segunda-feira, 31 de março de 2014

A marcha da insensatez (Renato Janine Ribeiro)



Não temos que escolher entre dois males

Barbara Tuchman foi uma historiadora norte-americana, autora de livros de sucesso, nos quais tentava extrair lições de conduta para nossos tempos a partir de erros passados - procurando, literalmente, alcançar a "moral da história". Não foi exatamente de primeiro time, até porque os melhores historiadores atuais não gostam de misturar história e moral, mas seus livros se leem com proveito. Este ano, quando se recorda o centenário da Primeira Guerra Mundial, vale a pena recorrer a seu "Canhões de agosto" (1962). Mas seu livro que mais me chama a atenção é "A marcha da insensatez", de 1984, com o interessante subtítulo "de Troia ao Vietnã".

São vários episódios históricos e um mitológico, procurando entender por que tantas vezes os povos ou governantes escolhem o caminho da destruição, a via insensata, o jogo perde-perde. A mitologia comparece com o cavalo de Troia, que os gregos deixam às portas da cidade que estavam atacando, sem sucesso, havia dez anos. Os troianos se alegram de ver o inimigo ir embora e ainda por cima dar-lhes um presente tão belo. Apenas o sacerdote Laocoonte alerta que pode ser um perigo, uma armadilha: "Temo os gregos, mesmo quando trazem presentes". Mas ninguém o leva a sério - e, tarde da noite, guerreiros gregos saem de dentro do cavalo e tomam a cidade. Os troianos foram alertados, mas escolheram a própria destruição. Escolhas assim insensatas marcam a história humana, como se a espécie ou seus líderes flertassem descaradamente com a derrota, a autodestruição, o suicídio.

A economia e a filosofia política modernas se constroem com base na convicção contrária: todo ente vivo deseja preservar o seu ser, diz a filosofia - deseja viver, crescer, reproduzir-se. Todo agente tem interesse em aumentar seus ganhos, pensa a economia. Talvez por isso, a tendência à autodestruição seja difícil de se entender. Crescer ou ganhar é racional. Destruir-se é irracional. O problema é que vezes sem conta se escolhe essa segunda opção. Não tentarei, aqui, responder por quê - mas o mínimo que devemos é ligar um alarme, que dispare quando escolhemos nos destruir.

Pensei neste tema ao ver, na leitura dos jornais, a escalada da insensatez na política. Até gente que deveria ser equilibrada se exalta e perde o controle. Três exemplos:

1) Deputada venezuelana pede para denunciar seu governo na OEA e ocupa o lugar do Panamá, o que é errado - e o presidente da Câmara de seu país cassa o seu mandato; os dois lados apostam numa escalada que force a maioria mais calma de sua sociedade a se radicalizar;

2) A Justiça egípcia condena 529 islamistas à forca, num único dia, pela morte de apenas um soldado, numa das relações mais exageradas que já se viu entre crime e castigo;

3) Os oposicionistas ucranianos derrubam o governo ruim, mas eleito, de seu país, a Crimeia se separa, a Rússia a acolhe - e começa outra escalada maluca, tornando o mundo refém da insensatez de um palácio e uma praça.

Em todos estes casos, e cada dia surgem novos, o efeito extrapola enormemente a causa. A reação é desproporcional à ação. Perde-se o senso, perde-se a medida.
Outro ponto comum é que esses episódios são o paraíso dos extremistas. Engana-se quem pensa que a verdadeira oposição é entre Maduro e a deputada, islamistas e carrascos, ou golpistas ucranianos e Putin. Na verdade, todos esses jogam o mesmo jogo - cuja meta é descartar, excluir, impedir qualquer posição intermediária, qualquer negociação. Nos três casos, deveria ser óbvio que não se governa um país hostilizando metade de sua população. Mas é o que cada lado faz. E com isso uma provável maioria, que está dividida no voto mas não quer a violência, é obrigada a aceitar o jogo da força.

Daí que chegue uma hora, quando toda a sensatez foi liquidada, em que a saída possível é - quando há religiões, línguas ou etnias em jogo - a divisão territorial. Esta talvez seja viável na Ucrânia. Mas vejam o que implica. Grupos diferentes, que conviviam mais ou menos bem, são apartados. Cada um em seu canto inventará uma identidade extremada e se afastará do outro. Foi assim que a língua servo-croata - um só idioma, com dois alfabetos, cirílico e romano - rachou em duas, uma para cada exército (ou país, se preferirem). Foi assim que a ocupação norte-americana do Iraque transformou Bagdá, cidade em que conviviam, mal ou bem, sunitas e xiitas, numa pele de leopardo, dividia em bairros homogêneos onde o inimigo - que deveria ser respeitado como compatriota - não pode entrar sem risco de vida.

Por isso, quem tem bom senso deve recusar-se a escolher entre dois males. Quem assume um deles legitima, não só um extremismo, como também todo o processo que criou esse extremismo e o oposto. Há horas em que a atitude mais racional não é apoiar um dos loucos em disputa, mas perguntar como aconteceu que se chegasse à loucura. Conter-se, quando os outros enlouquecem, é o último poder da razão. Assim, denunciar a anexação da Crimeia à Rússia, sem atentar para a radicalização, promovida pelos dois lados, da política ucraniana nos últimos dez anos, é ficar na superfície e piorar o statu quo. A Ucrânia, como o Egito e mesmo a Venezuela, parece condenada a ser governada por uma maioria obtida quase pela sorte, que oprimirá a oposição. Dizer qual dos grupos seria melhor é aceitar a miséria dessa situação. Não precisamos, nós a quem resta razão, escolher o demônio menos péssimo. Devemos deixar claro aos atores que repudiamos o que todos eles fazem, quando optam pela violência. Podemos e devemos repudiar um modo de fazer política que a suprime e a substitui pela guerra civil.

Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
Valor Econômico

Democracia requer aceitar contrariedade (José Arthur Giannotti)




Desde a posse de João Goulart, cada dia se tornava mais evidente que uma ruptura da legalidade se impunha para que as reformas de base pudessem ser feitas, permitindo que novas demandas e novos agentes pudessem participar do jogo político. E aos poucos essa radicalização assumia a forma de um confronto entre esquerda e direita reformulando entre nós a polarização da Guerra Fria.

A primeira fase do golpe foi uma espécie de reação de um grupo que temia ser excluído da cena política. Excluiu com medo de ser excluído, esperando implementar reformas sem tocar na estrutura política profunda, sem ameaçar os privilégios instituídos. Excluindo os novos agentes - as organizações camponesas, o sindicalismo iniciante, os estudantes e até mesmo os militares insubordinados -, tornava-se possível reformar a agricultura, lançar a indústria num novo patamar, fazer a reforma universitária. A radicalização da luta política transformara o outro num empecilho a ser removido. A política ambígua de João Goulart poderia abrir as portas para novos agentes e novas demandas entrarem em cena desestabilizando o status quo ante. E, para não ampliar o jogo político, o golpe, do ponto de vista dos golpistas, deveria ser rápido, cirúrgico, repondo a ordem social num suave caminho de transformação.

Em contrapartida, a esquerda golpeada imaginava ser possível transformar o País sem ouvir os interesses contrários. A democracia não estava no horizonte, a contrariedade política entre aliados e adversários se transformava na contradição entre amigos e inimigos. A luta era inevitável. Não porque as forças fossem equiparáveis, mas, sobretudo, porque Jango passava a se apoiar numa esquerda que não sabia medir suas forças.

Note-se que os dois lados, cada um à sua maneira, namoravam com os quartéis. Jango apostava no seu esquema militar fantasioso comandado pelo general Argemiro Assis Brasil, chefe de sua Casa Militar; seus adversários, Carlos Lacerda, Adhemar de Barros, Julio de Mesquita Filho e tantos outros se aproximavam dos grupos militares acostumados a depor governos mal eleitos, em particular aquele da Escola Superior de Guerra, chefiado por Castelo Branco. Depois de algumas manifestações públicas descabeladas de Brizola e de Prestes e, sobretudo, depois que Jango forçou a estrutura disciplinar do Exército, participando do comício dos sargentos, a sorte estava lançada: os revoltosos civis receberam um apoio substancial das classes médias e das Forças Armadas, e Jango foi deposto. Os adversários de esquerda eram então os inimigos a serem abatidos. Mas na medida em que o golpe se enrijecia e se apropriava por completo do aparelho do Estado, configurava como ditadura, perdendo assim seus aliados liberais mais próximos como Julio de Mesquita ou Paulo Egydio Martins.

Desde o primeiro Ato Institucional, o grupo instalado no poder se vê autorizado a legislar em nome "da autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade humana, etc.", mas instituindo-se legítima e legalmente como instrumento de destruição daqueles que tramam contra a ordem revolucionária. Sabemos que o Estado possui o monopólio do uso da força legal. Mas, quando um de seus poderes, o Executivo, passa a definir o inimigo, ele se transforma em Estado totalitário. A divisão dos poderes é essencial para a democracia. Somente ela assegura que o inimigo seja posto tão só como adversário, que a diferença entre governo e oposição se mantenha no nível da contrariedade e não desande para o da contradição.

O contradizer político abre a clareira da luta e desenha os inimigos como aliados e adversários.

Para mim não tem sentido procurar, por exemplo, o terreno comum entre PT e PSDB, que permitisse uma grande aliança nacional em vista do bem público, na medida em que esse bem público é desenhado pela própria contradição que, além disso, coloca entre parênteses a possibilidade de uma guerra civil. Os leões não fazem política. O regime democrático instala a comum-idade em que as outras diferenças sociais podem se digladiar. Somente a partir desse comum o grupo derrotado continua a pertencer à unidade do Estado e da Nação, na medida em que a contradição radical de interesses e de identidades vem a ser encapsulada na convivência da contrariedade. Somente assim a unidade espiritual do Estado não se desfaz na guerra civil.

Jogo democrático tem como pano de fundo a responsabilidade de assegurar o bem-estar da população, por certo historicamente definido. De uma forma ou de outra o Estado se torna provedor, mas de tal modo que a riqueza venha a ser distribuída politicamente, isto é, mediante o confronto de interesses de grupos e de classes integrados direta ou indiretamente aos interesses nacionais. No Brasil de hoje não está no horizonte um golpe como o de 64, mas ele pode se dar pelo seu inverso. No lugar do nítido desenho do Estado democrático representativo, teríamos a fluidez das instituições monitoradas por interesses particularizantes. O sistema político, para a glória dos politólogos, manteria o ritual das eleições, mas se converteria numa farsa democrática onde tudo passa a ser representado e, por conseguinte, nada sendo afigurado explicitamente. E a sociedade, sem o espelho que a representa como estando bem arrumada, mergulharia na violência desatinada.

Nossa tarefa é manter uma contrariedade democrática que compreenda a contradição.

Professor emérito de filosofia da USP
O Estado de S. Paulo

As origens do golpe (Luiz Carlos Azedo)



Quem mandou os militares de volta para a caserna foi o voto popular nas eleições de 1974, 1978, 1982 e 1986, além da campanha das Diretas Já


“A verdade é filha do poder. Nós, militares, nunca fomos intrusos na história.” A frase, do ex-ministro do Exército Leonidas Pires Gonçalves, aos 94 anos, em entrevista à Folha de S. Paulo, merece profunda reflexão. Fiador da transição à democracia — tanto da eleição de Tancredo Neves no colégio eleitoral, como da posse do ex-presidente José Sarney —, o general liderou a retirada em ordem dos militares do poder e sua volta aos quartéis, onde permanecem, conforme determina a Constituição de 1988. Houve um grande acordo entre os militares e os políticos para que a democratização do país se desse sem mais derramamento de sangue.

Uma parte da esquerda participou da negociação, que resultou na Lei da Anistia e na derrota do ex-governador paulista Paulo Maluf no colégio eleitoral, mas um setor mais radical da oposição, encabeçado pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, nunca aceitou o pacto, assim como os militares da chamada linha-dura. Hoje, por ironia, a presidente Dilma Rousseff é uma ex-militante da luta armada. A sociedade promove um ajuste de contas político e moral contra os militares torturadores e assassinos. Quer passar a limpo os porões do regime militar. A velha guarda militar reage, pois se considera salvadora da pátria, hipoteticamente ameaçada pelo comunismo durante o governo deposto de João Goulart.

O positivismo
Exatamente porque nunca foram intrusos na história — pelo contrário, durante o império, o Exército é que garantiu a integridade territorial do país –, os militares foram protagonistas de todas as rupturas institucionais e tentativas de golpe de Estado ocorridas no Brasil. Influenciados pelo positivismo de Auguste Comte (1798-1857), destronaram dom Pedro II, em 1889, e proclamaram a república. Os políticos abolicionistas e republicanos foram meros coadjuvantes; o povo assistiu bestializado à queda da monarquia constitucional. O positivismo fez escola também entre os políticos gaúchos, a partir de Júlio de Castilhos, e influenciou fortemente a esquerda, sobretudo depois que uma ala do movimento tenentista, liderada pelo capitão Luiz Carlos Prestes, assumiu o comando do Partido Comunista.

A Revolução de 1930, que levou Getúlio ao poder e liquidou a República Velha; a Intentona de 1935, em que os comunistas tentaram tomar o poder; e o golpe do Estado Novo, em 1937, no qual Getúlio tentou implantar um regime fascista, foram momentos importantes da nossa história nos quais o povo novamente ficou à margem. A destituição de Getúlio, em 1945, quando houve a democratização; a posse de Juscelino Kubitschek, em 1956; a crise da renúncia de Jânio Quadros e a posse de João Goulart, em 1962, foram momentos em que houve intensa agitação militar.

Tão forte é a presença do positivismo na política brasileira que sua fórmula está perpetuada na nossa bandeira: ordem e progresso. “O amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”, ou seja, cada coisa em seu devido lugar para a perfeita orientação ética da vida social. Durante o regime militar, o lema ganhou uma interpretação específica: desenvolvimento e segurança, que se traduziu em projetos faraônicos, como a Transamazônica, a violenta repressão à oposição, com torturas e assassinatos.

A guerra fria
O peso atribuído à Guerra Fria na deflagração do golpe de 1964 é exagerado e legitima o radicalismo de direita e de esquerda que ocorreu à época. “O Castelo Branco era um patriota. Deu o golpe na nossa frente”, disse-me, certa vez, o então secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB) Salomão Malina. Herói da tomada de Montese, na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, Malina fazia parte do grupo de ex-militares que comandava o antigo Partidão, ao lado de Prestes, Giodondo Dias, Dinarco Reis e outros ex-oficiais e ex-soldados. No livro A ditadura envergonhada, Elio Gaspari narra um encontro de Prestes com o líder soviético Nikita Kruschev, em Moscou, no qual defendeu a reeleição de Jango e afirmou que o “dispositivo militar” do general Argemiro Assis Brasil, ministro da Guerra de João Goulart, seria capaz de “cortar a cabeça” da reação.

A ideia de que o embate entre João Goulart e os governadores da antiga Guanabara, Carlos Lacerda, e de Minas Gerais, Magalhães Pinto, seria decidida por tal dispositivo militar era um equívoco. Não levou em conta que a agitação e a quebra de hierarquia nas Forças Armadas acabaria facilitando a vida de velhos conspiradores das casernas, como os generais Costa e Silva, Ernesto e Orlando Geisel, Golbery do Couto e Silva e Mourão Filho, Costa e Silva, esses, sim, eméritos golpistas. Os generais Humberto Castelo Branco, chefe do estado-maior, e Amauri Kruel, comandante de São Paulo, aderiram ao golpe por causa disso, bem como políticos liberais, como Juscelino, que era o candidato favorito às eleições de 1965, com 37% nas pesquisas.

Não é exagero afirmar que houve um brutal erro de avaliação da correlação de forças e de condução política por parte de João Goulart, Leonel Brizola e Prestes, embora nada justifique o que houve depois disso: a ditadura fascista. A tese de que o golpe militar poderia ser derrotado pelas armas justificou outro equívoco: o voluntarismo foquista de Carlos Marighela e outros líderes, que optaram pela luta armada contra o regime e foram dizimados. Não tinha a menor chance de dar certo. Quem mandou os militares de volta para a caserna foi o voto popular nas eleições de 1974, 1978, 1982 e 1986, além da campanha das Diretas Já, liderada por Ulyssses Guimarães, e a eleição de Tancredo Neves para a Presidência no colégio eleitoral, em 1985.
Fonte: Correio Braziliense 

Fragilmente favorita (Carlos Melo)




A avaliação de ruim/péssimo do governo de Dilma Rousseff é ligeiramente superior à de FHC e Lula em igual período de seus primeiros mandatos - 27%, ante 20% do tucano em 1998 e 22% do petista, em 2006. É verdade que os "ex" tinham mais jogo de cintura para superar adversidades, mas ainda assim a mais recente sondagem do Ibope não deveria surpreender nem precocemente retirar a presidente da condição de favorita para a próxima eleição.

Esse quadro não se desenhou de uma hora para outra: a reversão de expectativas em relação ao governo se dá desde meados do ano passado. O Datafolha de 6 e 7 de junho já demonstrava curvas de expectativa descendentes em relação à inflação e ao poder de compra dos entrevistados. Analistas só olhavam para a popularidade e não compreendiam as manifestações de junho nem o efeito de tais expectativas ao longo do tempo. Atribuíram tudo à rua desorganizada, sem pauta ou foco - que em pouco tempo fez com que o clima arrefecesse, retomando a crença de que a eleição seria um passeio e Dilma, franca favorita.

Naturalmente, a presidente detém importantes instrumentos de campanha - reeleição favorece, centralidade no noticiário, máquina, tempo de TV, grandes partidos, marqueteiro experiente e o maior cabo eleitoral da história, Lula. Além disso, a oposição não capitaliza o descontentamento, tem muitos problemas e pouco tempo, e não conta com trunfo capaz de rivalizar com Lula.

Mas há tempos o governo patina, sem cumprir o desafio da continuidade ao virtuoso processo dos 16 anos anteriores a 2011. Abriu-se um flanco num setor sensível, que é a percepção do eleitor em relação ao seu bem-estar. A percepção latente de piora é lenta até se consolidar e dar saltos na direção do pessimismo explícito, como parece ser o momento. Os números já diziam, e hoje reafirmam, que o favoritismo de Dilma é frágil.

Sua condição é precária, pois seu diagnóstico da política, da economia e da sociedade se mostrou inconsistente, comprometendo o desempenho. Escolhas erradas e má condução de processo não tardam a cobrar seu preço. Um governo não se faz só de gerentes, mas de políticos visionários. Trocar o longo pelo curto prazo é um problema, quando o futuro chega. Simples assim. Nada disso é novo; Dilma é apenas fragilmente favorita - ainda assim favorita, por enquanto.

*Cientista político e professor do Insper
O Estado de S. Paulo

domingo, 30 de março de 2014

A Copa e o estado de coisas que aí está (Luiz Werneck Vianna)




Quase não se sente, mas de tanto que empurrados pelos movimentos dos fatos quanto por nossas ações, desde as refletidas e conscientes dos seus fins até aquelas - provavelmente majoritárias - que os desconhecem, estamos à beira de uma grande mutação: o Estado que fez sua história entre nós como mais moderno do que sua sociedade, conduzindo seu destino à sua discrição, já dá mostras de que perde seu controle sobre os movimentos dela. Não que da sociedade tenha aflorado o impulso para a auto-organização e para a difusão de valores cívicos, bem longe disso. O fenômeno é outro e se faz indicar pela relação de estranheza e desconfiança que se vem estabelecendo entre ela e o Estado e suas instituições.

Exemplos não faltam, como o da Copa do Mundo que se avizinha. Noutras Copas, disputadas em países distantes, às vésperas das competições as ruas se faziam engalanar pelos próprios moradores, que estendiam bandeirolas e grafitavam nos muros e nas calçadas símbolos nacionais. Nesta de 2014, que se disputa aqui, ao revés, a manifestação dessas mesmas ruas tem sido a de brandir punhos cerrados sob a palavra de ordem ameaçadora de que "não vai ter Copa", que certamente não se dirige ao mundo do futebol, paixão inamovível dos brasileiros, mas ao da política.

A festa popular, que certamente virá com a abertura dos jogos, já fez sua opção de se manter distante da arena oficial, fazendo ouvidos moucos às tentativas de fazer da Copa um momento de ufanismo e de integração nacional. Ronda sobre ela o espectro dos idos de junho, porque reina, especialmente na juventude, o sentimento de que tudo isso que aí está, inclusive a Copa, "não me representa".

Estranheza quanto às instituições que não se confina a setores das classes médias, tradicionais e novíssimos, como se constatou com a greve dos garis do Rio de Janeiro, quando os trabalhadores dessa categoria profissional desautorizaram o seu sindicato e negociaram, com sucesso, suas demandas com o governo municipal diretamente. Episódios como esses têm sido frequentes sem que se abalem os fundamentos anacrônicos da estrutura sindical, imposta em outro tempo e para outro perfil de trabalhador.

O sentimento de estranheza e desconfiança, que se agrava, não se limita à incredulidade quanto a esse "outro" que é o Estado, traduzindo-se em ações, muitas delas violentas. A síndrome do protesto ganhou a imaginação de inteiros setores sociais nas metrópoles, em suas periferias e mesmo em pequenos centros urbanos, em boa parte com origem em estratos subalternos até então imersos na passividade e no conformismo.

Nesta hora, que reclama mudanças e inovações, caminha-se para uma eleição presidencial e parlamentar com todos os vícios das anteriores - aparelhadas, em meio ao jogo de parentelas e clientelas e, pior, sob a influência do dinheiro -, da qual não se espera, com justas razões, uma discussão em profundidade sobre as causas do mal-estar reinante no País.

Na raiz desse desencontro, de nenhum modo fortuito, está a guinada empreendida pelo PT, já esboçada antes de chegar ao governo em 2002, e que se radicalizou a partir do segundo mandato do presidente Lula, que o levou a revalorizar o que havia de mais recessivo na tradição republicana brasileira, qual seja o viés de se inclinar em favor de uma cultura política estatólatra. Essa cultura é longeva e teve seu momento mais forte no Estado Novo, institucionalizada pela Carta de 1937, de triste lembrança, mas subsistiu de modo encapuzado nos períodos posteriores, inclusive na democracia de 1946, para não mencionar o regime militar. E, camuflada com arte, encontrou seu lugar neste presidencialismo de coalizão que viceja à sombra da Carta de 1988.

A rigor, evitou-se responder ao desafio de encontrar um caminho original para um governo com origem na esquerda - decerto nada fácil, mas era o que cumpria fazer -, optando-se, mesmo que de modo inicialmente tímido e sem apresentar suas razões, pela restauração de práticas e ideias de um mundo defunto. Para trás, como um fardo embaraçoso de que se devia desvencilhar, a rica história de lutas contra o autoritarismo do regime militar, orientada em favor do fortalecimento da sociedade civil diante do Estado, pela descentralização administrativa, pela emancipação da vida associativa dos trabalhadores e pela defesa do princípio da pluralidade na representação sindical, estes últimos cavalos de batalha do sindicalismo do ABC e dos primórdios do PT.

O legado da resistência democrática seria preservado na Constituinte e consagrado na Carta de 1988, e encontraria seu sistema de defesa nos novos institutos criados por ela, em boa parte dependente de provocação da sociedade ao Poder Judiciário. Mas, apesar dessa relevante ressalva, a restauração de um sistema de capitalismo politicamente orientado, com a pretensão de estar a serviço de ideais de grandeza nacional, veio a minar as possibilidades de uma comunicação fluida do Estado com a sociedade civil, vã a tentativa de aproximá-los com a criação, em 2003, do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, hoje uma instituição de carimbo da vontade governamental.

O abandono da agenda que, nas décadas de 1970 e 1980, animou a resistência democrática não é inocente quanto ao atual estado de coisas que ameaça deixar o Estado a girar no vazio, incapaz de manter, em que pese sua política social inclusiva, uma interlocução positiva com os setores que emergiram dos próprios êxitos da modernização do capitalismo brasileiro. Recuperar, de verdade, as lições daquele tempo não é um exercício de memória, mas de História, disciplina interpretativa por excelência, porque é dela que nos vêm os sinais de a qual herança devemos renunciar para seguirmos em frente.

* Professor-pesquisador da Puc-Rio.

sexta-feira, 28 de março de 2014

As raízes da nostalgia (Murillo de Aragão)



Existe, tanto no PT e entre seus aliados quanto no PSDB, uma imensa nostalgia com relação aos dois últimos ex-presidentes da República. São, de longe, os preferidos para disputarem a campanha presidencial em outubro.

Diz Vinicius Torres Freitas, em coluna na Folha (19.3.14), que o país está à espera de algo extraordinário, e que tanto FHC quanto Lula fizeram mágicas e milagres por meio de reformas conciliadoras. Para ele, nenhum dos atuais candidatos desperta nem tais sentimentos nem a esperança de que possam fazer mágicas e milagres. Daí o saudosismo em relação a ambos.

No PSDB, não sem razão, vive-se uma época de nostalgia de tudo o que o PSDB foi nos tempos de FHC. Acrescenta-se o fato de que o tucanato paulista não tem um engajamento total com a campanha de Aécio Neves.

Uma parte porque os serristas não esquecem os atritos e os desencontros da campanha passada, inclusive com guerra de “dossiês”. Outra parte devido aos fenômenos “dilmanastasia” e “dilmaécio”, ocorridos em Minas Gerais em 2010.

Outra razão atravessa a questão. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, é pré-candidato a presidente em 2018. Mas a eleição de Aécio Neves deve inviabilizar tal operação, já que Aécio seria o candidato natural do PSDB em 2018, caso eleito este ano.

Como sempre, a fogueira de vaidades e interesses no PSDB arde alta, com mágoas do passado e esperanças para o futuro. Assim, nada melhor do que trazer o nome de FHC de volta ao debate. Seria um conciliador entre o passado e o futuro, além de representar um fato novo de proporções significativas. Mas isso não passa de sonho. Ou de balão de ensaio.

FHC não é candidato a nada. Pois, acima de tudo, ama ser simplesmente FHC e, afora a piscina do Alvorada e o helicóptero presidencial, não sente grandes saudades de seus tempos de presidente, embora tenha muito orgulho do que fez.

No PT, o queremismo “volta Lula” tem motivos diferentes. O primeiro deles é o imenso desagrado com a conduta política do governo na relação com seus aliados. O resultado é que mais de 90% da base aliada gostaria que Lula fosse o candidato presidencial, incluindo a bancada do PT no Congresso.

Lula trabalha para voltar em 2018 e sabe que é temerário antecipar o retorno à disputa sem um motivo muito especial. Lula, em que pese ter muitas restrições à condução do atual gestão, tem esperanças de que Dilma aprenda com seus erros e faça um governo de maior convergência e menos arrogância.

Assim, sem Lula e FHC, a campanha presidencial será dos nomes que estão por aí. Nada mal. Apesar de não terem o histórico de “milagreiros”, os três candidatos são nomes fortes e interessantes.

Dilma, mesmo com seus tropeços políticos e a falta de entrega de bons resultados econômicos, tem história e realizações para mostrar. Caso a Copa do Mundo funcione razoavelmente bem, sua imagem sairá fortalecida.

Aécio e Eduardo Campos (PSB) foram bons governadores e tiveram elevados índices de aprovação no posto. Ambos trazem o traço da conciliação como políticos. São nomes jovens que surgem após décadas de protagonismo de figuras oriundas dos tempos do regime militar.

Salvo um evento extraordinário, a campanha deverá ficar restrita aos nomes que estão postos.

Murillo de Aragão é cientista político.

Passa, passa, Pasadena (Fernando Gabeira)



Água era o meu foco. Revisitava o Rio Piracicaba castigado pela seca. No passado fui a algumas reuniões do Comitê de Bacia. Já havia na época uma preocupação com o futuro do rio, tão solicitado: abastece uma região em crescimento e mais 8,8 milhões de pessoas em São Paulo.

Lembrei, à beira do Piracicaba, alguns autores no fim do século passado afirmando que a água seria o petróleo do século 21, com potencial de provocar conflitos e até guerras. Mas ao falar no petróleo como algo do passado constatei que está na ordem do dia. Enterraram uma fortuna em Pasadena, no Texas. Outra Pasadena, na Califórnia, é a cidade cenário da sitecom The Big Bang Theory.

Pois é, nossa Pasadena começou com um singular ponto que se expande de forma vertiginosa. Foi uma espécie de Big Bang na consciência dos que ainda duvidavam que a Petrobrás estivesse indo para o buraco nas mãos dos aliados PT e PMDB. Diante dos fatos, vão-se enrolar de novo na Bandeira Nacional, sobretudo num momento de Copa do Mundo, fulgurante de verde e amarelo.

Os críticos da Petrobrás não são bons brasileiros. Bons são os que se apossaram dela e a fizeram perder R$ 200 bilhões nestes anos e despencar no ranking das grandes empresas do mundo.

O líder do governo, senador Eduardo Braga (PMDB-AM), disse que a perda desse dinheiro faz parte do jogo capitalista de perde e ganha. Se fosse numa empresa privada, dificilmente seus diretores resistiriam no cargo. Em Pasadena enterrou-se dinheiro público. O que deveria ser mais grave em termos políticos.

Pasadena é uma boa versão com sotaque latino para Waterloo. Dilma Rousseff afirma que assinou a compra da refinaria no Texas sem conhecer as cláusulas. Depois disso conheceu. Ela lançou uma nota para explicar o momento em que não sabia. E se esqueceu de explicar todos os anos de silêncio e inação.

Os diretores que teriam omitido as cláusulas que enterram mais de US$ 1 bilhão em Pasadena continuaram no cargo. Até a coisa explodir mesmo. Tenho a impressão de que tentaram sentar-se em cima da refinaria de Pasadena. Sentaram-se numa baioneta, porque não se esconde um negócio desastroso de mais de US$ 1 bilhão.

Os fatos começam a se desdobrar agora que os olhares se voltam para esse refúgio dos nacionalistas, defensores da Pátria enriquecidos.

Uma empresa holandesa cobrou US$ 17 milhões da Petrobrás por serviços que não constavam do contrato. A primeira parcela da compra em Pasadena foi declarada como US$ 360 milhões, mas no documento americano ela foi registrada como uma compra de US$ 420 milhões. Refinarias compradas no Japão têm as mesmas cláusulas do contrato desastroso de Pasadena.

Um amigo de Brasília me disse ao telefone: "Se esse Paulo Roberto Costa, diretor da Petrobrás, abrir a boca, a República vai estremecer". Conversa de Brasília. Quantas vezes não se falou o mesmo de Marco Valério?! O que pode trazer revelações são os computadores, pen drives e documentos encontrados na casa dele. A Polícia Federal não acreditava que ele iria falar, tanto que o prendeu com o argumento de que estava destruindo provas.

Passa, passa, Pasadena, quero ver passar. A Petrobrás da nossa juventude, dos gritos de "o petróleo é nosso", se tornou o reduto preferido dos dois grandes partidos que nos governam. O petróleo é deles, do PT e do PMDB. Levaram o slogan ao pé da letra e suas pegadas na maior empresa do País demonstram que devoram até aquilo que dizem amar.

De certa forma, isso já era evidente para mim nas discussões dos contratos do pré-sal. Eles impuseram uma cláusula que obriga a Petrobrás a participar de todos os projetos de exploração. Não deram a chance à empresa de recusar o que não lhe interessava.

Tudo isso é para fortalecer a Petrobrás, isto é, fortalecer-se com ela, com uma base de grandes negócios, influência eleitoral e, de vez em quando, uma presepada nacionalista, tapas imundos de óleo nas costas uns dos outros, garrafas de champanhe quebradas em cascos de navios.

Lá, no Texas, os magnatas do petróleo usavam aqueles chapéus de cowboy. Lá, em Pasadena. Aqui, os nossos magnatas em verde e amarelo estão com poucas opções no momento. Ou reconhecem o tremendo fracasso que é a passagem dos "muy amigos" da Petrobrás pela direção da empresa ou se enrolam na Bandeira e acusam todos de estarem querendo vender a Petrobrás. Diante das eleições e da Copa do Mundo, devem optar por uma alternativa mais carnavalesca.

Mas os fatos ainda não são de todo conhecidos. Deverá haver uma intensa guerra de bastidores para que não o sejam, especialmente os documentos nas mãos da Polícia Federal.

Pasadena. Certos nomes me intrigam. O mensalão não seria o que foi se não houvesse esse nome tão popular inventado por Roberto Jefferson, que no passado apresentava programas populares de TV. Pasadena soa como algo esperto, dessas saidinhas em que você vai e volta em cinco minutos, leve e faceiro. Mas pode ser que Pasadena não passe e fique ressoando por muito tempo, como o mensalão. E se tornar uma saidinha para comprar cigarros, dessas sem volta, para nunca mais.

Criada uma comissão no Congresso Nacional, envolvidos Ministério Público e Polícia Federal, podem sair informações que, somadas às de fontes independentes, deem ao País a clara visão do que é a Petrobrás no período petista. Não tenho esperança de que depois disso todos se convençam de que a Petrobrás foi devastada. Mas será divertido vê-los brigando com os fatos, com as mãos empapadas de óleo.

Diante do Rio Piracicaba meu foco é a água. Na semana passada, vi como na Venezuela o uso político do petróleo deformou o país. No Brasil o alvo da voracidade aliada é a Petrobrás.

E se a água é o petróleo do século 21, daqui a pouco vão descobri-la, quando vierem lavar as mãos nas margens dos nossos rios.

*Fernando Gabeira é jornalista

Fonte: O Estado de S. Paulo

segunda-feira, 24 de março de 2014

A lei da madeira (José de Souza Martins)



Num país em que a pseudocidadania não dá à mulher proteção contra o estupro, valores arcaicos a protegem, a seu modo, com a cultura da vingança e do castigo

Os ataques de homens a mulheres no metrô e nos trens da CPTM mostram quanto ainda estamos longe de reconhecer a mulher como ser de direitos iguais e universais. Os agressores foram, num caso, um universitário, desempregado, residente na periferia. No outro, um técnico de informática e um engenheiro, igualmente jovens, que fotografavam as partes íntimas das vítimas na escadaria do metrô. Colhiam material visual para usar na internet. A Delegacia de Polícia do Metropolitano (Delpom) vem monitorando esse ativismo nas redes sociais. Uma página no Facebook, que se chama "Os Encoxadores" e estimula esse tipo de agressão contra passageiras de trem e metrô, tem mais de 12 mil seguidores. Trata-se, pois, de um movimento coletivo motivado por propósitos perversos e antissociais. Só neste ano, a Delpom já registrou 22 casos de ataques a mulheres em trens e estações, dos quais apenas um, o do universitário, foi classificado como estupro, sendo os demais definidos como importunação ofensiva ao pudor.

Dois dias antes da ocorrência na Estação da Luz houve uma tentativa de linchamento no outro extremo do País, em Boa Vista, Roraima. O sujeito arrastara para um matagal e tentara estuprar uma adolescente que fora levar a irmã à escola e voltava para casa. Ela escapou e pediu socorro, o que provocou o ajuntamento de vizinhos furiosos, que atacaram o estuprador a socos, pontapés e pauladas. Açulados pelas mulheres, os linchadores o despiram e lhe enfiaram um pedaço de madeira no ânus. Desmaiado, sangrando, foi amarrado e arrastado pelas ruas. Alguém filmou a ocorrência e colocou as imagens no YouTube, o que vem se tornando cada vez mais frequente.

A violência contra a mulher, longe de regredir, aumenta. Também modernizada, amplia-se na forma e no alcance, anula direitos lentamente conseguidos. Cada vez mais os agressores agem como se agredir as mulheres fosse um direito, como se a mulher fosse um ser de segunda categoria, mero objeto à disposição do homem. Os casos que vêm ocorrendo no metrô e na ferrovia envolvem como agressores pessoas da classe média, da qual amplo setor chega ao uso dos recursos e equipamentos do mundo moderno sem que sua mentalidade também tenha chegado lá, mesmo tendo curso superior. Chegaram à internet, mas não à civilização. São pessoas que têm uma relação patológica com os meios da modernidade.

Numa sociedade historicamente originária da cultura mutilante e repressiva da escravidão, que se disseminou para todo o conjunto das chamadas classes subalternas, e não só para elas, era de se esperar que a progressiva ampliação da liberdade civil e cidadã encontrasse um obstáculo no próprio novo suposto cidadão. Há muitas manifestações das consequências do desencontro entre o que se era e o que ainda não se é, apesar do progresso. A liberalidade dos tempos atuais, entendida como permissividade, como triunfo do mais forte ou do mais esperto e atrevido contra o mais frágil e simples, criou e difunde a curiosa concepção de que aqui as pessoas só têm direitos, nenhum dever.

O caso de Roraima, no outro extremo, contrasta com a benevolência liberalizante de classificar a agressão contra a mulher como mera importunação ofensiva ao pudor. Não se trata de adotar a lei do cão. O caso de Roraima e de numerosos outros semelhantes envolvendo o linchamento do agressor, documenta antropologicamente que a população, baseada no costume e na tradição, tem uma tolerância bem menor em relação a essa violência e adota extremo rigor no conceito de justiça com que a pune. Embora o índice de mortos e feridos em linchamentos em geral seja quase igual ao registrado em linchamentos motivados por estupro, o índice dos que escapam é de 8,2% num caso e de apenas 2,9% em outro, o que bem indica quanto o estupro é mais violentamente punido em comparação a outros motivos para linchar. É significativo que no caso de linchamentos de presos por estupro por outros presos o índice de mortos e feridos seja de 80%, dois terços dos quais de mortos. Mesmo os presos têm dificuldade em conviver com alguém que tenha praticado esse tipo de crime.

O estupro não é para a população apenas a consumação física da agressão sexual, mas também a violência simbólica do desrespeito. Muito mais grave do que para a classe média adventícia, cujos valores dominantes são os do mundo do consumo e não os do mundo da pessoa, o mundo das coisas e não o dos humanos. Os linchadores tendem a punir por igual tanto o estupro quanto o desrespeito. É que a mulher em nossa cultura tradicional é mais que o ser biológico. É também depositária da sacralidade da reprodução, o que a torna sexualmente intocável, a não ser nos ritos próprios do casamento e da procriação. O que não tira do vínculo sexual tudo aquilo que lhe é próprio e toda a alegria que é própria do amor. Portanto, num país em que a pseudocidadania, mais de discurso do que efetiva, ainda não conferiu à mulher toda proteção a que tem direito, os valores arcaicos da sociedade tradicional a protegem, a seu modo, na cultura da vingança e do castigo definitivo.

José de Souza Martins é sociólogo, professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP e autor, entre outros, de A sociologia como aventura.

Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo

50 anos do Golpe: Resistência cultural (Luiz Zanin Oricchio)



Ao longo de cinco décadas, filmes refletiram sobre o Golpe de 64
Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S. Paulo

Não existe filme que melhor represente a tragédia social brasileira representada pelo golpe de 1964 que Cabra Marcado para Morrer (1964-1984), de Eduardo Coutinho (1930-2014). Em 1962, Coutinho começou a encenar a trajetória do líder camponês João Pedro Teixeira, morto por capangas de latifundiários em 1962. As filmagens avançavam, com companheiros de João Pedro fazendo seus próprios papéis e a viúva do líder, dona Elizabeth Teixeira, representando a si mesma. Com o golpe, a equipe de filmagem, o diretor e os “atores” tiveram de se refugiar, pois ficaram na mira da repressão. Os negativos das partes filmadas foram escondidos porque a ordem era destruí-los. Dezessete anos depois, já sob a forma de documentário, Coutinho retomou a filmagem, localizou personagens e foi encontrar dona Elizabeth escondida num lugarejo do Rio Grande do Norte. Com o filme, ela retornou à vida, assim como o País retomou a normalidade democrática após um período de 21 anos de ditadura. É a obra-símbolo desse percurso do povo brasileiro, dessa longa noite e de seu desfecho.

Mas é preciso lembrar que o cinema brasileiro respondeu ao golpe ainda no calor da hora, tentando digerir o impensável que fora a derrubada do governo João Goulart em 1º de abril de 1964. O cinema brasileiro acompanhava a fase de otimismo que vinha desde o período JK. Não era uma euforia tola, alienada, mas que despertava para a expressão estética de todo o desajuste social desse país que se mostrava, por outro lado, promissor, ousado e criativo. Se havia Brasília, a bossa nova e a seleção de futebol campeã do mundo, também havia a seca, a miséria nas grandes cidades, o analfabetismo, o abismo entre as classes sociais. Os filmes foram saindo e refletindo essa preocupação dos diretores do Cinema Novo. Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos, e Os Fuzis, de Ruy Guerra, todos realizados entre 1963-64, expressavam essa indignação, mas também a confiança na mudança social que parecia ao alcance da mão.

Nesses anos, o Brasil parecia, tanto à esquerda como à direita, um país à beira da revolução. Todos estavam enganados, e ninguém o sabia. Nesse ambiente, veio o golpe e as obras que surgiram nos anos imediatamente posteriores pareciam destinadas a refletir e digerir o golpe.

É o caso de um título central como O Desafio (1965), de Paulo Cezar Saraceni, que reagiu prontamente à circunstância histórica. O personagem principal é Marcelo, jornalista vivido por Oduvaldo Viana Filho, o Vianinha, em sua perplexidade pelo país saído do golpe. Numa das sequências mais fortes, mescla de ficção e documentário, vemos o personagem assistindo ao mitológico show Opinião, espécie de cerimonial da resistência, como o definia a ensaísta Heloísa Buarque de Holanda. Desoladas, as pessoas iam, noite após, noite, ouvir Nara Leão (e depois Maria Bethânia, que está no filme) cantar Carcará, ouvir João do Vale e Zé Kéti. Era uma missa leiga da oposição.

O processo de digestão do golpe gerou um elenco de filmes, e provavelmente uma obra-prima, Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, obra de traço alegórico, forte, impulsiva, paradoxal e densa, que procura pensar as estruturas mais profundas da sociedade brasileira e dos motivos que a levaram não à revolução de esquerda, como se esperava, mas ao lado oposto, a um golpe de direita. Entre figuras como o déspota esclarecido, o capitalista, o padre e o político populista, emerge o poeta e jornalista Paulo Martins, criação de Jardel Filho. Sem saber a quem servir, Paulo engaja-se na luta armada e morre numa saraivada de metralhadora. A ação passa-se no imaginário país Eldorado, que, claro, é o Brasil, mas também mescla de todos os países latinos do Terceiro Mundo, submetidos mais ou menos às mesmas circunstâncias históricas.

Com o fechamento do regime em 13 de dezembro de 1968 com a edição do Ato Institucional nº 5, a censura passa a perseguir de maneira mais ostensiva os artistas e suas obras. Como resposta, estas se tornam cada vez mais herméticas e alegóricas na tentativa de driblar censores e fazer sua “mensagem” chegar ao público. Assim, por exemplo, um diretor de estilo realista e crítico como Nelson Pereira dos Santos, dirige obras tão enigmáticas como Azyllo Muito Louco, 1969-1971 (baseado vagamente no Machado de Assis de O Alienista), e Fome de Amor (1968) e Como Era Gostoso Meu Francês (1970). Em Os Inconfidentes (1972), Joaquim Pedro de Andrade reencena os passos da Conjuração Mineira, baseando-se apenas nos Autos da Devassa, mas aproximando os momentos históricos distintos de luta contra a opressão.

Isso não quer dizer que todos os filmes fossem alegóricos, mas essa era a tendência. Que convivia, por exemplo, com um filme bem mais direto, Iracema - uma Transa Amazônica (1975-1980), de Orlando Senna e Jorge Bodanzky, glosando as mistificações publicitárias do governo e mostrando a real dimensão da miséria do país. A pobre índia, prostituída e abandonada, repete o destino da personagem de José de Alencar que lhe empresta o nome, mas é também a nação ultrajada pela miséria, agora somada à ditadura.

Prá Frente Brasil (1982), de Roberto Farias, feito ainda durante a ditadura, provocou uma crise política e culminou com a demissão de Celso Amorim, na época presidente da Embrafilme. Retratava o ufanismo durante a Copa do México (1970) e seu contraste com o que acontecia nos porões da ditadura. Muito tempo depois, esse ambiente é trazido de volta no belo e sensível O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger.

Alguns outros filmes captam o espírito da virada para a democracia e tornam-se sucessos. São os casos do documentário Jango, de Silvio Tendler, e da ficção Memórias do Cárcere, de Nelson Pereira dos Santos, ambos de 1984. No primeiro, temos a reconstituição da época febril do presidente deposto, no segundo, a adaptação do livro-testemunho de Graciliano Ramos sobre sua prisão durante o Estado Novo - uma ditadura falando de outra, a de Getúlio Vargas e aquela que agora estava sendo enterrada pela mesma sociedade civil que, em parte, colaborara para seu aparecimento em 1964.

Após a democratização, com o país livre do governo autoritário e da censura, era de se prever uma profusão de filmes sobre o período anterior numa espécie de tentativa de digestão de uma época traumática. Seria praticamente impossível citar todas essas obras, sob pena de transformar o texto em lista telefônica. Basta lembrar alguns momentos-chave, tanto na ficção como no documentário.

Algumas figuras reais da luta contra a ditadura foram retratadas com as cores da ficção. Caso, por exemplo, de Lamarca (1994), de Sérgio Rezende, perfil do guerrilheiro saído das próprias forças do Exército e morto em combate com a repressão. Sua companheira, a estudante de psicologia e guerrilheira Iara Iavelberg é retratada em Em Busca de Iara(2013), de Flávio Frederico.

Aliás, a aura romântica do guerrilheiro é figura constante de filmes de ficção da pós-redemocratização. A começar pela visão romanceada do livro de Fernando Gabeira, O Que É Isso, Companheiro?, sobre o sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick por grupos armados. Mas contempla títulos de ficção pura, sem relação com fatos reais, como Ação entre Amigos (1998), de Beto Brant, Quase Dois Irmãos (2004), de Lúcia Murat, e Cabra Cega (2005), de Toni Venturi.

Curiosamente, veio da televisão, e não do cinema, uma das mais fortes visões romanceadas da luta armada contra o regime. Com sua história do nascimento da resistência armada no interior do movimento estudantil, a minissérie de 1992 Anos Rebeldes, da TV Globo, conseguiu o que muitos filmes não logram - captar a energia e o clima de uma época em transe. Com muita vibração e atuação intensa do elenco, mostrou às gerações mais novas o que significava ser jovem nos anos 1960, com seus encantos e seus riscos mais que evidentes.

No campo do documentário, há um trabalho constante de recuperação da época e sua reinterpretação. Seja através de personagens como em Marighela (2012), de Isa Grispun Ferraz, sobre o líder da ALN (o grupo armado Aliança Libertadora Nacional), seja sobre eventos específicos, como Barra 68 - Sem Perder a Ternura (2000), de Vladimir Carvalho, sobre a invasão da Universidade de Brasília por forças policiais, ou sobre os sequestros de embaixadores, como em Hércules-56 (2006), de Silvio Da-Rin, ou Setenta(2013), de Emilia Silveira. Ou ainda sobre organizações clandestinas como Operação Condor (2007), de Roberto Mader, sobre o convênio policial entre ditaduras latino-americanas para perseguir opositores.

Apesar do grande número de filmes desdobrados a partir do tema ditadura, ainda há aspectos a serem explorados. Como diz o grande critico e ensaísta Jean-Claude Bernardet, o cinema brasileiro tem receio de abordar de forma crítica certas instituições, como o mercado financeiro, a Igreja e a iniciativa privada, e o Poder Judiciário. Uma exceção foi Cidadão Boilesen (2009), de Chaim Litewski, sobre o presidente do grupo Ultragás e financiador da tortura em São Paulo. O próprio Bernardet prepara um filme sobre José Dirceu, líder estudantil durante a ditadura, homem forte do governo Lula e condenado na Ação Penal 470. Da mesma forma, o documentarista Silvio Tendler projeta dois filmes, um sobre os Militares da Democracia, focando membros das Forças Armadas que se opuseram ao golpe, e outro sobre advogados que se arriscaram a defender presos políticos durante do regime de exceção.

Há todo um painel a ser composto e, apesar da força de algumas pinceladas, muito ainda por fazer para que a época da ditadura ganhe retrato consistente do cinema. Longe de esgotado, o tema clama por abordagens mais ousadas e originais. Afinal, muitos dos protagonistas do período estão vivos e nem sempre é confortável mexer em material combustível acumulado em período de exceção extenso como foi o da ditadura brasileira.

A originalidade de abordagem às vezes está em detalhes menores, como no belo filme de ficção de Ugo Giorgetti, Cara ou Coroa (2012), destacando a pequena resistência ao regime. A resistência daquelas pessoas que não pegavam em armas, mas, com o risco da pele, às vezes escondiam essas armas em suas casas, ou ocultavam um militante perseguido, ou transportavam algum material clandestino em seus carros. Foi dessa grande rede de resistência discreta que saiu parte considerável da força que determinou o fim da ditadura. Giorgetti teve a sensibilidade de colocar esses heróis anônimos em seu lugar, na frente do palco.

domingo, 23 de março de 2014

A derrota, na ação e no pensamento (Zander Navarro)



O que é um camponês? Num mundo comandado pela vida urbana, é pergunta que se tornou excêntrica. Todos nós, no entanto, intuímos sobre o seu significado, lembrando as famílias rurais "presas à natureza", seja pela pobreza extrema ou, então, por formas de dominação exercidas por terceiros.

No passado feudal, aristocratas subjugaram os camponeses para criar os "servos da gleba", mecanismo que garantia as provisões da corte. Foi expressão analisada por Raymond Williams, um culto marxista galês e um dos fundadores, nos anos 1960, dos chamados "estudos culturais" e da Nova Esquerda inglesa. O termo foi dissecado em seu pequeno livro Palavras-chave, publicado em 1976 e lançado entre nós longas três décadas depois. Na obra, camponês obedece à designação acima, mas o autor adverte que aquele sentido original havia "praticamente deixado de existir na Inglaterra no final do século 18".

As transformações produtivas substituíram-no por novas acepções relacionadas à expansão capitalista no campo. Antes uma classe cativa, transformou-se em outra, agora a dos trabalhadores livres. E assim desapareceram os camponeses como categoria de análise, o termo sendo então usado apenas como abuso verbal - "pessoas comuns, caipiras".

Se o significado de camponês e seu respectivo processo social são consagrados na literatura científica e na vida real, por que autoridades governamentais brasileiras vêm forçando um fantasioso discurso em torno da existência de "novos camponeses" no País? À luz do extraordinário desempenho da agropecuária no Brasil - em breve o maior produtor mundial de alimentos, superando os EUA -, por que esse surpreendente obscurantismo? Por que autoridades e seus muitos pesquisadores chapa-branca imaginariam existir a possibilidade de uma volta ao passado?

Sigamos: e "povos tradicionais" o que seriam? Essa é outra expressão da narrativa dominante em nossos dias, destinada a desenvolver uma interpretação que possa corresponder não às realidades agrárias, mas apenas à ideologia de grupos partidários incrustados no Estado. Existiriam povos tradicionais no Brasil, excetuadas as comunidades indígenas? Novamente há aqui a idealização romântica que lembraria as centenárias comunidades rurais europeias, portadoras de facetas culturais específicas - e tradicionais. Omite-se que o adensamento da tradição exige longo tempo histórico de interação humana para ser enraizado e se traduzir em costumes e hábitos próprios, concretizando a autoidentificação de determinado grupo social. A História brasileira, no entanto, é muito diferente: somos uma nação de migrantes, ziguezagueando continuamente entre as diversas regiões do País, sem chances históricas para constituir uma cultura distinta em regiões particulares. Por isso nossa matriz cultural é rasa, facilmente mutável e resistimos à estabilidade. A maioria dos brasileiros nem sequer mora no seu local de nascimento e, assim, como poderia ter ocorrido o desenvolvimento de tradições e, por conseguinte, a constituição de povos ditos tradicionais?

A lista prossegue: o que dizer de certa agroecologia, objeto de diversas chamadas públicas e editais do Ministério do Desenvolvimento Agrário, do CNPq ou do Ministério do Desenvolvimento Social, nos quais nunca é oferecida a definição da palavra? Ou seja, recursos públicos distribuídos fartamente sem nem mesmo existir clareza alguma do que isso significaria em termos concretos. E a expressão agricultura familiar, que é hoje tão fortemente institucionalizada? Tem sido usada acriticamente. Sabem todos que a lei que a formalizou em 2006 sugere que os pequenos produtores não devem contratar assalariados e, adicionalmente, não ter outras fontes de renda que não as da atividade agrícola? Só então se credenciariam às políticas governamentais. Como justificar tamanha patranha? Por que pequenos produtores não podem contratar assalariados, alguém explicaria?

A história da esquerda, no Brasil ou internacionalmente, tem sido repetidamente pontuada por contínuos equívocos, práticos e teóricos, ou erros monumentais, alguns de intensa dramaticidade, pois implicaram vítimas. Apresenta, é certo, um lado virtuoso, sobretudo quando suas lutas impulsionaram a exigência política dos direitos ou uma ação mais democratizante do Estado, em diversos países. Parece inegável, contudo, que um de seus ramos, a esquerda agrária, sempre esteve à deriva e fez a opção pela cegueira, desde seu nascedouro. Marx nunca se interessou pelo mundo rural nem ofereceu nenhuma teorização a esse respeito, obcecado pelo surgimento do capitalismo industrial. Sobre o campo e suas transformações deixou notas esparsas e desinteressadas. Sem o seu farol, seus seguidores julgaram que o campo obedeceria à mesma dinâmica econômica da industrialização. Por exemplo, o aumento de assalariados rurais, o que não ocorreu em nenhuma região rural conhecida.

No caso brasileiro, a esquerda agrária no poder desde 2003 tem observado um evidente fracasso em suas ações e, reiteradamente, produzido apenas a mentira como sua meta política. A produção agropecuária vem-se concentrando em rapidíssima velocidade, consagrando a agricultura de larga escala, e a única questão social atual, no campo brasileiro, é o encurralamento da pequena produção rural. Nenhuma política operada tem produzido resultados práticos relevantes. São bisonhas suas ações, cujo fundamento é, sobretudo, a ignorância interpretativa sobre o mundo rural brasileiro e suas tendências principais. Ainda mais grave, a área agrária da Esplanada dos Ministérios é autista e hostil a qualquer debate, presa a ideologizações de infantilidade assustadora. É preciso mudar, com urgência, ou o campo petista entrará na História pela porta indesejada: vai consagrar o maior processo de concentração jamais visto num setor da economia brasileira.

Sociólogo, é professor aposentado da UFRGS

sábado, 22 de março de 2014

As Marchas da Família com Deus pela Liberdade. 50 anos depois (Aline Pressot/entrevista)


“As Marchas contribuíram na construção de um discurso legitimador do golpe civil-militar, segundo o qual ele representaria um desejo da sociedade civil”, diz a historiadora.
               Foto: Educação Uol
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que ocorreu no dia 19 de março de 1964, surgiu como uma reação ao discurso do ex-presidente João Goulart, na Central do Brasil na semana anterior, e “como uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção ‘salvadora das instituições’, e, posteriormente ao 31 de março de 1964, passou por uma ressignificação de seu discurso, transformando-se numa demonstração de legitimação do golpe civil-militar”, relembra Aline Pressot, em entrevista concedida à IHU On-Line por e-mail.
A historiadora explica que, à época, alguns setores da sociedade acreditavam que o governo Jango “caminhava para o comunismo e a consequente destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade”, porque suas propostas de reformas de base tiveram adesão de vários partidos de esquerda.
Segundo ela, a associação do ex-presidente com o comunismo também “remonta a sua atuação no governo Vargas, no Ministério do Trabalho, sempre lembrada pelo anúncio do aumento de 100% do salário mínimo. Ele era visto por parte das elites como herdeiro político do getulismo. Essa herança política, somada à sua ligação com os sindicatos, faziam com que fosse considerado ‘esquerdista’. As viagens que realizou à China e à URSS acabaram por reforçar essa imagem”. E acrescenta: “Desse modo, as propostas reformistas passaram a ser identificadas com o comunismo e o governo, acusado de tramar um golpe de tendência esquerdista e transformar o Brasil numa ‘República Sindicalista’”.
Aline Pressot é mestre em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.
                        Fonte: Historiativa Net
Confira a entrevista.
IHU On-Line - O que foi a Marcha da Família com Deus pela Liberdade? De quem foi a iniciativa de realizá-la e em que contexto ela aconteceu?
Aline Pressot - As Marchas da Família com Deus pela Liberdade podem ser compreendidas como um movimento que se constituiu em uma série de manifestações, ocorridas entre os meses de março e junho de 1964. Enquanto fenômeno social, as Marchas inserem-se em um momento em que diversificados setores da população saíram às ruas em protesto ao governo de João Goulart, que, segundo acreditavam, caminhava para o comunismo e a consequente destruição dos valores religiosos, patrióticos e morais da sociedade. Tais passeatas surgiram como uma espécie de pedido às Forças Armadas por uma intervenção “salvadora das instituições”, e, posteriormente ao 31 de março de 1964, passaram por uma ressignificação de seu discurso, transformando-se numa demonstração de legitimação do golpe civil-militar.
A primeira Marcha ocorreu em São Paulo, no dia 19 de março de 1964, como uma resposta ao Comício da Central, realizado no dia 13, ocasião em que o então presidente João Goulart assinou alguns importantes decretos referentes às Reformas de Base.
As Marchas contaram, em sua organização, com o patrocínio e financiamento de empresários reunidos no grupoInstituto de Pesquisas e Estudos Sociais - Ipês, representantes da ala mais tradicional da Igreja Católica, segmentos do conservadorismo político, além de militares e da expressiva presença dos grupos femininos, como a Campanha da Mulher pela Democracia - Camde do Rio de Janeiro, e União Cívica Feminina - UCF de São Paulo.  
Versões
Existem algumas versões a respeito da idealização da primeira Marcha da Família, mas todas elas convergem ao delegar à irmã Ana de Lurdes (Lucília Batista Pereira, neta de Rui Barbosa) a criação de um Movimento de Desagravo ao Rosário, que deu origem às Marchas.
O Deputado Cunha Bueno (PSD) teria se indignado com o discurso proferido por Goulart na Central do Brasil e, reunindo-se com a irmã, teria recebido a sugestão e partido naquela mesma noite para os preparativos da Marcha paulista. A data da manifestação foi também escolhida segundo suas diretrizes: 19 de março, dia de São José, padroeiro da família e da Igreja Universal (posteriormente, com o objetivo de “universalizar” o apelo ideológico e conferir um caráter ecumênico à manifestação, que a “Marcha em Desagravo ao Rosário” se transformara em “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”).
Tratava-se de uma “campanha de desestabilização” do governo João Goulart, em curso desde fins de 1961, empreendida por segmentos conservadores da sociedade que vinham, há alguns anos, denunciando a iminência do “perigo comunista” sobre o país. Esses grupos temiam as supostas tendências esquerdistas do presidente e perceberam que aquele seria o momento de intensificar seu trabalho junto à opinião pública.
    
IHU On-Line - A senhora enfatiza a necessidade de compreender quais foram os agentes influenciadores das Marchas da Família, chamando a atenção para a Concentração do Rosário em Família. O que foi esse movimento e em que medida ele influenciou a manifestação?
Aline Pressot - A Concentração do Rosário em Família ofereceu um modelo de organização e manifestação para os idealizadores das Marchas. Ela pode ser vista também como um exemplo da promissora aliança entre os grupos femininos e os setores conservadores da Igreja Católica. A Cruzada do Rosário foi arquitetada pelo padre irlandêsPatrick Peyton e, lançada nos Estados Unidos em 1945, percorreu diversas cidades do mundo, como Londres, Sydney e Washington. As principais capitais do Brasil assistiram a essa manifestação, que, sob o slogan “A Família que Reza Unida Permanece Unida”, pretendia difundir o rosário como a grande arma na luta contra o comunismo, “a mais poderosa alavanca que eleva o mundo do deprimente materialismo em que se encontra”. Em 1962, no Rio de Janeiro, a Cruzada reuniu, segundo estimativas otimistas dos organizadores, cerca de um milhão e quinhentas mil pessoas.
IHU On-Line - Que grupos sociais participaram dessa Marcha? Havia uma unidade no discurso dos manifestantes?  
Aline Pressot - Não é uma tarefa fácil analisar a composição social das Marchas. Se podemos afirmar que essasmanifestações compunham um movimento, ou faziam parte de um projeto que, paulatinamente foi ganhando estrutura e extensão, não se pode deixar de atentar para as singularidades observadas nas Marchas ocorridas em diversas cidades do Brasil.
Durante a minha dissertação de mestrado, pesquisei cerca de 70 marchas, ocorridas entre os meses de março e junho de 1964 (minha pesquisa se concentrou nos arquivos da Camde e em jornais e revistas do acervo do Arquivo Nacional). Este número dá conta da complexidade do fenômeno estudado, que não deve ser reduzido à mera função propagandística e tampouco deve ser entendido apenas como produto da insatisfação das classes médias urbanas. Não se pretende com isso caracterizar as Marchas como manifestações de cunho popular, nem mesmo negar a existência de um eficiente trabalho de organização e promoção das passeatas, mas sim conduzir a um questionamento acerca da pluralidade de significados contidos em tais manifestações, que pode ser observada a partir da análise de elementos presentes nas culturas políticas das regiões em que as Marchas se realizaram.
Os discursos que legitimaram o golpe civil-militar de 1964 podem ser considerados o fio condutor dessas manifestações. É importante levar em conta, também, que a força e o alcance desses mesmos discursos está justamente no fato de que eles estavam ancorados a uma série de medos, expectativas, valores e crenças compartilhados pela sociedade da época.
IHU On-Line - Em que medida a Marcha foi uma reação ao Comício realizado por Jango na Central do Brasil? Por que, à época, havia uma associação de Jango com o comunismo? Havia uma confusão entre o que vinha a ser o comunismo e as propostas políticas de reformas de João Goulart?
Aline Pressot - Existe uma história curiosa a esse respeito. No próprio dia 13, enquanto se realizava o comício, e como parte da “campanha de desestabilização” do governo Goulart, muitas famílias cariocas responderam à convocação de acender uma vela na janela de suas residências como forma de protesto – o ato também era um evidente posicionamento contra uma suposta “ameaça comunista”, encarnada na figura do presidente. Também emSão Paulo, mulheres se reuniram e rezaram o terço na Praça da Sé. Jango respondeu a esses ataques afirmando em seu discurso: “Não podem ser levantados os rosários da fé contra o povo, que tem fé numa justiça social mais humana e na dignidade de suas esperanças”.
As Marchas da Família surgiram, assim, como um Movimento de Desagravo ao Rosário, que teria sido insultado porJoão Goulart. As mulheres da Camde chegaram mesmo a distorcer suas palavras, afirmando que Jango teria dito que “os terços e a macumba da Zona Sul [do Rio] não teriam poder sobre ele”.
Comunismo
A associação da figura de João Goulart com o comunismo remonta a sua atuação no governo Vargas, no Ministério do Trabalho, sempre lembrada pelo anúncio do aumento de 100% do salário mínimo. Ele era visto por parte das elites como herdeiro político do getulismo. Essa herança política, somada à sua ligação com os sindicatos, faziam com que fosse considerado “esquerdista”. As viagens que realizou à China e à URSS acabaram por reforçar essa imagem.
Em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, os ministros militares, com o apoio da UDN, chegaram a tentar a aprovação de uma emenda junto ao Congresso Nacional impedindo que Jango, então vice-presidente, fosse empossado. A emenda foi rejeitada, mas uma solução paliativa foi articulada pelas forças conservadoras. O Presidente teve sua posse garantida, mas sob o regime parlamentarista. Foi a forma que seus adversários encontraram de conter, em parte, seu poder, que consideravam “ameaçador”.
Durante os anos do governo João Goulart (1961-1964), a sociedade brasileira passou por um considerável crescimento e amadurecimento da mobilização popular em torno de projetos políticos. Grande parte dos movimentos sociais estreitou seus interesses em torno do projeto das reformas de base, projeto esse que compreendia mudanças na estrutura agrária, urbana, na educação, reformas institucionais como a extensão do direito de voto aos analfabetos, além de políticas de controle sobre o capital estrangeiro e a nacionalização de alguns setores da economia. Os partidos de orientação de esquerda - nacionalistas, trabalhistas e comunistas - além de organismos sindicais, como o CGT, entidades estudantis e ligas de trabalhadores rurais, empunharam com entusiasmo a bandeira das reformas, que nos anos finais do governo Jango ganhou contornos mais radicais.
Diante desse quadro, e procurando conter o avanço das forças populares, os grupos conservadores passaram a denunciar a iminência do “perigo comunista” e de uma suposta infiltração no governo, bem como nas Forças Armadas, nos partidos, sindicatos e organizações estudantis, que seria responsável pelo crescimento de tais mobilizações.
Desse modo, as propostas reformistas passaram a ser identificadas com o comunismo e o governo, acusado de tramar um golpe de tendência esquerdista e transformar o Brasil numa “República Sindicalista”.
IHU On-Line - Qual foi a influência do medo comunista na Marcha com Deus pela Família e a liberdade?
Aline Pressot - Os anos de 1961 a 1964 podem ser considerados como um dos períodos de maior radicalização anticomunista da história brasileira no século XX.
Eram tempos de guerra fria, e o “perigo comunista” parecia mais próximo desde a Revolução Cubana, em 1959, e a opção por um governo socialista naquele país, em 1961. Nesse mesmo ano, conforme já mencionado, a posse deJoão Goulart na Presidência foi recebida com grande alarmismo, por suas supostas tendências esquerdistas. Todo o repertório simbólico utilizado na campanha de desestabilização do governo João Goulart, como na realização das Marchas, esteve ancorado no imaginário anticomunista.
IHU On-Line - Quem eram os comunistas que ameaçavam o Brasil?
Aline Pressot - De acordo com o imaginário cristalizado no período, e conforme mencionado acima, havia uma infiltração comunista no governo, partidos, sindicatos, etc. Os “comunistas” seriam aqueles setores ligados aos movimentos sociais (que conheceram um crescimento significativo no período), especialmente os representantes das esquerdas que se uniram em torno do projeto das reformas.
IHU On-Line - Quais são as demais razões que levaram as pessoas a participar da Marcha?
Aline Pressot - Em meu trabalho de pesquisa, sempre tive a preocupação de enfatizar a importância de se analisar a relação entre as escolhas políticas dos indivíduos – nesse caso, a opção por aderir a um movimento que buscava a derrubada de um governo legalmente estabelecido e, posteriormente, a uma intervenção militar nas instituições democráticas - e o conjunto de crenças e valores que as orientaram.
Durante o que podemos chamar de “campanha anticomunista”, foram eleitos e manipulados uma série de bens simbólicos especialmente ligados à família e à religiosidade como também ao patriotismo, à moral e à ordem. Esses valores eram compartilhados por uma expressiva parcela da população. As pessoas eram convocadas a marchar para salvar o Brasil do comunismo, que ameaçava destruir os alicerces da sociedade “cristã e ocidental”: a religião, a pátria e a família.
IHU On-Line Qual foi a influência das marchas ao longo da ditadura militar?
Aline Pressot – Foi pouco significativa. Podemos dizer que, por alguns anos, a crença de que o golpe civil-militar representava um desejo da sociedade civil serviu como justificativa para o autoritarismo.
Alguns grupos femininos mencionados prosseguiram suas atividades após o golpe, visando principalmente reforçar a legitimidade do regime militar (houve ocasiões em que essas mulheres chegaram a pleitear uma repressão mais efetiva às manifestações contrárias à ditadura).
Ocorreram também comemorações no aniversário das Marchas. Mas, especialmente a partir de 1970, podemos dizer que parcela da sociedade optou por um “silenciamento” em relação a essas manifestações, e as Marchas foram desaparecendo da vida coletiva.
IHU On-Line - A marcha contribuiu para a deflagração do Golpe de 64?
Aline Pressot - O que podemos afirmar sobre as Marchas é que elas contribuíram na construção de um discurso legitimador do golpe civil-militar, segundo o qual ele representaria um desejo da sociedade civil.
IHU On-Line - Em sua dissertação de mestrado, a senhora analisou 70 passeatas em dez estados brasileiros entre os meses de março a junho de 1964. Em que consistiam essas manifestações e o que elas tinham em comum?
Aline Pressot - Especialmente em decorrência do sucesso da passeata do Rio de Janeiro, as Marchas adquiriram, em pouco tempo, abrangência nacional e o estatuto de um autêntico movimento em apoio ao golpe civil-militar, posto que boa parte delas ocorreu posteriormente ao 31 de março. Tais manifestações pretendiam demonstrar o caráter popular do golpe, uma vez que nesse momento uma grande parcela dos cidadãos ia às ruas comemorar a vitória, dar “ação de graças” pelo afastamento do comunismo das terras brasileiras. 
 
IHU On-Line - Havia a ideia de que os militares assumissem o poder, restituíssem a ordem e depois entregassem o poder novamente aos civis? Em que consistia a ideia de “restituir a ordem” e por que a ditadura se estendeu mais tempo do que o planejado?
Aline Pressot - Ao menos, durante a “campanha anticomunista”, foi essa a ideia que prevaleceu. Não havia a reivindicação de um regime de exceção prolongado, e sim de uma “breve intervenção”, que viesse “arrumar a casa”, moralizar as instituições.
Restituir a ordem era dar fim à infiltração comunista, que seria responsável por todos os males da sociedade (crise econômica, corrupção, tensões políticas).
IHU On-Line - Como vê manifestações como a Marcha para a Família, que ocorre no cinquentenário da Marcha de 64, pedindo o retorno dos militares no país?
Aline Pressot - A tentativa de uma análise mais aprofundada soaria arriscada. Chama a atenção o fato de que um movimento, que mesmo durante os anos do regime militar passou por um processo de “esquecimento”, venha a ser reeditado 50 anos depois do golpe. Elas me parecem o sintoma de uma sociedade que ainda não se reconciliou com a memória do período da ditadura. E evidenciam que o processo de transição ainda espera por ser concluído.
(Por Patricia Fachin)