Indústria Americana, o documentário produzido pela produtora de Michelle e Barack Obama que ganhou o Oscar da categoria este ano e pode ser visto na Netflix, conta a história tragicômica de um milionário chinês que decide transformar uma planta abandonada da General Motors nos Estados Unidos numa moderna fábrica de vidros de automóveis, com operários americanos trabalhando sob as ordens de gerentes chineses. Os chineses esforçam-se para entender a cultura individualista e a falta de disciplina dos americanos, levam americanos para a China para verem como uma fábrica deve funcionar e acabam trocando a maioria dos americanos por robôs, para que a fábrica finalmente possa dar lucro.
Vendo o filme, fica mais fácil entender o sucesso dos chineses em controlar a epidemia do coronavírus em Wuhan com um mínimo de mortes e impedindo que se alastrasse por sua imensa população, e a dificuldade dos americanos e europeus em fazer o mesmo. A explicação que geralmente se ouve é que a China é um Estado autoritário, com poderes para controlar sua população que seriam inimagináveis numa democracia. Há rumores de que não estão contando toda a história. Pode ser. Mas o a fato é que conseguiram estancar a hemorragia. Além da força bruta, outros dois fatores, a forte coesão social e o uso intensivo e competente de tecnologias avançadas, parecem ter sido muito mais importantes.
“Coesão social” refere-se ao grau em que as pessoas se sentem parte de uma comunidade e obedecem às normas de comportamento de seus grupos. Todos concordam que é uma coisa boa, mas discordam sobre quanto. No documentário, os americanos olham espantados como os operários chineses marcham sincronizados e gritam palavras de ordem, e como, numa festa da fábrica, as crianças dançam com precisão geométrica em louvor à eficiência e à produtividade, lembrando as gigantescas manifestações coreografadas na Coreia do Norte em homenagem ao Grande Líder. Os chineses trabalham muito mais horas por dia que os americanos, ganham muito menos e são muito mais produtivos.
Vendo isso, é difícil separar o que é coesão social do que é totalitarismo, mas outros países que também estão conseguindo controlar a epidemia são a Coreia do Sul, Cingapura, Taiwan e Japão, regimes democráticos com culturas semelhantes à chinesa. É a coesão social, mais do que o regime político, que os diferencia dos países ocidentais.
O terceiro fator que explica o sucesso desses países é o uso intensivo de tecnologias de testagem, acompanhamento dos movimentos da população pelos celulares, equipamentos de proteção de médicos e paramédicos e amplo uso de equipamentos caros e complexos, como tomógrafos, para melhor diagnosticar os doentes. Aqui também vem a dúvida de quando é admissível, numa democracia, permitir que governos controlem cada movimento das pessoas, mas isso já é feito em nossos países para fins comerciais. Essas tecnologias também estão disponíveis e muitas delas tiveram origem no Ocidente, mas os orientais têm sido mais eficientes em produzir, inovar e utilizar em grande escala do que os americanos e europeus.
Das muitas especulações que se fazem sobre como será o mundo pós-coronavírus, para quem sobreviver à imensa catástrofe que estamos presenciando, parece-me claro que o século 21 será, definitivamente, o século chinês. Isso não significa que ficaremos todos sob a ditadura de Xi Jinping, já que a própria China pode evoluir para formas menos autocráticas de governo e os países ocidentais certamente recuperarão suas economias. Mas a China, que já vinha ocupando espaço cada vez maior na economia mundial, deve sair desta crise muito mais fortalecida, transferindo definitivamente o polo da economia e do avanço tecnológico mundial para o Oriente.
Das lições que temos de aprender da China, a que menos interessa, e infelizmente muitos vão apregoar, é que as democracias não são capazes de enfrentar os grandes desafios epidemiológicos e ambientais que nos esperam e precisam ser substituídas pelos candidatos a ditador que surgem nestas horas difíceis. A democracia precisa ser preservada, mas deve ser menos disfuncional, com instituições públicas mais fortes nas áreas de ciência e tecnologia, políticas sociais mais firmes e mecanismos legais capazes de lidar rapidamente com os eventuais comportamentos predatórios e demagógicos de seus líderes. Mais do que armas para eventuais guerras, é indispensável ter estoques estratégicos de suprimentos e equipamentos médicos que não dependam dos interesses comerciais e incertezas do mercado internacional, como vem ocorrendo. O SUS precisa ser repensado, concentrando recursos em saúde preventiva, vigilância epidemiológica e atendimento médico à população carente. Não se pode, e não sei se queremos, copiar o modelo de coesão social dos países orientais, mas precisamos tornar nossas sociedades mais educadas, coesas e solidárias.
Sairemos desta tragédia mais pobres e sofridos, mas, quem sabe, um pouco mais sábios, para conseguirmos sobreviver no século chinês.
O Estado de S.Paulo\10 de abril de 2020
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