Adeus ano velho, feliz ano novo... À medida em que os acordes de “Fim de Ano”, a valsa composta pelo jornalista David Nasser e pelo “Rei da Voz” Francisco Alves, se aproximam, é hora de fazer um balanço do ano na política brasileira.
A eleição de Bolsonaro sobre 2019 lançou uma série de dúvidas: Estaria nossa democracia em risco? Nossas instituições estariam preparadas para resistir a um governo com forte inclinação autoritária? A polarização política seria radicalizada a ponto de forçar uma ruptura institucional?
Em 1978, o cientista político Juan Linz criou um checklist com quatro grupos de indicadores para atestar comportamentos autoritários de políticos que poderiam levar ao colapso de regimes democráticos - esses parâmetros constituem a base para o best-seller “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, lançado em 2018.
Tomando por base os discursos, vídeos e postagens de Jair Bolsonaro nas redes sociais não era difícil enquadrá-lo como um forte candidato a tiranete seguindo a tabela de Linz. Não foram poucas as ocasiões em que o ex-capitão fez apologia à ditadura militar e questionou a legitimidade do processo eleitoral, lançando dúvidas sobre as urnas eletrônicas (condição nº 1 - “rejeição das regras democráticas do jogo, ou compromisso débil com elas”) e tratou seus adversários como criminosos (condição nº 2 - “negação da legitimidade dos oponentes políticos”).
Quanto à condição nº 3, o apoio à disseminação das armas e o elogio à brutalidade das forças policiais e até mesmo à ação de milícias eram sinais claros de seu posicionamento de “intolerância ou encorajamento à violência”. Por fim, a distribuição maciça de fake news e as frequentes ameaças à imprensa e a ONGs fechavam o ciclo (condição nº 4 - “propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”). A eleição de Bolsonaro, portanto, teria sido o ápice de um processo que Levitsky e Ziblatt denominaram de “abdicação coletiva”, em que a sociedade elege um líder que flagrantemente põe em risco a democracia.
A disposição de Jair Bolsonaro ao confronto é marca de sua trajetória política, desde os tempos de suas insubordinações no Exército. Não seria de se esperar comportamento diverso uma vez investido no cargo mais alto da República. Já na primeira vez em que se dirigiu à população, no parlatório do Palácio do Planalto, Bolsonaro abriu sua fala anunciando que naquele momento “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.
Uma vez empossado, o presidente tratou de levar adiante várias de suas bandeiras ideológicas no que se refere ao uso de armas, meio-ambiente, cultura, participação social e liberdade de imprensa. Com dificuldades na articulação no Congresso, Bolsonaro frequentemente se valeu de medidas provisórias e decretos para tentar impor essa agenda - e acabou encontrando resistência nos partidos de oposição, no Supremo, no Congresso e também na opinião pública.
Desde a redemocratização nenhum presidente sofreu tantos questionamentos no STF quanto Bolsonaro. Apesar de débil no Congresso, a oposição manobrou bem os instrumentos jurídicos para questionar a constitucionalidade de atos normativos emanados do Palácio do Planalto. Ao longo de 2019, Bolsonaro respondeu a 58 ações diretas de inconstitucionalidade contra decretos, MPs e portarias - para efeito de comparação, Temer sofreu 14, Dilma duas e Lula cinco no primeiro ano de governo.
Algumas dessas ações já deram resultado, ainda que parcial, como na reversão liminar do decreto presidencial que reduziu a participação da sociedade civil em conselhos de políticas públicas. Em outros casos não diretamente relacionados a seus atos, o Supremo também impôs derrotas seja à visão de mundo bolsonarista (no caso do enquadramento da homofobia como crime de racismo), seja às práticas de seu núcleo mais próximo (na autorização do compartilhamento de informações financeiras entre os órgãos de controle).
A famosa “opinião pública”, expressa pela imprensa e cada vez mais pelas redes sociais, também estabeleceu limites a comportamentos autoritários do presidente, como na sua intenção de “comemorar” o golpe de 1964, na nomeação de figuras controversas para postos-chave em ministérios e na revogação do edital que excluiu a “Folha de S.Paulo” em licitação do Palácio do Planalto, entre tantos outros recuos.
No entanto, nenhuma instituição foi tão bem-sucedida na reação à vontade de Bolsonaro quanto o Congresso Nacional. Deputados e senadores bloquearam a aprovação de medidas provisórias motivadas pela intenção de enfraquecer financeiramente a imprensa e os sindicatos, votaram a favor da derrubada de decretos que enfraqueciam a transparência e flexibilizavam o porte de armas, demonstraram que teriam força para derrubar a indicação de Eduardo Bolsonaro para embaixador nos Estados Unidos, aumentaram seus poderes no processo orçamentário e derrubaram dezenas de vetos presidenciais.
A atuação do STF e do Congresso ao barrar medidas de Bolsonaro não quer dizer que tudo o que saiu de ambos foi positivo para o país (tivemos importantes retrocessos na agenda contra a corrupção vindos das duas Casas, por exemplo). Também não podemos nos esquecer que tanto o parlamento quanto o Supremo contribuíram de forma significativa para agenda positiva que muito beneficiará o governo Bolsonaro no futuro próximo, como no caso das privatizações e da reforma da Previdência. A recuperação da economia, aliás, desponta como tábua de salvação para as pretensões eleitorais do presidente em 2022, embora sejam bastante preocupantes os estragos de sua inação nas áreas de educação, meio-ambiente e relações internacionais.
Sob as lentes distorcidas do retrovisor, as instituições brasileiras parecem ter desempenhado bem seu papel de conter os arroubos antidemocráticos de Bolsonaro em seu primeiro ano de governo. Resta saber até quando manterão essa disposição. Que venha 2020!
Valor Econômico/30 de dezembro de 2019
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