A razão imediata do descontentamento partidário é o agravamento da rivalidade eleitoral entre o PMDB – e outros partidos menores – e o PT, relacionado não à condução do governo, nem mesmo à reforma política, mas ao cálculo eleitoral nos estados. PT e PMDB sempre foram rivais locais, embora, desde o governo Lula, aliados nacionais. É sempre difícil negociar a coligação nacional, quando há muita competição entre os parceiros nas sucessões estaduais. A razão é simples: a reeleição de deputados depende principalmente do resultado da eleição estadual, do desempenho da coalizão nacional. Mesmo candidatos fortes a presidente não elegem deputados. Elegem deputados as lideranças locais, os cabos eleitorais, todos envolvidos na disputa pelo governo estadual. Mesmo a eleição majoritária de senadores, que são votados no estado inteiro como os governadores, tem mais a ver com a disputa local que com a nacional.
No caso do PMDB, é notória a divisão entre a clique que controla o partido nacionalmente, na qual o vice-presidente Michel Temer tem mais voz, embora esteja longe de ser a única liderança, e as facções estaduais. Temer, por exemplo, sempre perdeu a disputa no interior do PMDB paulista, quando este era dominado por Orestes Quércia, mesmo quando o ex-governador estava no ocaso. No federalismo heterogêneo como o nosso, com vários sistemas partidários regionais, como mostrou, há muito, Olavo Brasil de Lima Jr., a sincronia perfeita entre os arranjos estaduais e o nacional é muito improvável. Torna-se ainda mais improvável quando há lideranças localmente fortes na disputa presidencial (Aécio Neves, em Minas, e Eduardo Campos, em Pernambuco, ambos com influência que transcende seus estados) e na disputa local (Geraldo Alckmin, em São Paulo, Miro Teixeira, no Rio). Os exemplos não são exaustivos, há vários outros casos similares. Nos estados em que PT e PMDB disputarão o governo estadual, por exemplo, não há sintonia possível. Tudo indica que, ao contrário do que aconteceu na reeleição de Lula e na eleição de Dilma, o PMDB entrará nesta eleição muito mais dividido. As facções que se alinharão a adversários da coligação nacional, tanto para a Presidência, quanto para os governos estaduais, deve extrapolar em muito, a facção oposicionista do partido que deixou de apoiar a Lula e a Dilma no passado.
Três fatores novos criam um ambiente mais propício à transformação da rivalidade entre parceiros em conflito aberto. O primeiro é que tanto o PT, quanto o PMDB percebem que têm boas possibilidades de ampliar o controle respectivo sobre estados importantes e, na maioria deles, estão em pólos opostos. O segundo é que a presidência, que ocupa o centro do sistema de poder no presidencialismo, está dando sinais de enfraquecimento, com a popularidade presidencial em queda, o desempenho econômico medíocre e a inflação persistentemente alta. O terceiro é que começam a aparecer alternativas viáveis para competir eleitoralmente com a presidente Dilma Rousseff.
Esse quadro tem uma lógica que não é conjuntural. Ela se manifesta na conjuntura, mas é determinada pela dinâmica estrutural do presidencialismo de coalizão, particularmente em ambientes de alta fragmentação partidária. Esta lógica gera um movimento que tem se repetido no presidencialismo de coalizão brasileiro e que se desdobra em três ciclos ou fases: a fase “centrípeta”, a fase de “ambivalência” e a fase “centrífuga”. Para ficar apenas na Terceira República, esses ciclos se manifestaram nos governos Collor e Fernando Henrique, que chegaram à fase centrífuga, no governo Lula e está se repetindo no governo Dilma. O ex-presidente Lula foi o único que conseguiu superar a fase de ambivalência, no auge do escândalo do mensalão, antes que ela se transformasse em centrífuga e, desta forma, conseguiu recuperar popularidade, retornar à fase centrípeta e eleger a presidente Dilma.
Antes de entrar nas fases, é bom esclarecer o princípio motor delas, que é a força central incontrastável da Presidência nos regimes presidencialistas. Esta força faz com que todo o processo de interação e conflito ocorra entre o Congresso e a Presidência. A estabilidade da coalizão depende crucialmente do poder de atração da Presidência. Cria-se um espaço de conflito e negociação no ambiente institucional formado pelos poderes do estado (Executivo, Legislativo e Judiciário). No parlamentarismo, essa relação é internalizada pelo parlamento. Nele o primeiro-ministro presta contas permanentemente e se submete aos votos de confiança. No presidencialismo, à exceção do processo de impeachment, a negociação e o confronto centrais se dão no espaço institucional “externo”, embora seja sempre intensa a negociação e o conflito dentro do Congresso tanto no interior da coalizão governante, quanto entre ela e a oposição. Essas negociações e contrariedades envolvem sempre, em ambos os casos, não só os partidos, mas as facções partidárias, que constituem um fator complicador.
Vamos ao ciclos e suas fases. A “fase centrípeta”, em parte conhecida na crônica política como “lua de mel”, se caracteriza por uma presidência com sinal fortemente positivo: alta popularidade, desempenho econômico favorável, inflação sob controle, renda real estável ou crescendo. O (A) presidente, com popularidade acima de 55%, sequer precisa muita habilidade ou empenho para negociar a adesão da coalizão a seu projeto de governo ou neutralizar as tentativas da oposição de abrir dissidências na coalizão. As negociações se resumem à rotina das votações de MPs e projetos de lei, que são negociáveis caso a caso. Em numerosas ocasiões já caracterizei a coalizão governista típica no Brasil como um “pool” de maiorias possíveis. Como são “grandes coalizões”, não raro controlando mais de 70% dos votos na Câmara e mais de 51% no Senado, na Câmara são várias as composições de apoios individuais e de facções partidárias que permitem formar as maiorias. Essas composições são feitas caso a caso e, dado que a maior parte da coalizão é formada por “partidos de serviço” ou suas facções, que buscam maximizar benefícios particularistas para suas clientelas ou para si próprios, elas se baseiam no “toma-lá-dá-cá”, troca cargos ou verbas por votos.
Fase centrípeta
O infográfico acima é autoexplicativo. Na “fase centrípeta”, o centro ocupado pela presidência é plenamente dominante – seria possível usar o termo hegemônico – o(a) presidente, com alta popularidade e liderança plenamente assegurada, consegue preservar o núcleo do governo com relativa facilidade. Este núcleo é um misto de cargos e projetos. Cargos de primeiro e segundo escalão centrais para o projeto de poder do(a) presidente e seu partido não são contestados. Não há disputa por eles com os outros membros da coalizão e raramente há barganhas em torno dos projetos centrais do governo apresentados ao Congresso. O poder no governo é relativamente compartilhado, a rivalidade entre os parceiros da coalizão se dá dentro dos limites do negociável. A cooperação Legislativo/Executivo é negociada com um mínimo de fricção, as maiorias parlamentares são estáveis. Ou seja, o “pool” constituído pela coalizão gera o número de votos necessários a cada caso, ainda que esses votos tenham que ser negociados na margem. A ocorrência de situações de paralisia legislativa tem baixa probabilidade, embora não seja desprezível. Os efeitos da fragmentação partidária típica de nosso sistema político – hoje o Brasil é o país com o maior índice de fragmentação do mundo – são mitigados por essa força centrípeta incontrastável da presidência, que tem alto poder agregador.
Fase de ambivalência
Essa força de atração começa a arrefecer em situações de crises de corrupção que atinjam o núcleo central do governo e a própria presidência, ou reversão negativa do crescimento econômico, particularmente com alta da inflação e queda da renda real. Se esse processo continua, o regime muda de fase, passando à “fase de ambivalência”. Nesta, o sinal positivo da presidência é fraco, “regular”, pouco indicativo do grau de apoio que ela de fato terá dos eleitores. A força centrípeta não tem mais capacidade de atração suficiente para evitar a dispersão de facções dos maiores parceiros da coalizão – às vezes até mesmo do partido presidencial – os efeitos da fragmentação partidária se fazem sentir mais fortemente. A rivalidade entre os parceiros passa a afetar o núcleo central do governo. Como se vê no infográfico acima, surgem outras forças com relativo poder de atração na oposição. A rivalidade entre os parceiros transborda para pontos não-negociáveis, provocando crises de relacionamento e espasmos de paralisia decisória e legislativa. A coalizão se torna menos propensa a ofertar maiorias parlamentares. O sistema tende à fragmentação, a coalizão apresenta fraturas já irremediáveis, principalmente nos assuntos estaduais e locais. A oposição ganha mais espaço com o enfraquecimento da força de atração da presidência.
Essa força de atração começa a arrefecer em situações de crises de corrupção que atinjam o núcleo central do governo e a própria presidência, ou reversão negativa do crescimento econômico, particularmente com alta da inflação e queda da renda real. Se esse processo continua, o regime muda de fase, passando à “fase de ambivalência”. Nesta, o sinal positivo da presidência é fraco, “regular”, pouco indicativo do grau de apoio que ela de fato terá dos eleitores. A força centrípeta não tem mais capacidade de atração suficiente para evitar a dispersão de facções dos maiores parceiros da coalizão – às vezes até mesmo do partido presidencial – os efeitos da fragmentação partidária se fazem sentir mais fortemente. A rivalidade entre os parceiros passa a afetar o núcleo central do governo. Como se vê no infográfico acima, surgem outras forças com relativo poder de atração na oposição. A rivalidade entre os parceiros transborda para pontos não-negociáveis, provocando crises de relacionamento e espasmos de paralisia decisória e legislativa. A coalizão se torna menos propensa a ofertar maiorias parlamentares. O sistema tende à fragmentação, a coalizão apresenta fraturas já irremediáveis, principalmente nos assuntos estaduais e locais. A oposição ganha mais espaço com o enfraquecimento da força de atração da presidência.
Se esse momento não é revertido por uma mudança significativa no ambiente político-econômico, o regime tende a mudar de fase novamente, entrando na “ fase centrífuga”. Nesta, a presidência passa a ter sinal negativo. A popularidade cai de tal modo que a “popularidade líquida” (positivo -negativo) fica negativa e o “regular” não passa dos 20%. A liderança presidencial é contestada, da mesma forma que o núcleo central do governo. Há paralisia decisória e legislativa, levando o sistema para uma crise de governança. O infográfico acima é, novamente, autoexplicativo. Forças antes alinhadas ao governo e parceiras em sua coalizão gravitam em direção a novas lideranças que emergem no espaço deixado pelo apequenamento da liderança e da força de atração do(a) presidente. A fragmentação se acentua. A oposição fica mais incisiva, porque obtém resposta “das ruas”.
A presidente Dilma Rousseff vive, na minha visão, o uma “fase de ambivalência” e não tem sido, até agora, bem sucedida em revertê-la, nem com mudanças na política econômica, nem na atitude política com os parceiros. Em momentos de fraqueza o aconselhável é ceder mais e não menos. Sua popularidade é, no momento, limítrofe, o desempenho da economia está muito ruim, sem muitos sinais positivos, pelo menos de curto e médio prazo. Claramente a rivalidade com o PMDB se instalou no núcleo central do governo. Alguns partidos menores já deixaram a coalizão e começam a gravitar rumo às alternativas na oposição. Não se pode dizer que a probabilidade de nova mudança de fase, para um momento “centrífugo”, seja desprezível. Há, provavelmente, espaço ainda para reversão desta fase. Tudo dependerá do desempenho da economia, principalmente da inflação e da renda e da credibilidade na capacidade política e eleitoral da presidente, tanto de parte dos parceiros, quanto da opinião pública.
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