Na sexta-feira, o apresentador do jornal SPTV Rodrigo Bocardi foi acusado de racismo por supor que um entrevistado negro que vestia uma camiseta do clube Pinheiros seria um gandula —o rapaz, na verdade, é jogador de polo aquático. Logo, ativistas denunciaram nas mídias sociais o caso de racismo estrutural e o apresentador foi cancelado —isto é, passou a ser boicotado na economia da atenção.
O caso, um entre os inúmeros cancelamentos que acontecem todos os dias, exemplifica uma emergente cultura moral promovida pelo ativismo identitário. Os sociólogos Bradley Campbell e Jason Manning escreveram a melhor descrição e análise do fenômeno num influente artigo de 2014 transformado depois em livro (“The Rise of Victimhood Culture”, Palgrave Macmillan, 2018).
Essa cultura moral da vitimização se desenvolve com a difusão de táticas ativistas nas quais uma ofensa, voluntária ou mesmo involuntária, em situações de opressão, é vingada com a publicação de um relato de vitimização —com o duplo objetivo de angariar a simpatia do público e efetivar a punição social do agressor, normalmente com sanções como o cancelamento.
Os autores chamam atenção para o fato de essa cultura moral se desenvolver primordialmente no meio universitário, um ambiente no qual um relativamente alto grau de equidade e diversidade torna a comunidade mais sensível para os desvios que perduram.
A forma vitimizante de lidar com insultos é bastante particular.
Por um lado, ela lembra a cultura moral da honra do século 19, na qual também havia sensibilidade ao insulto, mas difere dela no sentido de que a reparação se fazia de maneira direta e violenta, demonstrando bravura, como nos duelos. Difere também da cultura moral da dignidade do século 20, na qual um valor inerente inalienável tornava a pessoa pouco sensível a insultos que em casos graves eram resolvidos por meio do sistema legal.
Campbell e Manning sugerem que os ativistas podem estar agindo como uma espécie de vanguarda que estaria preparando uma nova cultura moral na qual resolveremos conflitos publicando relatos vitimizantes, solicitando a simpatia do público e a vingança social contra supostos agressores.
Embora tudo isso hoje só ocorra em contextos de opressão e em meios universitários (não solucionamos conflitos de outra natureza e noutros espaços publicando relatos na condição de vítimas), pode ser que estejamos vendo o nascimento de uma nova ordem que tem a vergonha e o isolamento social como principal forma de punição.
Folha de S. Paulo/11 de fevereiro de 2020
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