Em tempos de fúria, passou um tanto despercebida uma decisão do decano do STF, ministro Celso de Mello, na última semana. Ocorre que um desses grupos muito estranhos que andam por aí, e não é de hoje, marcou uma passeata em Brasília, na qual prometiam "dar cabo à patifaria estabelecida no país e representada pela casa maldita do STF, com seus 11 gângsteres". E por aí afora.
O líder do PT na Câmara dos Deputados acionou o Supremo pedindo que a passeata fosse proibida e os envolvidos presos. O ministro Celso de Mello negou o pedido. Orientou o parlamentar a procurar o Ministério Público, se desejasse, mas o importante veio depois, quando enfrentou o tema delicado do direito de reunião e de expressão em um país marcado pela polarização quase doentia.
A posição do ministro é clara: não cabe a uma República que se dê ao respeito a "proibição estatal do dissenso". Pluralismo político é um valor fundamental na democracia e o direito à livre expressão de ideias é garantido pela Constituição.
Seu raciocínio volta a abril de 1919, quando Ruy Barbosa foi conduzido por uma massa popular até o teatro Politeama, em Salvador, e só pôde fazer o seu comício amparado por um habeas corpus dado pelo STF, relatado por Edmundo Lins.
Ruy foi saudado nas ruas de Salvador como "o maior dos brasileiros" e não haveria muita dúvida sobre seu direito de fazer uso da palavra. A pergunta crucial, um século depois, é bem mais complicada: o direito à palavra de ideias autoritárias e desprezíveis, como a tese de "fechar o Supremo", também deveria ser protegido pelas leis da República? Celso sinaliza uma resposta quando cita a clássica expressão do juiz da Suprema Corte americana Oliver Holmes, segundo o qual a liberdade de pensamento não é feita para aqueles com os quais concordamos, mas para "a liberdade do pensamento que nós odiamos".
O princípio é indispensável em uma sociedade pluralista, na qual se exige a imparcialidade do Estado, mas ainda não resolve a questão. O ponto é: quais seriam os limites para as "ideias que odiamos"? Ideias que atentem contra os próprios fundamentos da República e da democracia, por exemplo, estariam incluídos?
Karl Popper deu uma resposta negativa, ainda que bastante genérica, a esta pergunta. Marcado pela ascensão do ódio, no processo que levaria à Grande Guerra, Popper formulou o seu "paradoxo da tolerância": temos direito, em nome da tolerância, de não tolerar os intolerantes.
A ideia é elegante, tanto quando a regra de Holmes, mas de difícil aplicação. Como transformar o Estado em juiz do que são ou deixam de ser ideias intolerantes? A Constituição de 1946 incluía um dispositivo proibindo partidos que contrariassem o regime democrático, e isto serviu de base para fechar o PCB.
Os americanos resolveram esta questão, na tradição da Primeira Emenda, fazendo uma distinção entre a defesa genérica de ideias odiosas ou contrárias à lei e o discurso que leva claramente a uma "ação iminente e ilícita".
No Brasil, diria que esta é uma questão em aberto. No conhecido caso Ellwanger, que julgava a concessão de habeas corpus a um autor revisionista e antissemita, o STF decidiu negativamente. Marco Aurélio Mello claramente defendeu a distinção entre a defesa de uma tese e a chamada à ação, mas foi vencido.
Confesso não ter uma resposta cabal a esta questão. Intuo que nossa Suprema Corte logo se debruçará sobre o tema desses movimentos que desafiam a democracia e nos quais parece haver de tudo. Gente defendendo ideias sem nenhum cabimento e gente instigando a ação antidemocrática, em geral no mundo do faz de conta.
Neste mundo confuso, é bom ler a decisão de Celso de Mello. Ao citar Ruy Barbosa para tratar da passeata dos insensatos, ele nos lembra que a liberdade frequentemente se faz garantindo o direito aos piores, de modo que todos os demais estejam da mesma forma protegidos pelo direito.
- Folha de S. Paulo (14/05/2020)
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