipou a renovação das concessões de energia mediante a redução das tarifas, acaba de admitir que não disporá de recursos para pagar dividendos neste ano.

Além da queda do seu valor de mercado, com ações negociadas abaixo do valor patrimonial, a Eletrobras teve prejuízo de R$ 2,7 bilhões só no terceiro trimestre deste ano, o que inviabiliza a remuneração mínima de 6% prometida aos acionistas.

Os caminhos do inferno, é claro, diferem. A ruína da Eletrobras foi fruto das boas intenções do governo Dilma (o setor elétrico, aliás, teria sido o tema da dissertação de mestrado da presidente na Unicamp), ao passo que a devastação da Petrobras resulta, entre outras coisas, da ação articulada de profissionais: uma quadrilha de empreiteiros, burocratas, lobistas e dezenas de políticos que conferiu ao lema getulista --"o petróleo é nosso"-- inédito e inadvertido significado.

Mas existe um substrato comum a esses descalabros. Ambos refletem a deformação patrimonialista do Estado brasileiro --"o capitalismo politicamente orientado", no dizer de Raymundo Faoro em "Os Donos do Poder", que aportou por aqui com as caravelas, atravessou cinco séculos de história e foi alçado a novo patamar no atual governo.

As facetas do patrimonialismo relevantes nestes casos são 1) o microgerenciamento e a tutela do Estado sobre a atividade econômica, alterando regras e revendo contratos de forma arbitrária ao sabor de conveniências circunstanciais e 2) o condomínio do poder calcado na simbiose promíscua entre público e privado aliado ao loteamento de órgãos e empresas estatais como forma de cooptação política.

A probabilidade de existir corrupção aumenta à medida que os governos se envolvem em todos os meandros da economia. A debacle da Eletrobras e o escândalo da Petrobras chocam pela magnitude, mas estão em perfeita linha de continuidade com a atual recaída patrimonialista.

O Brasil carece de instituições que mantenham os cidadãos e a economia a salvo dos abusos, inépcia, venalidade e ambições dos donos do poder.
fonte: Folha de São Paulo

Apocalipse, agora (Fernando Gabeira)





Passada uma semana do juízo final, ainda me pergunto cadê a Dilma. Ela disse que as contas públicas estavam sob controle e elas aparecem com imenso rombo. Como superar essa traição da aritmética? Uma lei que altere as regras. A partir de hoje, dois e dois são cinco, revogam-se as disposições em contrário.

Os sonhos de hegemonia do PT invadem a matemática, como Lysenko invadiu a biologia nos anos 30 na Rússia, decretando que a genética era uma ciência burguesa. A diferença é que lá matavam os cientistas. Aqui tenho toda a liberdade para dizer que mentem.

Cadê você, Dilma? Disse que o desmatamento na Amazônia estava sob controle e desaba sobre nós o aumento de 122% no mês de outubro. Por mais cética que possa ser, você vai acabar encontrando um elo entre o desmatamento na Amazônia e a seca no Sudeste.
Cadê você, Dilma? Atacou Marina porque sua colaboradora em educação era da família de banqueiros; atacou Aécio porque indicou um homem do mercado, dos mais talentosos, para ministro da Fazenda. E hoje você procura com uma lanterna alguém do mercado que assuma o ministério.

Podia parar por aqui. Mas sua declaração na Austrália sobre a prisão dos empreiteiros foi fantástica. O Brasil vai mudar, não é mais como no passado, quando se fazia vista grossa para a corrupção. Não se lembrou de que seu governo bombardeou a CPI. Nem que a Petrobrás fez um inquérito vazio sobre corrupção na compra de plataformas. A SBM holandesa confessou que gastou US$ 139 milhões em propina.

E Pasadena, companheira?

O PT está aí há 12 anos. Lula vez vista grossa para a corrupção? Se você quer definir uma diferença, não se esqueça de que o homem do PT na Petrobrás foi preso. Ele é amigo do tesoureiro do PT. A cunhada do tesoureiro do PT foi levada a depor porque recebeu grana em seu apartamento em São Paulo.

De que passado você fala, Dilma? Como acha que vai conseguir se desvencilhar dele? A grana de suas campanhas foi um maná que caiu dos céus?

Um dos traços do PT é sempre criar uma versão vitoriosa para suas trapalhadas. José Dirceu ergueu o punho cerrado, entrando na prisão, como se fosse o herói de uma nobre resistência. Se Dilma e Lula, por acaso, um dia forem presos, certamente, dirão: nunca antes neste país um presidente determinou que prendessem a si próprio.

Embora fosse um fruto do movimento de arte moderna no Brasil, Macunaíma é um herói pós-moderno. Ele se move com desenvoltura num universo onde as versões predominam sobre as evidências. Nesta primeira semana do juízo final, pressinto a possibilidade de uma volta ao realismo. É muito aflitivo ver o País nessa situação, enquanto robôs pousam em cometas e EUA e China concordam em reduzir as emissões de gases de efeito estufa. O realismo precisa chegar rápido para a equação, pelo menos, de dois problemas urgentes: água e energia. Lobão é o ministro da energia e foi citado no escândalo. Com perdão da rima, paira sobre o Lobão a espada do petrolão. Como é que um homem desses pode enfrentar os desafios modernos da energia, sobretudo a autoprodução por fontes renováveis?

Grandes obras ainda são necessárias. Mas enquanto houver gente querendo abarcar o mundo a partir das estatais, empreiteiras pautando os projetos, como foi o caso da Petrobrás, vamos patinar. O mesmo vale para o saneamento, que pode ser feito também por pequenas iniciativas e técnicas, adequadas ao lugar.

Os homens das empreiteiras foram presos no dia do juízo final. Este pode ser um caminho não apenas para mudar a política no Brasil, mas mudar também o planejamento. A crise hídrica mostra como o mundo girou e a gente ficou no mesmo lugar. Existe planejamento, mas baseado em regularidades que estão indo água abaixo com as mudanças climáticas.

O dia do juízo final não foi o último dia da vida. É preciso que isso avance rápido porque um ano de dificuldades nos espera. Não adianta Dilma dizer que toda a sua política foi para manter o emprego. Em outubro, tenho 30.283 razões para desmentir sua fala de campanha: postos de trabalho perdidos no período.

Não será derrubando a aritmética, driblando os fatos que o governo conseguirá sair do seu labirinto. O desejo de controlar a realidade se estende ao controle da própria oposição. O ministro da Justiça dá entrevista para dizer como a oposição se deve comportar diante do maior escândalo da História. Se depois de saquear a Petrobrás um governo adversário aconselhasse ao mais ingênuo dos petistas como se comportar, ele riria na cara do interlocutor. Só não rio mais porque ando preocupado. Essa mistura de preocupação e riso me faz sentir personagem de uma tragicomédia.

Em 2003, disse que o PT tinha morrido como símbolo de renovação. Me enganei. O PT morreu muitas vezes mais. Tenho de recorrer ao Livro Tibetano dos Mortos, que aconselha a seguir o caminho depois da morte, sem apego, em busca da reencarnação. Em termos políticos, seria render-se à evidência de que saqueou a Petrobrás, comprou, de novo, a base aliada e mergulhar numa profunda reflexão autocrítica. No momento, negam tudo, mas isso o Livro Tibetano também prevê: o apego à vida passada é muito comum. Certas almas não vão embora fácil.

A crise é um excelente psicodrama: o ceticismo político, a engrenagem que liga governo a empreiteiras, o desprezo pelas evidências, tudo isso vira material didático.
Dizem que Dilma vive uma tempestade perfeita com a conjunção de tantos fatores negativos. Navegar num tempo assim, só com o preciso conhecimento que o velho Zé do Peixe tinha da costa de Aracaju, pedra por pedra, corrente por corrente.

No mar revolto, sob a tempestade, os raios e trovões não obedecem aos marqueteiros. Por que obedeceriam?

O ministro da Justiça vê o incômodo de um terceiro turno. Não haverá terceiro turno, e, sim, terceiro ato. E ato final de uma peça de teatro é, quase sempre, aquele em que os personagens se revelam. Por que esses olhos tão grandes? Por que esse nariz tão grande, as mãos tão grandes, vovozinha?
Fonte:O Estado de S. Paulo


sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Sair da confusão (Luiz Werneck Vianna)




"Sair da confusão" - com essa frase o treinador Vanderlei Luxemburgo, recém-contratado pelo Flamengo, clube em grave crise e sob a iminência de rebaixamento da série A do Campeonato Brasileiro de Futebol, iniciou seu trabalho à frente do elenco sob seu comando. A definição clara do objetivo estratégico a ser perseguido parece, a esta altura, que lhe foi propícia, pois tudo indica que em breve se dissiparão pesadas nuvens que ainda pesam no horizonte da sua agremiação. A questão que ora se põe para a política brasileira é da mesma natureza: sair da confusão a que fomos levados pela surpreendente fúria de que se revestiu a competição eleitoral - no prognóstico consensual que antes se fazia, mais uma a transcorrer sem maiores atropelos desde a democratização do País.

Tratava-se, é fato, de uma eleição fadada a ser mais competitiva que as anteriores com a candidatura de Eduardo Campos a trincar a base de sustentação das hostes governistas, mas o que veio a suceder vem desafiando o script mais fantasista de que se poderia dispor para o seu enredo. Mal ou bem, fora o ponto fora da curva das jornadas de junho de 2013 - nada inocente, aliás, quanto ao que veio a ocorrer no processo eleitoral -, a política brasileira vinha seguindo o traçado amável e confiável desenhado pelo constituinte de 1988 quando, de súbito, se deparou com uma bifurcação inesperada provocada pelo crescimento, primeiro, da candidatura de Marina Silva, que surgiu opondo à agenda da modernização a do moderno, e, depois, da de Aécio Neves, com sua desenvoltura nos debates eleitorais.

A derrota eleitoral, antes uma hipótese de laboratório, havia se tornado uma possibilidade tangível. Para evitá-la, um caminho seria o de seguir avante na trilha astuta aberta por Lula no episódio da Carta ao Povo Brasileiro em sua primeira sucessão, mas com as jornadas de junho de 2013 o novo cenário não parecia ser promissor a ele; outro, sempre encapuzado e que, provavelmente, não corresponderia às convicções de Lula - se a consulta a seu passado permite jogar luz sobre seu posicionamento político -, seria o de investir na estrada do discurso do nacional-desenvolvimentismo, com registro na biografia de Dilma Rousseff e presença latente em suas ações na Presidência da República. Optou-se por este último, avaliado como atraente por falar ao imaginário de setores da esquerda que jamais se conformaram com a via da transição adotada pelas forças que conduziram a democratização do País.

Esses setores se deixaram seduzir por esse canto de sereias, mesmo que em tom de falsete, e acorreram em massa à campanha governista, vindo a desempenhar, por seu aguerrimento, principalmente nas redes sociais, um não pequeno papel na sua vitória eleitoral. Decerto, contudo, que o fator decisivo teve seu lastro na memória, que ainda se guarda, e com mais força em algumas regiões do País, do papel do Estado como instância da Providência - na era que leva seu nome, Vargas era chamado de "pai dos pobres" -, reavivada na campanha vencedora nas urnas.

Por essa via fortuita o populismo ganhou seu bilhete de reingresso na política brasileira, não se sabe, ainda, se de modo instrumental para efeitos da disputa eleitoral, ou permanente, mas logo sua real condição se fará pública com a designação do Ministério pela presidente eleita, em particular nas pastas da Fazenda e da Agricultura. Esse será o momento de a presidente subscrever, a seu modo, a sua carta ao povo brasileiro, ou, alternativamente, optar pela razão populista, contrariando o prudente Vanderlei, que tem horror à confusão.

A narrativa da História contemporânea brasileira na chave do populismo parecia estar sepultada e, como se sabe, o Partido dos Trabalhadores foi um dos seus principais coveiros, tanto pela ação decisiva do sindicalismo do ABC paulista - em que Lula foi personagem destacado, quando denunciou as instituições da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) como o AI-5 dos trabalhadores e se rebelou contra ela - quanto pela crítica de algumas importantes personalidades intelectuais que a ele se vincularam, como Florestan Fernandes, Raymundo Faoro e Francisco Weffort, avessos ao nacional-desenvolvimentismo e à estatolatria. Weffort, por sinal, tornou-se o primeiro secretário-geral do PT.

A derrogação teórica do papel da classe operária, categoria que foi estratégica na forma como o PT se apresentou ao mundo, implícita no processo eleitoral - e não apenas nele, porque já o antecedia - pela categoria povo não consiste numa operação trivial, especialmente num país com as nossas tradições. A perda de centralidade do mundo do trabalho na cena contemporânea se constitui num fato registrado pela sociologia, mas daí a rebaixar, numa sociedade de capitalismo expansivo como a nossa, suas lutas econômicas e por reconhecimento social ao estatuto genérico de abrigarem apenas mais um tipo de demanda social, entre outras, vai um oceano.

Com o deslocamento do mundo do trabalho para uma posição periférica na "construção do político", como sugerem teorias em voga, sinaliza-se para uma relativização do tema institucional em nome de pressões difusas e desencontradas em seus propósitos vindas da região do social. Não esquecer que o sindicalismo nasceu da luta pela institucionalização de direitos, o primeiro deles, pela regulamentação da jornada de trabalho e, um pouco mais tarde, em torno do seu direito à participação na política.

Diante do vazio que se abre com sua fraca presença em cena, fruto da política de cooptação a que foi sujeito nos governos de Lula, sobra espaço para as manipulações discursivas, sob a arbitragem do Estado como intérprete privilegiado, em competição aberta por hegemonia, tal como viceja no atual populismo latino-americano. Isso não é Gramsci nem sua teoria da hegemonia, e, sim, uma promessa de nos afundar no pântano da confusão.

Luiz Werneck Vianna é cientista social, PUC-Rio
Fonte: O Estado de S. Paulo

terça-feira, 11 de novembro de 2014

Estará sendo gestada no Brasil uma oposição pós-moderna? (Juan Árias)


'No mundo da pós-modernidade, é fundamental saber intuir as tendências, tão presentes, por exemplo, na moda, no sexo e na arte. E na política? Poderia parecer um paradoxo, mas o Brasil talvez esteja intuindo um tipo de oposição inovadora, pós-moderna, diferente das oposições clássicas do passado. Não digo que seja melhor ou pior, apenas diferente, e por isso difícil de entender, como qualquer outra tendência que aflora na superfície sem que se saiba bem como se estabilizará. E não será uma batalha fácil.
Mas alguns flashes dessa oposição, mais pós-moderna que tradicional, já começam a aparecer em comentários na imprensa e nas redes sociais. O que parece caracterizar esse novo tipo de oposição é, por exemplo, certo caráter lúdico, plural e festivo.Como explicar então que o derrotado Aécio Neves, terminadas as eleições (que foram as mais duras dos últimos tempos e dividiram o país em dois, com dor e até com rompimentos entre pessoas), pudesse ser recebido em Brasília, coração do poder político, às portas do Congresso, como um vitorioso em meio a uma festa popular? Em sua longa entrevista ao jornal O Globo, Neves, derrotado nas urnas, declarava-se “de bem com a vida” e demonstrava um tipo de oposição política diferente do que se via no passado.

Desenhou uma oposição que inclui uma novidade: será firme, sem adjetivos, mas não raivosa, nem se limitará só aos políticos no Congresso. Aécio deseja criar um “movimento” que “abrace a sociedade”. E isso seria novo, pós-moderno.

Até agora a sociedade (que não deve ser confundida com os movimentos sociais institucionais) não era chamada pela oposição para opinar. Se por acaso tal chamado ocorria, era para a ira e a guerra. Era uma oposição só do contra. Desta vez, o líder do maior partido oposicionista quer que as pessoas participem da oposição e se sintam suas donas. Não se trata do “quanto pior, melhor”, nem que tenha como lema, como costuma acontecer nas oposições tradicionais, “estar contra tudo o que o Governo propuser”. A oposição que está se formando parece anunciar alguns traços típicos da pós-modernidade, como o de poder ser plural e, ao mesmo tempo, real e pontual.

Essa nova forma de oposição parece desejar romper os antigos moldes do dualismo maniqueísta ocidental que divide as pessoas e coisas em boas ou más, de direita ou de esquerda, em amigos e inimigos, em nós e eles. Esse tipo pós-moderno de oposição já poderia estar latente nas características do brasileiro. Quem acaba de indicar isso numa visita ao Rio foi o sociólogo francês Michel Maffesoli, um dos maiores especialistas em pós-modernidade, segundo quem esta sociedade, ainda sem tomar consciência disso, talvez esteja começando a ser um “laboratório pós-moderno”. Isso significaria um predomínio da criatividade e certa ausência do velho economicismo ocidental ou norte-americano, o da produtividade a qualquer custo. Preponderaria no Brasil – mais na base do que na elite – não tanto o valor puramente econômico, mas sobretudo o antropológico e cultural, incluindo neste, por exemplo, o caráter festivo da vida e o apreço ao tempo livre. Seriam mais valorizadas as relações amigáveis e interpessoais que as bélicas.

 É significativo que Aécio, que hoje encarna a nova oposição (uma instituição tão importante como a do Governo em qualquer democracia verdadeira), pareça querer retomar o movimento oposicionista das manifestações de protesto de junho de 2013, que já apresentavam traços de pós-modernidade.Relendo as notícias daquelas semanas, nota-se, de fato, que o coração do protesto, sem bandeiras ideológicas, com a participação de todas as classes sociais, tinha os traços da criatividade festiva e da diversidade de opiniões nos slogans apresentados. Vimos até crianças sentadas no chão com seus pais, na porta do Congresso, desenhando seus próprios cartazes cheios de cor.

Também desta vez, quando os perdedores das eleições, querendo se juntar nas ruas, se chocaram com o velho clichê de oposição raivosa e belicosa exigindo a volta dos militares, o que implicaria uma volta à ditadura, a nova oposição condenou sem rodeios os demônios autoritários e nostálgicos infiltrados nas manifestações. Aécio deixou claro que é inútil tentarem “arrastá-lo para a direita”. Uma das características da pós-modernidade é, com efeito, a dificuldade em aceitar os velhos conceitos da política que divide em vez de somar. É possível que esses vislumbres de uma tendência pós-moderna que apresenta uma nova forma de oposição, menos amarrada aos clichês tradicionais da velha política, acabem morrendo pelo caminho.

Se tomarem corpo, a vitoriosa seria a democracia, hoje tantas vezes afivelada, sitiada e ameaçada pelos velhos demônios hegemônicos do “dividir para vencer”.A pós-modernidade analisada por pensadores como Baudrillard, Bauman, Giacomo Vatimo, Zizek e Maffesoli caracteriza-se por conferir valor agregado ao pluralismo de ideias, à diversidade de pensamento, aos antidogmas, assim como ao esforço para “entender os outros” em vez de julgá-los e vê-los como inimigos que devem ser exterminados. São simplesmente diferentes, não inimigos. O Brasil é ao mesmo tempo muitos Brasis. Hoje convivem, também na política, o atraso e a pós-modernidade. Talvez por isso este país às vezes confunda e às vezes fascine os estrangeiros.

 Qual destes Brasis acabará triunfando? Só o futuro dirá.O que se nota por enquanto na política é, junto com certo desencanto e até enfado, um ímpeto de abrir caminhos novos, começando pela própria oposição. A guerra desatada durante e depois das eleições, deixando profundas feridas entre os brasileiros, começa a querer ser substituída pelo que há de mais brasileiro: a vontade de paz, de amizade e solidariedade. E as pessoas que lutam para metabolizar os rancores da briga eleitoral começam a respirar mais aliviadas. Uma oposição em chave de pós-modernidade seria, de fato, a única capaz de harmonizar uma ação vigilante e severa com as ações do governo, sem que isso signifique desejos de vingança ou de revanche, escancarados ou não. H

á algo que os brasileiros “adoram”, como gostam de dizer, é poder compartilhar com os outros a paixão de se encontrar para bater papo, tomar uma cerveja e dançar samba ou forró, ou para gritar ao governo que as coisas precisam mudar. O prazer solitário ou a quebra das amizades não são flores que germinem nestas terras. Quem teimar em fazê-las brotar, de um ou outro lado da arena, acabará arrastado pelo vento do fracasso. Os melhores gols não são os marcados no jogo sujo, são os que trazem em si o tremor da criatividade, aqueles que pareciam impossíveis de marcar e que nos deixam na boca o gosto da vitória merecida, não comprada nem roubada.Não são esses os gols da pós-modernidade, capazes de serem aplaudidos até pela equipe adversária?
Fonte: El Pais

Pinóquio para presidente (Gil Castello Branco)




É conhecida a fábula de Collodi e o seu personagem Pinóquio, simpático boneco de madeira cujo nariz aumentava quando mentia. Seria ótimo que o mesmo acontecesse com os políticos, especialmente nas campanhas eleitorais, porque é gritante a contradição entre as palavras e os fatos ocorridos após o pleito.

Bastaram duas semanas para Dilma transformar a sua carruagem em abóbora. A presidente reeleita deve ter se inspirado em Maquiavel, que no seu livro "O Príncipe" (1513) aconselhou: " É preciso fazer todo o mal de uma só vez a fim de que, provado em menos tempo, pareça menos amargo."

A quinzena do mal foi intensa. O Comitê de Política Monetária (Copom), do Banco Central (BC), elevou em 0,25 ponto percentual a taxa básica de juros (Selic), com o argumento de que precisava garantir cenário mais "benigno" para a inflação em 2015 e 2016. A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) autorizou aumentos de tarifas em Roraima, Amazonas e no Rio de Janeiro. O Ministério da Fazenda anunciou déficit primário de R$ 20,4 bilhões nas contas do Tesouro, Previdência Social e BC em setembro, o pior resultado de todos os meses desde o início da série histórica, em janeiro de 2007. O ministro da Fazenda já demitido confessou que a meta fiscal não será alcançada este ano. Para que as autoridades econômicas não sejam enquadradas em crime de responsabilidade, a equipe econômica vai recorrer ao Congresso, que deve ajustar o primário para o limite menor.

A balança comercial brasileira registrou o maior rombo mensal desde 1998. A gasolina e o diesel já estão mais caros. O número de brasileiros em situação de extrema pobreza cresceu em 2013, conforme dados oficiais divulgados na página do Ipea, à surdina, após as eleições. O desmatamento da Amazônia em setembro e outubro deste ano cresceu 122% se comparado ao mesmo bimestre no ano passado, o que também só veio à tona depois do pleito.

Na terra de Macunaíma - obra surrealista do escritor Mário de Andrade repleta de aspectos fantasiosos e ilógicos - tão logo Aécio Neves ganhou as eleições, Arminio Fraga e Neca Setúbal subiram os juros e adotaram o receituário ortodoxo recomendado pelos banqueiros que fumam charutos e somem com o prato de comida da mesa das criancinhas. Até os subsídios ao BNDES a trinca já cogita reduzir! Dane-se a verdade.

No vale-tudo das eleições brasileiras, se Jesus Cristo fosse candidato, o marqueteiro de Dilma, João Santana, demonstraria que o PT fez mais em 12 anos do que o filho de Deus em 33. O maior milagre de JC foi multiplicar peixes e pães dando de comer a cinco mil fiéis na Galileia, enquanto o Bolsa Família atende 56 milhões de pessoas! A frase "Vinde a mim as criancinhas..." seria apresentada com conotação de pedofilia. Pobre Jesus Cristo. Antes morrer na cruz.

Nestas eleições, desconstrução foi sinônimo de mentira, intimidação, calúnia e difamação. A maior vítima foi a candidata Marina Silva, que se comparou a Davi enfrentando dois Golias. Com poucos minutos diários na TV, sem a funda e as pedras, sucumbiu, às barbas do Tribunal Superior Eleitoral, que só coibiu a baixaria no final das eleições. Por essas e outras, a reforma eleitoral deveria debater o favorecimento descarado dos que concorrem exercendo mandatos de deputado, senador, governador e presidente da República utilizando verbas públicas para combustíveis, telefones, locações e até os palácios. Além disso, é necessário discutir limites para os valores das campanhas, as relações promíscuas entre doadores, partidos e candidatos, a reorganização do Fundo Partidário e do horário eleitoral gratuito, entre outras questões.

Enfim, após eleita, Dilma se vestiu de branco e pregou o diálogo. Ao contrário do que afirmava, preocupou-se com a contenção da inflação, a retomada do crescimento e o reequilíbrio fiscal. No pacote incluiu surradas promessas de reduzir as despesas com seguro-desemprego, abono salarial e auxílio-doença. Assim, espera resgatar a credibilidade das contas públicas - maquiadas pela contabilidade irresponsável - e evitar que o Brasil perca grau de investimento.

Até que ponto o festival de notícias impopulares teria afetado a votação da presidente reeleita, caso tivesse acontecido antes de 26 de outubro, são outros quinhentos. Mas, convenhamos, se não é estelionato eleitoral, é muita cara de pau.

Como o personagem de Collodi faz parte de uma fábula e os narizes dos políticos não crescem, resta-nos sugerir nas próximas eleições a adoção do detector de mentiras. Caso contrário, Pinóquio vai acabar presidente...

Gil Castello Branco, economista, é fundador da ONG Associação Contas Abertas.
Fonte: O Globo

domingo, 9 de novembro de 2014

O fetiche da classe média (Luiz Carlos Azedo)




O Brasil é um pais que gosta de mitigar suas contradições e conflitos sociais. Um belo exemplo é o que se faz com as favelas brasileiras. Poucos países do mundo passaram por uma degradação urbana como o nosso, onde o padrão de moradia popular passou a ser a favelização. Basta olhar para a paisagem para ver a crescente expansão do número de moradores na favela nas nossas cidades.

A solução para o problema é chamar a favela de bairro, com maciços investimentos em serviços, o que é bom, mas nenhuma preocupação em mudar o padrão das moradias, que vão se reproduzindo e se ampliando, com as lajes e puxadinhos, mal-ventiladas e mal-iluminadas, ao longo de becos, vielas e escadarias. Com a elevação do padrão de consumo, da renda e da oferta de serviços, chamar a favela pelo seu verdadeiro nome passou a ser elitismo e discriminação.

É óbvio que existem favelas no Rio de Janeiro que são verdadeiros cartões postais, elevadas à condição de bairros de classe média, seja pela excelente localização e facilidades de acesso — como Chapéu Mangueira, Pavão e Pavãozinho e Vidigal —, seja pela valorização dos imóveis depois que deixaram de ser domínio absoluto do tráfico de drogas. Mas são exceções. A maioria das favelas nas cidades brasileiras continua merecendo o nome. O pior é que não param de crescer.

O que está por trás dessa degradação das cidades brasileiras? Um modelo macroeconômico cujos pólos dinâmicos são a construção civil e o mercado imobiliário, pela capacidade de gerar empregos e captar a poupança familiar, e o transporte individual, que absorve a produção de automóveis e alimenta a rede de serviços ao seu redor. Como esse mercado não é acessível à grande massa da população, a ocupação urbana irregular passa a ser opção para quem não pode pagar alugueres mais caros e é obrigado a andar de ônibus, trem ou metrô.

No discurso político que fomenta e legitima esse processo a palavra mágica chama-se “nova classe média”. A mesma borracha que apaga do dicionário a palavra favela, tenta apagar miséria e pobreza, que caracterizam as condições de vida dessas pessoas. A gana atrás de votos se encarrega de construir o discurso populista que mascara a realidade e mantém de pé o novo fetiche: virar classe média num passe de mágica.

A miséria da política
O fetichismo é uma relação social entre pessoas que foi “coisificada”, ou seja, é mediatizada por coisas. O resultado é a aparência de uma relação direta entre as coisas e não entre as pessoas. Sendo assim, as pessoas agem como coisas e as coisas, como pessoas. É uma fenômeno que está na essência do capitalismo, no qual a troca de mercadorias é a única maneira em que os diferentes produtores se relacionam entre si.

O governo vende a ideia de que está promovendo uma revolução social no país, o que não é bem o caso. A ascensão social à classe média depende mais do esforço individual e das condições da economia do que das políticas públicas, cuja obrigação é garantir a igualdade de oportunidades. As políticas de transferência de renda apenas mitigam a miséria e a pobreza, mas estão sendo transformadas num grande fetiche.

O Ministério do Desenvolvimento Social, por exemplo, resolver criar indicadores que alteram a condição social da população de baixa renda mitigando indicadores sobre suas condições de vida. Por exemplo, estar fora da condição de miserável quem tem renda acima de R$ 70.

É sério isso? Claro que não, tanto que a população miserável do país, pela primeira vez desde quando foi criado esse indicador, aumentou em 3,7% em 2012 em vez de diminuir. Em números absolutos, passou de 10,08 milhões para 10,45 milhões de indivíduos na iniquidade social absoluta.

Acontece que o governo resolveu adotar os critérios “africanos” do Banco Mundial para mitigar a pobreza no Brasil, que foi dividida entre crônica, transitória, situação de vulnerabilidade e “melhor situação” (em inglês, “better off”). Segundo esses critérios, a “pobreza crônica” no ano passado caiu de 1,4% para 1,1% da população. Para onde foram esses pobres, voltaram a ser miseráveis ou melhoraram de vida?

A resposta está nos critérios de acesso a serviços públicos e bens: água, esgoto, luz, escola, celular, geladeira, televisão e computador. A renda média per capita dos pobres caiu de R$ 47 para R$ 45. Todavia, por causa desses indicadores, 5% da população mais pobre melhorou de vida. Ou seja, já podem dizer que estão “better off”. É isso aí!
Fonte: Correio Braziliense (09/11/14) 

Má qualidade da linguagem política modela a linguagem da vida cotidiana (Marco Aurélio Nogueira)




Conversando esta semana com um jornalista sobre a situação excessivamente belicosa que parece estar configurada no Brasil, me lembrei de uma imagem que costumo usar em aulas: a sociedade brasileira é como um caminhão de mudanças que carrega toda a tralha acumulada ao longo da vida por uma família que não teve tempo de se preparar para a nova casa. Leva tudo consigo, dos móveis e objetos recém-adquiridos à tranqueira esquecida no porão, naquele canto perdido do armário, guardada numa caixa de papelão empoeirada.

O Brasil se moderniza mas não se separa de seus defeitos históricos. Moderniza-se sem enterrar seus mortos e eles, a todo momento, voltam à vida para assustar os vivos. Sempre que isto acontece, os ânimos encrespam.

A metáfora me ajuda a entender por que, ao longo deste ano, há mais tensão e intolerância nos discursos públicos, na linguagem da vida cotidiana e no modo como os brasileiros passaram a se relacionar.

Alguns dizem que isto é tão-somente efeito colateral da disputa eleitoral. Em 2014, brasileiros teriam passado a demarcar melhor suas posições. Voltaram a discutir política, a manifestar suas opções e sua insatisfação, seus desejos e expectativas. Neste raciocínio, não haveria motivo para preocupação: a tensão que se percebe seria apenas nuvem passageira. Pode-se agregar, aqui, a ideia de que se trata de um subproduto da modernização e da democratização das últimas décadas, que deslocaram interesses e mexeram com os equilíbrios sociais. Os mais ricos perderam espaço e exclusividade, os mais pobres subiram à luz do dia e passaram a buscar reconhecimento, direitos e afirmação. O sistema teria ficado, assim, mais “nervoso”.

Há outros que relativizam o problema: só haveria tensão nas redes sociais e entre aqueles que são por elas sugestionados. O resto da sociedade estaria pacificada, ou continuaria a viver com as mesmas taxas de tensão de sempre. Nada, portanto, de luz amarela no horizonte. Os brasileiros continuam “cordiais” como antes, calorosos, passionais, afetuosos e chegados a intimidades no espaço público.

A versão mais próxima da realidade é a de que se trata de uma pequena minoria, uma elite rústica e grosseira, ativa nas redes e com facilidades de voz e exposição. Na contramão da massa da população, seria este segmento enraivecido que agita com violência, xinga e agride.

Acontece que esta minoria está aí e sempre será importante saber qual é seu real poder de fogo, sua capacidade de influenciar partes ponderáveis dos demais. Como não podemos dimensionar o tamanho desta elite, não dá para concluir muita coisa. Especialmente quando vemos tanta gente usando as palavras como se fossem adagas afiadas.

Problema distinto, portanto, é tentar entender porque cresceu a exasperação, ou porque ela ganhou tanta força no espaço público e no debate político, incorporando não somente os integrantes daquela elite grosseira, mas muito mais gente. Ou será que isto não está ocorrendo?

A baixaria está virando norma de conduta, sob o pretexto, por um lado, de honrar a informalidade típica do brasileiro e seu tradicional descuido com a linguagem. Por outro lado, é justificada como sendo o expediente que se tem à mão para que cada um possa demonstrar “combatividade” na defesa das próprias opiniões.

No próximo texto deste blog, pretendo refletir melhor sobre as razões que têm impulsionado esta inflexão em nossa vida cotidiana.

Agora, gostaria somente de enfatizar que o problema existe e deveria nos preocupar. Sempre há uma ligação entre linguagem política e linguagem da vida cotidiana. Uma influencia a outra, por menos que percebamos isto. Fala-se errado nas tribunas parlamentares porque se fala errado em casa e nas ruas. As narrativas do poder são tacanhas porque também o são as do cidadão. A voz do Estado é ruim porque também é ruim a da sociedade e porque o Estado, entre nós, funciona pouco como “educador” e muito como “repressor”. Somos deficientes em gramática, em concordância, em frases com verbo e sujeito bem colocados, em vocabulário. Por que a linguagem política seria diferente?

A linguagem política, por sua vez, funciona como efeito-demonstração e também modela a linguagem da vida cotidiana. Passa a sugerir que não é mais suficiente você ser contra o governo ou contra um ou outro partido: você precisa triturá-los, estraçalhá-los, atribuir todos os qualificativos negativos a eles, sem meio-termo ou papas na língua. Não basta ser contra a Dilma: é preciso apresentá-la como a encarnação de Behemot, a corrupção em pessoa, o diabo em forma de mulher. 

Não basta você não gostar do Aécio: você deve dizer que ele é um “playboyzinho viciado que bate em mulheres”. Não basta ter antipatia por Marina: deve-se dizer que ela é uma ilusionista, uma fada mística das florestas, uma farsante. E assim por diante.

O que está acontecendo hoje, neste mundo de redes e hiperatividade verbal em que vivemos, é a afirmação progressiva de uma convicção social: quanto mais grosso você for, mais chance terá de chamar atenção. Tua comunicação irá parar na sarjeta, mas você poderá terminar o dia com a sensação de ter vencido uma batalha a mais.

Marco Aurélio Nogueira é professor titular de Teoria Política, Unesp
Fonte: O Estado de S. Paulo (08/11/14)

'Bolivariano', você disse? (Demétrio Magnoli)




Gilmar Mendes será, daqui a dois anos, o único ministro do STF não indicado pelo lulopetismo. À Folha (3/11), ele alertou para o risco de que o Supremo se transforme numa "corte bolivariana". Seria o lulopetismo uma versão descolorida do "bolivarianismo"?

A revolução "bolivariana" definiu como meta política a unificação da América Latina contra os EUA e, como meta econômica, a implantação de um sistema estatista. O lulopetismo não compartilha tais metas. Na economia, procura modernizar o capitalismo de estado varguista. Na política, almeja apenas uma perene hegemonia. O regime chavista é revolucionário; o lulopetismo é populista e conservador. Sob o chavismo, a Venezuela tenta ser o que Cuba tenta deixar de ser, afundando no vórtice de uma crise terminal. Sob o lulopetismo, o Brasil reitera seus próprios anacronismos, desperdiçando oportunidades históricas.

Há uma diferença crucial de origem. O movimento "bolivariano" é fruto da ruptura: nasceu do colapso da democracia oligárquica venezuelana, no "Caracazzo", o levante popular de 1989, e consolidou-se após o frustrado golpe antichavista de 2002. O lulopetismo, pelo contrário, é fruto da continuidade: surgiu com a redemocratização e conquistou o Palácio na moldura da estabilização da democracia. O chavismo substituiu a desmoralizada elite política venezuelana; o lulopetismo integrou-se às elites políticas tradicionais, até converter-se no fiador principal de seus negócios e interesses.

Palavras servem para iludir. Os ataques "bolivarianos" da campanha de Dilma contra Aécio funcionaram como toque de reunir para os movimentos sociais, o PSOL e os intelectuais de esquerda. Confrontado com o risco de derrota, o lulopetismo precisava recuperar uma franja periférica do eleitorado que se dispersava. Concluída a disputa, o governo realiza o giro ortodoxo, abandonando a "nova matriz econômica". O estelionato, anunciado pela elevação dos juros, tem roteiro conhecido: recomposição de preços de combustíveis, choque de tarifas de energia, ajuste fiscal. Os chavistas vestem-se de vermelho o tempo todo; Lula e Dilma trocam o vermelho pelo branco assim que as urnas se fecham.

Palavras têm alguma importância. Na sua Resolução Política pós-eleitoral, o PT toca os acordes de uma marcha "bolivariana" para acusar a oposição de representar o "retrocesso neoliberal", articular "manobras golpistas" e fomentar "o machismo, o racismo, o preconceito, o ódio, a intolerância". O lulopetismo, um fruto da democracia, não aprendeu até hoje a regra de ouro do pluralismo político: a legitimidade da oposição. O seu único traço comum com o "bolivarianismo" encontra-se nessa hostilidade visceral à convivência democrática entre "verdades" distintas e concorrentes. O PT não é "bolivariano", mas carrega no seu DNA a convicção pervertida dos antigos partidos comunistas: imagina-se portador da Chave da História.

O alerta de Gilmar Mendes, formulado como um equívoco conceitual, deve ser refraseado. Sob o influxo das nomeações lulopetistas, o STF não se transformará numa "corte bolivariana", pois não será posto a serviço de um projeto político revolucionário. Contudo, depois da experiência do "mensalão" e na hora da eclosão do escândalo na Petrobras, o governo procurará submeter o Supremo a um torno mecânico implacável, convertendo-o em Tribunal da Absolvição.

O contexto faz a diferença. Na "pátria bolivariana", a independência dos Poderes só existe como preceito constitucional irrelevante; no Brasil, apesar de tudo, o preceito conserva sua força, como evidencia o decreto legislativo que fulminou os "conselhos participativos". Compete ao Senado avalizar as indicações presidenciais para o STF. Diante de uma opinião pública atenta, os senadores encararão o dever de vetar a nomeação de "juízes do Partido". A Venezuela não é aqui.
Fonte: Folha de S. Paulo (08/11/14)