quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

'Cancelamento' é falta de caráter (Joel Pinheiro da Fonseca)

Desde que o mundo é mundo, um dos passatempos favoritos da espécie humana é se juntar em pequenas multidões e agredir algum indivíduo que tenha cometido algum delito (real ou imaginário) que o torne impuro e indigno de viver na sociedade. Hoje em dia, com as redes sociais, é possível participar desse prazer sem de fato apedrejar e matar a pessoa, restringindo-se aos possíveis danos psicológicos do ostracismo social. É o linchamento virtual.
Quando feito por pessoas que se consideram progressistas, o linchamento recebe o nome de "cancelamento". Como quase tudo no meio progressista brasileiro, isso é cópia de uma moda da cultura pop norte-americana. Uma pessoa famosa ou semifamosa é pega falando algo que fere a moral vigente —por exemplo, alguma atitude que possa ser interpretada como preconceituosa—; uma multidão de seguidores decide que aquele deslize a desqualifica como formadora de opinião/artista pop, e passam a atacá-la nas redes, sugerindo que todos deixem de segui-la.
Do ponto de vista de um usuário qualquer, apenas deixar uma ofensa ou deboche na página alheia é um ato pontual e de pouca importância. Do ponto de vista do alvo do ataque, que recebe dezenas de milhares de mensagens parecidas —com variado grau de falta de educação— pode ser uma experiência traumatizante.
Hoje em dia, julgamos uma pessoa pela pureza ideológica de suas crenças. Desviar um milímetro da ortodoxia aceita no pensamento ou no modo de falar é visto como revelando uma séria falha de caráter. É uma superstição. Acreditar-se um pessoa melhor por acreditar em A ou B e defender esse valor em brigas de ego nas redes sociais é equivalente às pessoas que, no passado ou no presente, se julgam superiores às outras por seguirem uma religião qualquer.
Na verdade, o que distingue as pessoas em termos éticos não é a opinião que cada um traz em sua cabeça; é a maneira como como tratam o seu semelhante, sua capacidade de controlar seus desejos imediatos em nome do bem-estar alheio, a generosidade para com aqueles de quem não se espera favores, a honestidade e boa-fé em suas relações, a profundidade e franqueza com que pensam e discutem.
Claro que, por esses critérios, um jovem adulto que xinga outro nas redes sociais por algum deslize de fala ou de opinião ocupa os degraus inferiores da escala moral. Não é o amor pela justiça, e sim a hipocrisia (afinal, todo mundo comete deslizes o tempo todo) e talvez uma certa inveja que leva alguém a se juntar a uma multidão de linchadores.
Ainda bem que a tal "cultura do cancelamento" também parece não ser muito eficaz. Há riscos reais: uma empresa pode ser intimidada a demitir um funcionário injustamente, ou familiares e entes queridos podem ser importunados.
Mas, conforme as ondas de indignação vão se tornando mais frequentes, mudando cada vez mais rápido de foco para cada novo "absurdo" dito na rede social, e conforme a sociedade vai entendendo melhor seu comportamento injusto e seletivo, o "cancelamento" fica mais impotente. Três dias depois, o alvo da patrulha —se é que conseguiu preservar sua dignidade e não se dobrou perante a turba— em geral tem mais seguidores do que originalmente, e o ódio já passou. A cultura do cancelamento mostra-se um exercício de vaidade de uma geração que acredita que a militância em redes sociais lhe confere algum tipo de traço admirável.
Folha de S. Paulo/18 de fevereiro de 2020

Os evangélicos e as eleições (Denis Lerrer Rosenfield)

Os evangélicos estão no centro do debate nacional. Tornaram-se atores políticos, pautando sua ação em valores conservadores, incluindo desde costumes até questões dogmáticas, como a mudança da Embaixada do Brasil em Tel-Aviv para Jerusalém. Ao contrário dos católicos, que não seguem normalmente os dizeres políticos de seus padres, eles tendem a observar as orientações de seus pastores. É bem verdade que os católicos são numericamente superiores aos evangélicos, porém tal diferença não tem relevância eleitoral.
Ademais, por muito tempo os católicos abandonaram posições religiosas em benefício de posições esquerdistas da Teologia da libertação, apoiada pela CNBB. Criou, por sua Pastoral da Terra, o MST e sempre o apoiou desde então. Não mais respeitou o direito de propriedade, afastando a Igreja dos empreendedores rurais. Esses setores da Igreja foram firmes apoiadores dos governos petistas.
O eleitorado evangélico considera os costumes sob uma ótica religiosa. Aí não entra em questão uma discussão propriamente racional, pois o seu fundamento se encontra num texto bíblico, que fornece os critérios do juízo e da ação. Assim é o caso do aborto, do casamento homoafetivo, dos textos didáticos sobre gênero e do que o PT considera politicamente correto. Aliás, esse partido começou a perder seu eleitorado evangélico ao contrariar essa pauta de valores. Quando Bolsonaro se manifesta sobre a pauta de costumes, tem em mente precisamente esse eleitorado.
Outro ponto de princípio dos evangélicos diz respeito à mudança da embaixada brasileira para Jerusalém. Trata-se de uma questão dogmática, não sujeita a discussão: Jesus ressuscitará quando Jerusalém se tornar a capital do Estado judeu. Passa, então, a correr outro tempo, o do processo de conversão dos judeus, passando ambas as religiões a ser uma, sob os princípios do cristianismo, principalmente o reconhecimento de Jesus Cristo como Messias.
Bolsonaro comprometeu-se com esse seu eleitorado a fazer tal mudança. Seu compromisso continua, embora por questões conjunturais tenha sido adiado. Muito provavelmente realizará essa mudança em 2021, um ano antes da eleição presidencial. Ao cumprir sua promessa, terá apoio maciço da comunidade evangélica. Note-se que Trump assim conquistou o apoio do eleitorado evangélico, ganhou as eleições e cumpriu a sua promessa.
O PT está aqui mal colocado, pois optou pelo politicamente correto de forma esquerdizante e se chocou de frente com os evangélicos. As contrariedades e os ressentimentos se traduziram no apoio ao candidato Bolsonaro em 2018. As posições antissemitas/antissionistas do PT igualmente tiveram papel importante no distanciamento. Lula tenta uma reaproximação, porém suas dificuldades são imensas. A visita ao papa tampouco atenua o problema, ao dirigir-se a outro eleitorado, além de seu caráter manifestamente inapropriado ao envolver o santo padre numa questão política, a da corrupção e do roubo em seus governos, sem arrependimento nem confissão.
Tomemos o exemplo da Assembleia de Deus. Essa confissão tem no Brasil em torno de 20 milhões de membros. São pessoas acima de 14 anos de idade, capazes de fazer a escolha de sua religião, quando então se tornam parte integrante dela, em sentido pleno. Considerando a idade eleitoral de 16 anos, quase todos são eleitores, em sentido estrito. Não barganham com questões dogmáticas, como certos preconceitos veiculam contra os evangélicos. Foram missionários suecos que a introduziram no País. São pessoas extremamente sérias e comprometidas com sua religião. A Igreja Universal do Reino de Deus, numericamente menor, tem, por sua vez, enorme importância midiática, por ser proprietária da Rede Record. Trata-se de uma rede de comunicação que abarca principalmente as classes C e D.
Qualquer PEC ou projeto de lei, para ser aprovado na Câmara dos Deputados, necessita passar pelo crivo da bancada evangélica. Após a bancada da agricultura e da pecuária, é a segunda em importância. A Câmara tem 513 deputados federais e a bancada evangélica, 86. Outras estimativas chegam a 106. O Senado tem 81 parlamentares e a bancada evangélica, 9. Outras estimativas chegam a 14. Qualquer articulação parlamentar de governo deve passar por tratativas com essa bancada, que sempre sustentará suas questões de princípio, mesmo quando não forem objeto específico de negociação.
Os evangélicos estão distribuídos em vários partidos, embora votem alinhados entre si. A sua estratégia consiste em captar o maior número possível de eleitores em diferentes configurações partidárias, atendendo a conveniências regionais. Ademais, escolhem candidatos preferenciais em cada Estado, concentrando neles os seus votos. Os candidatos escolhidos são pessoas próximas das lideranças religiosas e delas dependem, agindo organicamente. Muitos são “filhos espirituais”, assessores e discípulos.
Bolsonaro extraiu bem essa lição. O PT não a levou em consideração. Os demais candidatos deverão enfrentar essa questão.
O Estado de S. Paulo/17 de fevereiro de 2020

O resultado das eleições conta (Albert Fishlow)

No mundo todo, a espera angustiante por notícias otimistas tornou-se a regra. O coronavírus parece estar se espalhando. A taxa de mortes vem crescendo acentuadamente na China, enquanto em outros países o número de casos vem aumentando, ainda que com menor intensidade. As restrições às viagens de chineses estão se ampliando em toda parte, especialmente após a pausa dos feriados de ano-novo. Apropriadamente, estamos no Ano do Rato, o que traz à lembrança os horrores da Peste Negra de muitos séculos atrás. Desta vez, o morcego parece ser o principal responsável.
As consequências para o comércio internacional são negativas, o que impede a recuperação do mercado mundial e a reversão dos baixos números dos anos recentes. A globalização cede espaço a um populismo intenso e a barreiras protetoras, que dificultam o fluxo de bens e serviços, de capitais e pessoas. A busca por soluções locais ganhará prioridade.
Sem um impulso econômico externo, vai se apelar para déficits nacionais para manter o crescimento. Todos estão surpresos de que a menor alta nos preços não tenha levado a taxas de juros maiores. Assim, nos Estados Unidos, Grã-Bretanha e outros países europeus, bem como na China, Índia e parte da América Latina, têm se registrado grandes déficits. O menor custo da manutenção de estoques e as taxas menores de juros nos países em desenvolvimento ainda são suficientes para atrair um capital externo que, em seus países de origem, tem retorno negativo.
A política é a principal preocupação do momento. A maioria dos líderes (e parlamentares) prefere hoje ações governamentais que aumentem os gastos em lugar de os restringir. Entre a atual retração e o anterior compromisso democrático, a decisão de gastar ganha força. Há ainda uma ajuda adicional na queda de preços, especialmente dos combustíveis, reduzidos por causa do menor crescimento industrial da China e do aumento do fraturamento hidráulico pelos EUA para extração de petróleo.
As próximas eleições nos Estados Unidos e Brasil são relevantes. Populistas de direita – como os atuais presidentes dos dois países – acreditam nas virtudes dos ricos e na preguiça dos pobres. Há pouco interesse em melhorar a distribuição de renda. Eles acham que governos locais são totalmente responsáveis pela saúde, educação, saneamento, etc, permitindo assim a redução de impostos federais sobre a riqueza. É chocante como esses serviços essenciais são negligenciados e como é baixa a qualidade dos ministros da educação.
Trump foi absolvido no julgamento de impeachment. Todos os senadores democratas votaram pela saída do presidente e apenas um senador republicano votou a favor do impeachment. A ira de Trump veio à tona em numerosos tuítes, concentrando-se naqueles que tiveram o desplante de tentar proibi-lo de fazer o que quiser, quando quiser.
Muitos funcionários que testemunharam contra ele foram demitidos dos cargos. E a popularidade de Trump aumentou nas pesquisas, enquanto democratas da esquerda populista apelam para os jovens em busca de mudanças revolucionárias. Trump os chama de comunistas.
Bolsonaro no momento está sem partido. Sua projetada Aliança para o Brasil – na qual procura apoio popular via internet – não estará em condições de disputar as próximas eleições municipais. Mas candidatos que apoia certamente aproveitarão todas as oportunidades de se identificarem com ele.
Bolsonaro tem demitido ministros e outros funcionários que o desagradam. Seu círculo administrativo mais próximo consiste agora de militares. Ao mesmo tempo, ele mantém no governo – em cargos diferentes – alguns demitidos por comportamento inapropriado, mas que têm apoio de seus familiares. Sua popularidade também sobe.
As próximas eleições presidenciais em ambos os países vão mostrar se o centro conseguirá retomar o controle político e reestabelecer compromissos com valores democráticos. Parlamentares e tribunais têm um papel decisivo a desempenhar, em lugar de serem dominados pelo Executivo. E, num sistema federalista, o mesmo se aplica a governadores e deputados. Tanto nos EUA como no Brasil, diferenças regionais voltaram como fator divisório que eram antes. Isso é também é verdadeiro em todo o mundo. A resistência à imigração avança. O livre comércio é desafiado como não era desde os anos 1930.
A força positiva da globalização dos últimos 60 anos perde terreno para um nacionalismo crescente. Esse desafio exige liderança real para evitar um retorno a décadas menos felizes e menos prósperas. / Tradução de Roberto Muniz
O Estado de S. Paulo/16 de fevereiro de 2020

A tentação de Goebbels (Simon Schwartzman)

Em 1934 o jovem Luís Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas e mais tarde criador do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e da Fundação Getúlio Vargas, vai a Berlim, fica fascinado com o Ministério de Propaganda de Goebbels e manda uma carta entusiasmada para o presidente dizendo que o Brasil precisava de algo parecido. “O que mais me impressionou em Berlim”, escreve, “foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional-socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido...”.
A carta expressa dúvida sobre a obsessão nazista com a grande conspiração dos judeus para dominar o mundo (“parece-me que através do capitalismo seria mais fácil”), mas é só um detalhe: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil.
Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (...), mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável. A Alemanha, além de outras todas, leva-nos a vantagem de ter um governo praticamente ditatorial”.
“Com todos os tropeços que se nos deparam, devemos ensaiar a adoção dos métodos modernos de administração, de órgãos de ação pronta e eficaz, experimentados em outros países.”
Depois de detalhar as áreas de atividade do ministério, a carta continua dizendo que “a antiga nobreza é contra Hitler, que acabou na Alemanha com as castas”, e “a democratização é um fato. Os ‘dancings’, cinemas etc., que eram frequentados pela elite, estão hoje repletos de povo, que vive satisfeito e distraído, esquecido da política”.
Num apêndice há um resumo das principais áreas de atuação do Ministério da Propaganda: são dez itens, começando com questões gerais da vida social e política, combatendo os adversários dentro e fora do país e controlando todos os meios de propaganda e publicação, da arte e de cultura, e culminando com a organização de manifestações oficiais, festas nacionais, feriados e o hino nacional.
Estávamos em 1934, ano em que uma nova Constituição foi promulgada, com a promessa de marcar uma nova eleição em 1938. Dois anos antes São Paulo havia se insurgido contra o governo central e a nova Constituição foi, sobretudo, uma tentativa de conciliação de Vargas com as elites paulistas, que durou até a implantação da ditadura, em 1937.
Não é por acaso que essa carta tenha sido repassada por Getúlio para Gustavo Capanema, Ministro da Educação, em cujo arquivo se encontra. Na visão de Getúlio, e do próprio Capanema, caberia a esse ministério, em aliança com a Igreja conservadora, administrar o uso do rádio, do cinema, das artes, dos currículos escolares e de grandes eventos cívicos, como os grandes desfiles e o canto orfeônico, mobilizando o povo a favor da Nação, tal como entendida pelo governo.
Ao longo dos anos, o ministério fez o que pôde para cumprir esse papel, ao mesmo tempo que acenava para os intelectuais com a proteção ao patrimônio histórico e a convivência com os modernistas, Em 1939, desistindo do Ministério da Educação, que chegou a ser prometido a Plínio Salgado, Vargas finalmente segue a sugestão de Simões Lopes e cria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a versão cabocla do ministério de Goebbels. Basta ler os objetivos do DIP no seu decreto de criação para ver que foram praticamente copiados do resumo feito cinco anos antes por Simões Lopes.
Simões Lopes e Getúlio Vargas compartilhavam a ideia de que a democracia representativa era um modelo político fracassado, que precisava ser substituído por regimes que fizessem uso de todos os meios para modernizar a sociedade e instaurar a verdadeira democracia, que para eles significava deixar o povo “satisfeito e distraído”. O que diferenciava o regime de Vargas dos fascismos europeus era que ele via a mobilização ideológica como ameaça, e por isso mesmo se desfez de seus aliados integralistas logo após o golpe de 1937.
Coisas como antissemitismo, nacionalismo, religião, normas constitucionais, direitos humanos, arte, literatura, todo esse mundo de valores e princípios, certos ou errados, eram meras conveniências que podiam ou não ser usadas para conseguir o que importava: a administração “moderna”, a capacidade de ação “pronta e eficaz” e o esperado progresso “moral e material”.
É possível que hoje, como nos anos 1930, a grande tentação de Goebbels não seja tanto a ideologia grotesca do nazismo, com o antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas, sobretudo, a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo e não se importam com os meios para chegar a seus fins.
É isso que nos deve preocupar mais.
O Estado de S.Paulo/14 de fevereiro de 2020

O desmonte do serviço público (Fernando Luiz Abrucio)

A democracia e o desenvolvimento dependem de um serviço público de qualidade e responsável perante a sociedade. Eis uma máxima da experiência internacional que abarca os países que combinam esses dois elementos. Mesmo com diferenças em alguns aspectos, vigora em todos eles um modelo baseado na profissionalização e responsabilização dos funcionários públicos. Se o Brasil almejar ser democrático e desenvolvido, precisa seguir esta trilha, o que vai significar fazer reformas em certas características da administração pública, sem que se perca o sentido nobre dessa função que, a despeito dos problemas existentes, tem sido essencial para melhorar a vida do país.
Mais uma vez, o Brasil realiza um daqueles debates estéreis baseados em visões dicotômicas de mundo. Não se deve nem defender um modelo meramente corporativista, e tampouco uma visão de que os funcionários públicos são uns parasitas. Qualquer ação nesse campo envolve um diagnóstico capaz de entender quais foram os avanços e os problemas que persistem.
Três elementos gerais podem ser destacados como marcas negativas na história do Estado brasileiro. O primeiro deles é o patrimonialismo. Esse fenômeno diz respeito à apropriação privada da coisa pública, podendo se manifestar na corrupção, na distribuição de empregos a amigos e parentes, bem como na criação de privilégios públicos a empresários ou categorias do funcionalismo público. A falta de transparência e de controles ajuda muito na manutenção desse modelo cartorial, que já se manifestou em governos de todos os espectros políticos, inclusive no atual, famoso por sua filhocracia.
A qualidade da gestão pública é outro tema relevante, envolvendo a capacidade de produzir melhores políticas públicas. Grande parte da máquina pública foi ineficiente ao longo da história, ao que se somava um sistema legal que aumentava os custos para a sociedade sem lhe dar os benefícios, como comprova a gigantesca legislação que procura regular todos os aspectos da vida dos cidadãos, favorecendo a pequena corrupção dos fiscais e os grupos que têm acesso privilegiado ao Estado.
Ter serviços públicos de qualidade não é, ressalte-se, apenas uma questão gerencial. Trata-se também de servir a quem mais precisa, num país cujas marcas da escravidão transformaram-se em desigualdade persistente no tempo. O problema é que a administração pública brasileira até 1988 não era para os pobres. Grande parte da população estava fora da escola e os hospitais só atendiam quem tinha carteira assinada.
O balanço das características gerais da administração pública tem como último elemento a democratização do Estado. Em poucas palavras, os cidadãos tinham pouco espaço para participar ou para fiscalizar as políticas públicas. E mesmo no caso de medidas embasadas por alguma modelagem técnica, prevalecia a tecnocracia, que decidia de cima para baixo e sem diálogo com a sociedade.
Mesmo com todos esses problemas, houve processos de modernização da gestão pública na trajetória do século XX, como a profissionalização iniciada por Vargas ou a criação de órgões extremamente inovadores e com grande impacto sobre os rumos do país, como a Embrapa, o Itamaraty e os escolas técnicas federais, para ficar só em alguns exemplos.
Além disso, houve importantes lideranças burocráticas que melhoraram o Estado em seu tempo, como foram os casos de Jesus Pereira Soares, Celso Furtado, Roberto Campos e Anisio Teixeira, novamente selecionando apenas alguns nomes de uma extensa lista que comprova que sem bons burocratas não há desenvolvimento e melhoria da sociedade.
Desde a Constituição de 1988, passando pela inovadora Reforma Bresser e ainda por uma série de inovações setoriais, a administração pública brasileira avançou bastante nos últimos 30 anos. Os serviços públicos chegaram aos cidadãos mais pobres, algo inédito na história do país. A palavra-chave aqui é universalização, no caso de escolas, de acesso à saúde, de renda básica para pessoas que vivem na pobreza, entre os principais direitos construídos a duras penas.
Claro que existe um longo caminho para melhorar a qualidade dos serviços públicos brasileiros. Só que não se pode esquecer que, sem ignorar os problemas, já há resultados em termos de indicadores sociais derivados dos novos equipamentos públicos, reduzindo a mortalidade infantil, aumentando a escolaridade e a expectativa de vida da população.
Parte disso veio de muitos funcionários públicos concursados, abnegados e anônimos, que garantem a vacinação da população ribeirinha da Amazônia e ensinam com prazer em áreas pobres e violentas, por vezes mudando a vida de crianças cujas famílias nunca sonharam em ter um filho com diploma.
A democratização completa esse ciclo de transformações da administração pública. Houve um avanço dos controles democráticos, por meio de conselhos de políticas públicas que se espalharam pelo país. Esse processo aproximou, em boa medida, os formuladores das políticas públicas dos reais beneficiários. Grupos que nunca tinham tido voz começaram a defender seus direitos - e efetivamente ganharam programas e acesso à dignidade cidadã.
Os avanços não mascaram os problemas da gestão pública do país. Um deles foi em grande medida resolvido no ano passado: o Brasil tinha um modelo de Previdência Pública completamente disparatado, muito distante do padrão existente nos países desenvolvidos. Certa vez, um especialista da Suécia, um país fortemente igualitário, me dissera num debate: “a Previdência Pública brasileira é uma homenagem à desigualdade”.
O capítulo da Previdência Pública ainda não acabou, porque falta resolvê-lo também nos Estados e, sobretudo, nos municípios. Há ainda uma agenda vinculada à questão dos recursos humanos que tem de ser enfrentada. Os salários iniciais das carreiras de Estado, especialmente no plano federal, são muito altos, com pouco avanço salarial ao longo de carreira, ao que se somam processos de promoção e benefícios por avaliações que são exemplos do pior corporativismo. Este caso não é só um problema fiscal, mas também de redução da motivação dos funcionários - se o rendimento inicial é próximo do final se reduz a disposição para melhorar - e de “accountability” perante a sociedade.
A ideia de avaliação e responsabilização do servidor público no Brasil ainda é uma quimera. O estágio probatório, cumprido nos primeiros anos de carreira, não serve para nada: nem para ensinar o novo funcionário nem para avaliar se ele deve continuar na administração pública. Depois disso, há pouquíssimas chances de servidores claramente incompetentes e inaptos serem demitidos. Na maior parte das democracias desenvolvidas, há processos muito bem estruturados de avaliação, com vários aspectos em questão (desempenho individual, coletivo, visão dos cidadãos, opinião dos pares etc.) e com grande direito de defesa para cada burocrata, e que levam regulamente à troca daqueles que não estão servindo bem à população. Isso é visto de forma natural e não como um escândalo e sequer como um “crime” do demitido.
Ao mesmo tempo que é preciso tornar a administração pública mais voltada para a melhoria do seu desempenho e para responder aos cidadãos, é igualmente necessário que as condições profissionais melhorem em parte do Estado brasileiro. Como mostram os rankings internacionais, professores ganham muito mal no Brasil. Faltam médicos nas áreas mais carentes do país. Funcionários do Incra, do Ibama e da Funai são cotidianamente ameaçados de morte, enquanto uma parcela de policiais militares brasileiros morre quando está fora do trabalho. Por isso, a precariedade precisa ser levada em conta quando se fala do funcionalismo em geral.
A fórmula ideal é ter um modelo de gestão pública que garanta a profissionalização do serviço público, combinando meritocracia e mecanismos de participação social, como também responsabilização e motivação dos servidores. Por esta razão, o que saiu até agora na imprensa sobre reforma administrativa, especialmente da discussão da Câmara, são temas importantes, mas que não abarcam todas as questões necessárias para a melhoria da administração pública.
Se é necessário, por um lado, racionalizar o funcionalismo federal, com excesso de carreiras e poucos estímulos ao aperfeiçoamento individual e coletivo, por outro lado tem de se reduzir o patrimonialismo indecente que ainda vigora na seleção para os altos cargos do Executivo. Várias dessas posições deveriam ter um comitê para avaliar os méritos dos indicados e processos de certificação que indicariam se aquela pessoa está apta à função. O uso desses mecanismos desfalcaria fortemente muitos dos ministérios do presidente Bolsonaro - em alguns casos, começando pelo próprio ministro.
Reformar a administração pública, ademais, é democratizar o Estado. Decerto que a saúde fiscal constitui um requisito para a boa gestão. Mas o serviço é do e para o público - daí vem a palavra. Sendo assim, as reformas necessárias no campo de recursos humanos não podem ser acompanhadas pela destruição dos conselhos de participação, nem pela redução dos gastos com saúde e educação, medidas que claramente estão na agenda atual do governo Bolsonaro, cuja visão está mais para o desmonte do que para a modernização do Estado em prol da cidadania.
Valor Econômico/14 de fevereiro de 2020

O protagonismo do Congresso (Fernando Schüler)

Um dos mantras preferidos do governo é afirmar a autonomia do Congresso. Quem gosta do governo diz que se trata de respeito às instituições; quem não gosta diz que é desleixo ou incompetência. Ambas as opiniões valem pouco em um debate complexo como esse.
É fato que o Parlamento assumiu um novo protagonismo na democracia brasileira. O governo não perdeu propriamente a condução da pauta política. Estão aí o plano Mais Brasil e as três PECs, bem como o projeto de autonomia do Banco Central. E Rodrigo Maia já disse que a reforma administrativa não anda se o governo não assumir a paternidade.
Mas estamos diante de um novo modelo. A equação anterior, em que o governo distribuía a máquina púbica para obter maioria no Congresso, simplesmente se esgotou. Em nosso quadro de extrema fragmentação partidária, tudo ficou caro demais. Haverá tempo para um diagnóstico cuidadoso disso tudo.
O conceito que bem define o novo cenário é a corresponsabilidade. Podem-se buscar outros nomes, mas é disso que se trata. Equação feita de tensões e maiorias provisórias. Consensos construídos a cada projeto. Foi o que se viu nesta semana, no acordo em torno do orçamento impositivo.
A pergunta é se tudo isso faz bem à democracia e favorece a governabilidade do país. Para a democracia não me parece haver dúvidas. O argumento da coalizão majoritária, nos moldes praticados desde a redemocratização, parte de duas premissas frágeis.
A primeira atribui demasiada racionalidade ao Executivo. É o argumento do Executivo-príncipe. Quando lembro do plano Collor, dos desmandos fiscais de meados da década passada, ou mesmo da atual "agenda conservadora", o argumento me parece perturbador.
Uma das funções essenciais do Parlamento é exatamente conter o Executivo. Isso é bom para a democracia. Não há lógica em quem ataca dia e noite a agenda do governo e, ato seguinte, reclama que o governo não tem maioria no Congresso.
A segunda fragilidade é atribuir virtude aos instrumentos constitucionais colocados à disposição do presidente para formar base, no modelo habitual de coalizão. Distribuir emendas e cargos aos deputados amigos é reproduzir cansativamente nosso surrado patrimonialismo político.
Pode-se conceber, em abstrato, a ideia de uma coalizão em bases programáticas. Quando, exatamente, isso aconteceu? Em momentos de ruptura, como no governo Itamar? No primeiro mandato de Fernando Henrique, como li recentemente? É possível que no futuro andemos nessa direção, mas não sem uma mudança de incentivos institucionais. A reforma política que não está no horizonte de ninguém.
Quanto à governabilidade, Christopher Garman sugere uma visão positiva do protagonismo parlamentar. As restrições da PEC do Teto e o avanço do Parlamento sobre a execução orçamentária tornariam racional para a liderança legislativa apoiar a agenda reformista, além de algum incentivo à responsabilidade fiscal.
Boa tese, ainda que enfrente um problema de ação coletiva. É preciso coordenar a ação de uma base fluda de 17 partidos, 400 parlamentares e uma profusão de interesses paroquiais. Com a execução obrigatória de emendas e sem cargos no varejo, para que mesmo lealdade ao governo?
A melhor posição para o parlamentar seria a do "caroneiro". Podendo colher um ganho coletivo com as reformas e deixar que os outros assumam o ônus de medidas impopulares, por que não? Não foi por isso que estados e municípios ficaram de fora da reforma da Previdência?
Não penso que exista um modelo comparável globalmente para saber o destino da atual experiência brasileira. O governo Bolsonaro não é minoritário no Congresso. É apenas inorgânico, mas com uma agenda que vem se mostrando majoritária nos temas cruciais.
Seu maior erro seria precisamente tentar fazer o que até hoje nunca se dispôs ou teve capacidade para fazer: vincular o apoio à agenda econômica à lealdade ao governo. Sua melhor chance é manter a distância e a fluidez da base, ao contrário do que muitos pregam.
Por fim, um dado pragmático. O governo não irá mudar seu modo de condução política. Se o protagonismo do Congresso não é o melhor caminho para a viabilidade das reformas nestes tempos de incerteza, diria que é o único caminho do qual dispomos.
Folha de S. Paulo/13 de fevereiro de 2020

Bolsonarismo e lava-jatismo (Cláudio Gonçalves Couto)

Quando o então juiz, Sergio Moro, foi convidado para o Ministério da Justiça de Jair Bolsonaro, houve quem acreditasse que ele seria aquele capaz de colocar freios aos notórios ímpetos autoritários do presidente eleito. Moro era visto por esses otimistas como possível bastião do estado de direito num governo cuja liderança principal nunca lhe demonstrara apreço. O curioso otimismo talvez se justificasse se fosse Moro, ele mesmo, em sua carreira de magistrado, referência para a defesa do império da lei, dos direitos individuais e do devido processo legal. Contudo, quando se considera o que foi a Operação Lava-Jato, não é esse o quadro.
Conduções coercitivas a rodo, de pessoas que sequer sabiam que deveriam depor e, logo, nunca se negaram a fazê-lo; prisões preventivas a perder de vista, até que os presos, ainda não condenados, nem de alta periculosidade, decidissem confessar ou delatar algo; aceleração considerável de processos de determinados réus; condução das audiências de forma a intimidar os advogados de defesa; divulgação politicamente oportuna de informações relativas a processos - como a delação de Antonio Palocci, às vésperas do primeiro turno de 2018; grampos em escritório de advogados do réu; e, por último, mas não menos importante, o vazamento de um grampo telefônico tomado em momento não autorizado pelo próprio juiz, envolvendo autoridade fora do alcance de sua jurisdição - no caso, a presidente da República.
Algo foi esquecido? Provavelmente sim. Porém, tudo já era conhecido previamente ao anúncio do convite para o ministério e, portanto, antes também das revelações da Vaza-Jato pelo “The Intercept”, que demonstraram existir conluio do juiz com procuradores - estes últimos, sempre bom lembrar, parte do processo, não seu árbitro.
A ilusão de que Moro pudesse ser o dique às tendências autoritárias de Bolsonaro decorre da normalização do arbítrio na Lava-Jato, em nome do combate inclemente à chaga da corrupção. Ela explica a leniência de cortes superiores com excessos cometidos pela operação, como ficou claro na decisão do TRF-4 sobre abusos do juiz que a chefiava, em especial o vazamento do telefonema presidencial, irregularmente captado.
Para justificar a não punição de Moro por seus abusos, afirmou o desembargador relator do caso: “É sabido que os processos e investigações criminais decorrentes da chamada operação ‘Lava-Jato’, sob a direção do magistrado representado, constituem caso inédito (único, excepcional) no Direito brasileiro. Em tais condições, neles haverá situações inéditas, que escaparão ao regramento genérico, destinado aos casos comuns”. Ainda complementou: “a ameaça permanente à continuidade das investigações da operação ‘Lava-Jato’, inclusive mediante sugestões de alterações na legislação, constitui, sem dúvida, uma situação inédita, a merecer um tratamento excepcional (...) as investigações e processos criminais da chamada operação ‘Lava-Jato’ constituem caso inédito, trazem problemas inéditos e exigem soluções inéditas”.
Trocando em miúdos: o ineditismo da situação permite uma justiça de exceção. Ocorre que a Operação Lava-Jato, que perdura por seis anos, rotinizou a exceção, normalizando-a. Moro e seus companheiros no Ministério Público foram artífices dessa normalização, coonestados pelo restante da hierarquia judicial, sob pressão da empolgação pública, do cansaço em relação à corrupção e do apoio acrítico, apaixonado ou mesmo cínico de segmentos importantes da imprensa. A normalização do Estado de Exceção, contudo, tem nome: chama-se ditadura.
Portanto, como esperar do heroico propulsor do Estado de Exceção judicial no país que se transformasse subitamente em freio limitador de um presidente de vocação autoritária? Seria de se supor, na verdade, exatamente o oposto: que Moro se convertesse naquele capaz de dar forma jurídica ao autoritarismo bolsonarista, desenhando seus contornos legais.
O pacote anticrime, consideravelmente corrigido pelo Congresso - mas que continha na versão originária, proposta pelo ministro, algo como o excludente de ilicitude de assassinatos cometidos sob “escusável medo, surpresa ou violenta emoção” - é um exemplo de como dar forma legal ao arbítrio. Nesse caso, não se trata apenas da perseguição a corruptos e criminosos do colarinho branco, supostamente alvos preferenciais de Moro, mas de ações que dão ao Brasil a liderança mundial da letalidade policial, preferencialmente de jovens pobres e negros - sob elogios da família Bolsonaro e silêncio do ministro.
Essa convergência de propósitos é visível não apenas na lealdade de Moro ao projeto bolsonarista, antecipada por suas ações como juiz e pelo apoio público de sua esposa ao candidato de extrema direita na eleição presidencial. Ela se nota também na mistura de lavajatismo e bolsonarismo nos movimentos de base da nova direita extremista (como o movimento Nas Ruas); na ideia de que, em nome da “justiça”, o respeito a direitos fundamentais e ao devido processo é “mi-mi-mi”; na tentativa de criminalizar a imprensa, que revela impropriedades da atuação de agentes “da lei”; e na acusação a críticos e opositores de cumplicidade com malfeitorias.
Assim, a disputa intestina, entre Moro e Bolsonaro, não contrapõe concepções políticas significativamente distintas. Ambos têm estilos pessoais diferentes e conseguem apelar a públicos que se sobrepõem considerável, mas não completamente. A maior discrição e polidez do ex-magistrado, se lhe tira o carisma por um lado, amplia seu alcance por outro. Não ter vínculos obscuros com milicianos e que tais também é vantagem, pois lhe reduz as vulnerabilidades. Não à toa segue mais popular do que o chefe e com boa chance de lhe dar uma rasteira se for expelido. Por isso mesmo, para além das afinidades de fundo, o mais interessante para Bolsonaro é o manter vinculado a si. Para Moro, pode ser exatamente o oposto, sob o risco de ser tragado pelas confusões de um governo ao qual dá seu respaldo, mas com cujos problemas pode acabar se fundindo.
Valor Econômico/12 de fevereiro de 2020

Cultura da vitimização (Pablo Ortellado)

Na sexta-feira, o apresentador do jornal SPTV Rodrigo Bocardi foi acusado de racismo por supor que um entrevistado negro que vestia uma camiseta do clube Pinheiros seria um gandula —o rapaz, na verdade, é jogador de polo aquático. Logo, ativistas denunciaram nas mídias sociais o caso de racismo estrutural e o apresentador foi cancelado —isto é, passou a ser boicotado na economia da atenção.
O caso, um entre os inúmeros cancelamentos que acontecem todos os dias, exemplifica uma emergente cultura moral promovida pelo ativismo identitário. Os sociólogos Bradley Campbell e Jason Manning escreveram a melhor descrição e análise do fenômeno num influente artigo de 2014 transformado depois em livro (“The Rise of Victimhood Culture”, Palgrave Macmillan, 2018).
Essa cultura moral da vitimização se desenvolve com a difusão de táticas ativistas nas quais uma ofensa, voluntária ou mesmo involuntária, em situações de opressão, é vingada com a publicação de um relato de vitimização —com o duplo objetivo de angariar a simpatia do público e efetivar a punição social do agressor, normalmente com sanções como o cancelamento.
Os autores chamam atenção para o fato de essa cultura moral se desenvolver primordialmente no meio universitário, um ambiente no qual um relativamente alto grau de equidade e diversidade torna a comunidade mais sensível para os desvios que perduram.
A forma vitimizante de lidar com insultos é bastante particular.
Por um lado, ela lembra a cultura moral da honra do século 19, na qual também havia sensibilidade ao insulto, mas difere dela no sentido de que a reparação se fazia de maneira direta e violenta, demonstrando bravura, como nos duelos. Difere também da cultura moral da dignidade do século 20, na qual um valor inerente inalienável tornava a pessoa pouco sensível a insultos que em casos graves eram resolvidos por meio do sistema legal.
Campbell e Manning sugerem que os ativistas podem estar agindo como uma espécie de vanguarda que estaria preparando uma nova cultura moral na qual resolveremos conflitos publicando relatos vitimizantes, solicitando a simpatia do público e a vingança social contra supostos agressores.
Embora tudo isso hoje só ocorra em contextos de opressão e em meios universitários (não solucionamos conflitos de outra natureza e noutros espaços publicando relatos na condição de vítimas), pode ser que estejamos vendo o nascimento de uma nova ordem que tem a vergonha e o isolamento social como principal forma de punição.
Folha de S. Paulo/11 de fevereiro de 2020

O risco de querer ser amado (Thaís Oyama)

No começo de 2017, quando boa parte do Congresso e da imprensa tratava Jair Bolsonaro como um excelentíssimo zé-ninguém, o então deputado do baixo clero era recebido nos aeroportos do país por multidões que o carregavam nos ombros e o chamavam de “mito”. Eram cenas intrigantes por mais de um motivo. Muitos dos que as testemunharam se perguntavam, por exemplo, por que razão os fãs do ex-capitão assobiavam, uivavam e tocavam corneta a cada vez que ele, do alto de palanques improvisados no capô de picape, colocava um par de óculos escuros no rosto. Era uma referência ao meme que circulava na internet em que óculos pixelados apareciam sobre a imagem do pré-candidato à Presidência da República sempre que ele “mitava”. Ou seja, quando dizia algo, em geral engraçado ou provocativo, que extasiava seus seguidores. O meme dos óculos era só um dos itens do repertório do bolsonarismo nascente, que começava a transbordar para as ruas naqueles meses que antecederam às eleições de 2018 depois de inundar o universo paralelo das redes sociais — o habitat original de Jair Messias Bolsonaro.
Em 2019 — eleito, empossado e tendo de substituir a retórica de campanha por ações — o ex-deputado socorreu-se junto aos militares que subiram a rampa com ele e passaram a ser vistos como o lastro de credibilidade institucional do novo governo, além de tutores informais do presidente estreante. Bolsonaro pisava no tapete vermelho do poder com a humildade de um capitão entre os generais. Em junho, a situação mudou. Os militares concluíram que seus conselhos de pouco valiam diante do voluntarismo e da influência do entorno familiar do presidente. A demissão do ministro Carlos Alberto Santos Cruz, um general que foi para a guerra, provocou um abalo tectônico e jamais superado na relação entre Bolsonaro e os fardados.
A partir daí, o presidente voltou às origens. Cercou-se da “turminha das redes sociais” e passou a dar ouvidos a “um grupo de garotos que têm entre 25 e 32 anos”, nas palavras do general de quatro estrelas Maynard Santa Rosa, que se demitiu em novembro do governo, entre outros motivos, por não ter acesso ao chefe. Bolsonaro passou a pedir e a receber informes diários da repercussão nas redes tanto de seus posts quando de suas ações de governo. A internet tornou-se a bússola do presidente. Mais que isso, revelou-se seu calcanhar de aquiles. Em janeiro, diante das críticas pesadas que recebeu de seguidores no Twitter e no Facebook quando estava prestes a sancionar o “fundão eleitoral” de 2 bilhões de reais, o ex-capitão gravou uma live em que pedia a apoiadores que pensassem melhor antes de chamá-lo de traidor. O adjetivo tinha lhe doído nos ouvidos.
No mesmo período, a grita na internet levou Bolsonaro a recuar de duas decisões: a de recriar o Ministério da Segurança Pública, que esvaziaria os poderes do ministro da Justiça, Sergio Moro, e a de manter no governo o coruscante secretário Vicente Santini, que havia sido demitido por ter usado um avião da FAB para viajar pelo mundo. Mais recentemente, Bolsonaro passou a usar as redes para polir sua imagem também à custa de assuntos atinentes ao até agora sacrossanto território do ministro da Economia, Paulo Guedes. No fim do ano passado, foi ao Twitter criticar a “taxação do sol”, falácia criada para encobrir o subsídio a um setor já bem pronto para andar sozinho, e há poucos dias usou o mesmo aplicativo para culpar governadores pelo preço dos combustíveis. Bolsonaro quer e persegue a aprovação da turma que o apoia desde que era o patinho feio da política.
Mas a internet nunca foi o território da reflexão. Nos parcos caracteres do Twitter e na cacofonia do Facebook, tudo é certeza, e há sempre uma solução simplória para um problema complexo. Antes de ceder ao alarido das redes em troca de likes, Bolsonaro deveria recorrer ao seu vasto repertório de metáforas sentimentais e lembrar que o amor é lindo, mas também é cego. Governar é mais difícil que “mitar”.
O Globo/11 de fevereiro de 2020

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Presidente fraco? (Marcus André Melo)

Há uma nova expressão no léxico político: a parlamentarização. Estaríamos vivendo um parlamentarismo branco: o poder Legislativo autonomizou-se, e o poder Executivo vem perdendo protagonismo. A intuição da parlamentarização vai na direção correta, mas no fundo a expressão é enganosa.
O traço distintivo do parlamentarismo é que a origem e a sobrevivência do chefe do poder Executivo depende do Parlamento. No presidencialismo, o presidente é eleito diretamente e o mandato é fixo, independe de confiança parlamentar.
Um conflito entre os dois poderes não tem arbitragem fácil devido à legitimidade dual: ambos têm mandato popular. Sob o parlamentarismo, há uma válvula de escape para o conflito: a moção de confiança seguida de novas eleições. A estrutura de incentivos no presidencialismo pode levar sob certas condições a uma situação de confronto radical.
A ideia de parlamentarização ignora que há grande variação dentro do presidencialismo: há presidentes com amplos poderes constitucionais (Brasil, com escore de 0,46 no índice Elgie/Doyle; ou Chile, com 0,57) e com escassos poderes —EUA e Costa Rica (ambos 0,28). O apoio que recebe do seu partido também importa à análise. Nos EUA, o presidente tem estado em situação minoritária em uma das casas legislativas em 59% dos anos de 1945 a 2020.
A combinação difícil ocorre quando um presidente forte não conta com apoio parlamentar e tenta unilateralmente impor sua agenda. Sob um presidente fraco, o risco seria menor. Mas essa análise assume equivocadamente que presidentes minoritários não têm incentivo para a formação de coalizões, o que mitiga o risco.
Cerca de 1/3 das democracias é parlamentarista, e nelas as coalizões multipartidárias chegam a 80%.
Segundo Timothy Power (Oxford University), entre 1974 e 2013, presidentes minoritários formaram coalizões multipartidárias em 52% do tempo.
O Parlamento brasileiro já desfruta de prerrogativas institucionais expressivas, que se expandiram com a aprovação do orçamento impositivo. No índice de poderes legislativos de Chernykh, Doyle e Power, o escore do país é 4,12, abaixo do parlamento mais poderoso do mundo —o alemão (escore de 5,93)— e do dos EUA (4,67) —mas acima de Chile (4,04), Argentina (3,6) e México (3,1).
O que está ocorrendo no país não significa parlamentarização, mas transformação no padrão do regime presidencial. Tampouco equivale ao semipresidencialismo, porque o presidente brasileiro detém amplas prerrogativas (ex. o poder de nomear e demitir ministros).
Feita em 1988 em nome da eficiência, a delegação de poderes no Brasil está sendo revertida. Suas consequências não são claras.
Folha de S. Paulo/ 10 de fevereiro de 2020

Bolsonaro, governe enquanto há tempo (Carlos Pereira)

Um maior ativismo ou mesmo protagonismo do Legislativo brasileiro durante o governo Bolsonaro tem sido interpretado como uma alternativa positiva para um governo que se recusa a utilizar suas armas legislativas e governar por meio de coalizões majoritárias. Alguns, inclusive, chamam esse modelo de “parlamentarismo informal” ou “semipresidencialismo branco”, situação na qual um presidente minoritário não seria o real chefe do governo, mas os líderes no
Como o Legislativo seria a representação mais direta da democracia, por congregar os mais variados interesses na sociedade, poderia parecer, inicialmente, que o seu fortalecimento seria algo benéfico para a própria democracia.
Mas, no nosso mundo real, de presidencialismo multipartidário, não seria bem assim.
Por que um Legislativo proeminente e proativo não seria funcional?
A concentração de poderes nas mãos do presidente e o protagonismo político do Executivo, que no passado eram vistos como ameaças à democracia, em função dos potenciais riscos de tirania ou de comportamentos autoritários do chefe do Executivo, são, hoje, interpretados como precondições para a efetividade governativa do presidente, especialmente em um ambiente multipartidário.
Por mais paradoxal que possa parecer, o presidencialismo multipartidário requer que o presidente seja constitucionalmente forte para que tenha condições de governar. Influenciar ou mesmo controlar a agenda do Legislativo é uma prerrogativa para o funcionamento adequado desse sistema que privilegia a representação.
Quando o presidente em um ambiente partidariamente fragmentado não faz uso de poderes constitucionais e orçamentários, problemas de coordenação emergem, sua produção legislativa e taxa de sucesso no Congresso diminuem e dificuldades governativas se tornam mais frequentes.
A falta de um líder que coordene e sirva de vetor dos mais variados interesses e partidos no Congresso leva à formação de maiorias cíclicas, esporádicas e não comprometidas com uma política de governo de longo prazo.
Além disso, não existem nos presidencialismos multipartidários válvulas institucionais flexíveis de resolução de conflitos governamentais, comuns em regimes parlamentaristas, tais como voto de confiança, dissolução do Parlamento ou eleições antecipadas.
A passividade do Executivo em relação ao Legislativo tende a deixar brechas políticas e institucionais que fatalmente serão preenchidas pelos legisladores, que, progressivamente, tenderão a diminuir os poderes do presidente. Sinais de enfraquecimento do Executivo já podem ser identificados nas decisões recentes do Congresso de tornar impositiva a execução das emendas individuais e coletivas dos legisladores ao Orçamento. Convém lembrar que essas decisões enfraquecem o Executivo em si, e não apenas o governo de plantão.
Já vimos esse filme antes no Brasil entre 1946 e 1964, quando presidentes minoritários e constitucionalmente fracos enfrentaram graves problemas governativos ou mesmo de paralisia decisória, que os fizeram abreviar seus mandatos seja por renúncia, suicídio ou golpe.
O “milagre” institucional que levou à superação desses problemas foi a decisão da Constituinte de 1988 de delegar uma ampla gama de poderes para que o presidente pudesse agregar interesses em torno da sua plataforma política e sob a sua liderança. Neste desenho, o melhor papel que o Legislativo pode executar é ser reativo ao protagonismo presidencial.
Se existe algum risco para a democracia brasileira, este se localiza na relutância do presidente em utilizar os seus poderes que outrora foram delegados pelos próprios legisladores.
O Estado de S.Paulo/10 de fevereiro de 2020