2019 foi marcado pela discussão sobre a polarização que marcaria nossa política. Frequentemente, o termo foi tomado como sinônimo de extremismo ou radicalização política. Polarização não tem a ver com isso, mas com a contraposição de alternativas políticas claras. É assim que historicamente Democratas e Republicanos polarizam a política nos EUA, Conservadores e Trabalhistas no Reino Unido, Socialistas e Republicanos na França.
No Brasil, entre os anos 90 e 2014, a polarização foi entre um partido social-liberal (o PSDB) e um social-democrata (o PT). Na medida em que o PT caminhou para o centro, deslocou o PSDB para a direita, configurando uma típica polarização centro-esquerda/centro-direita, cujo centrismo foi acentuado nos dois casos pela necessidade de coalizões. Assim, o vermelho oposicionista do socialismo petista se debotou, assumindo tons rosados no governo, enquanto o social-liberalismo tucano se tornou menos social e mais liberal, primeiro pela imposição das reformas econômicas, depois pela oposição ao adversário à sua esquerda, o PT.
As jornadas de junho de 2013, a Lava-Jato, o impeachment e o impopular governo de Michel Temer mudaram as coisas. Muito enfraquecido num primeiro momento (como se notou nas eleições municipais de 2016, quando perdeu 60% de seus prefeitos), o PT recuperou algo de sua força depois, chegando ao segundo turno das eleições presidenciais e fazendo a maior bancada na Câmara. Com isto, manteve-se como um polo da disputa, sendo o ator principal à esquerda do espectro nas eleições nacionais.
Contudo, à direita, o PSDB (associado ao governo Temer e ao establishment) minguou, culminando no vexaminoso desempenho de Geraldo Alckmin na disputa presidencial e na redução das bancadas congressuais do partido. O eleitorado à direita, que votava no PSDB (ou contra o PT) desde os anos 90, migrou para Jair Bolsonaro e deu ao PSL a maior votação para a Câmara de Deputados. Mesmo nas disputas estaduais, deram-se bem candidatos que se alinharam ao bolsonarismo durante a eleição, como Wilson Witzel no Rio de Janeiro e João (Bolso)Dória em São Paulo. Criou-se uma nova polarização, entre uma esquerda socialdemocrata momentaneamente mais estridente e uma extrema-direita oriunda da margem do sistema político.
Nos anos 50 do século passado surgiu um teorema que tentava explicar o comportamento do eleitorado em tais polarizações, em eleições majoritárias. Esboçado inicialmente por Dunkan Black (“On the rationale of group decision-making”) e depois aprimorado por Anthony Downs (Uma teoria econômica da democracia), o “teorema do eleitor mediano” supõe que o eleitorado apresenta uma distribuição normal entre esquerda e direita, concentrando-se a maior parte dele ao centro. Desse modo, o idealizado eleitor mediano (aquele localizado a meio caminho entre cidadãos dos dois lados do espectro ideológico) seria o votante a ser conquistado, pois o competidor à esquerda já teria garantida a maioria dos votos à esquerda do mediano, enquanto o competidor à direita teria a maioria dos votos do seu lado. A dinâmica dessa competição levaria esquerdistas e direitistas a caminharem para o centro, em busca do voto decisivo, moderando-os.
O teorema faz bastante sentido e ajuda bem a entender a lógica das eleições e dos partidos em cenários nos quais de fato o eleitorado se distribua em duas metades praticamente iguais, na forma de uma curva normal simétrica da esquerda à direita. Porém, por vezes a distribuição se torna assimétrica e o eleitor mediano se desloca consideravelmente para um dos flancos do espectro ideológico, carregando para ali a maior parte do eleitorado. A vitória de Bolsonaro no segundo turno mostrou que em 2018 o eleitor mediano se deslocou bastante para a direita, explicando a debacle do PSDB já no primeiro turno: o antipetismo tucano se mostrou insuficiente para grande parte dos votantes, que preferiram um candidato mais radicalmente antagonista ao petismo. E como Bolsonaro se apresentava como alternativa radical não apenas ao esquerdismo petista, mas também ao establishment político de um modo geral (em que se enquadrava o PSDB), levou consigo a maioria.
Hoje, após um ano de governo, com suas peripécias e confusões, parte do eleitorado se vê assustada com o bolsonarismo e seu radicalismo, que não arrefeceu após a vitória eleitoral, como supunham alguns. No outro polo (o que não é o mesmo que dizer no outro extremo), a esquerda petista mantém o discurso e a postura que alienaram boa parte de seus eleitores, desapontados com o desastre econômico do governo Dilma, com os escândalos de corrupção e com a incapacidade de uma transformação. Desse modo, surgiu espaço para um denominado (e autodenominado) “centro”, que procura se apresentar como opção tanto ao petismo como ao bolsonarismo. Há aí um pouco de tudo.
Parte desses centristas não são nada novos. São o “Centrão”: conglomerado de partidos de adesão e políticos de viés conservador e fisiológico, dispostos a apoiar quaisquer governos, desde que recompensados com cargos, verbas e políticas para os segmentos que representam corporativamente. Estes, porém, dificilmente articulam candidaturas presidenciais.
Outra parte é uma nova direita pós-tucana, de discurso conservador, liberal quase só economicamente, antipolítico, focado na ideia de gestão pública como gerencialismo, e na segurança pública como guerra - como o Bolsonarismo. Dória e Witzel estão aí.
É desse campo que também surge Luciano Huck, com seu antipetismo visceral, postura de moderno e liberal também politicamente (não só na economia), vindo de fora da política para renová-la. Talvez seja, dos três, o mais efetivamente centrista - já que os outros são claramente direitistas.
Por fim, até Ciro Gomes tenta ocupar esse espaço, à centro-esquerda. Começou na eleição, desvinculando-se do PT, e seguiu depois, atacando petistas sempre que possível. Resta saber se além de alienar o eleitorado à esquerda, conseguirá convencer centristas. Não será fácil.
Valor Econômico/2 de janeiro de 2020
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