quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

“Estamos num momento de empate; não de impasse” (Luiz Werneck Vianna/entrevista)

Transcorrido um ano desde a posse do presidente Jair Bolsonaro, o caminho pelo qual o país enveredou já não é mais “misterioso”, como advertiu o sociólogo Luiz Werneck Vianna em janeiro do ano passado na entrevista que concedeu à IHU On-Line. Ao analisar o primeiro ano do governo Bolsonaro à frente da Presidência da República, o professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio é categórico: “Ficou claro neste primeiro ano que o tabuleiro que está posto na nossa frente é de uma guerra de posições. O governo está acantonado na sua trincheira, tentando implementar o seu projeto, que consiste em destruir o que havia antes e começar algo que considera que seja novo”. Do outro lado, diz, está a sociedade civil, que busca formas de resistir através do fortalecimento dela própria e das suas agências. “O importante, a meu ver, é que não há mais nada enigmático, está tudo claro: o que o governo quer e como a sociedade pode responder às pretensões autoritárias do governo”, assegura, na entrevista concedida por telefone à IHU On-Line.
Na avaliação dele, a disputa de posições em curso no país “favorece mais a sociedade, porque deixa à vista de todos que o governo trabalha com certas limitações políticas e institucionais. Ele não pode tudo, embora ele tente, a cada passo, um avanço; tenta sair da sua trincheira e avançá-la um pouco a mais, mas é obrigado a voltar, porque não consegue consolidar suas posições mais à frente”.
Para ele, 2020, ano que será marcado pelas eleições municipais, sinaliza que estamos entrando em um cenário novo, distanciando-se da era pré-Bolsonaro. “É novo porque neste ano tem a novidade das eleições municipais, que vão mexer com este país, vão facilitar os encontros, as alianças, a formulação de projetos alternativos. (...) As eleições deste ano são um balão de ensaio para isso, especialmente em alguns estados relevantes da federação”. A longo prazo, o sociólogo avalia que a sociedade caminha na direção de alternativas ao projeto do governo. “Há um movimento das coisas atuando na sociedade que propicia a emergência da novidade, da nova personalidade política e intelectual. Não estamos congelados no tempo”, conclui.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Na entrevista que nos concedeu no ano passado, logo depois da posse do presidente Bolsonaro, o senhor disse que o país havia enveredado para um caminho muito “misterioso” e não se sabia para onde a balança iria pender. Depois de um ano de governo, já é possível saber para qual lado a balança pendeu? Como o senhor avalia o primeiro ano do governo Bolsonaro?
Luiz Werneck Vianna – Este foi um ano de aprendizado para o governo e para a sociedade. Para o governo, porque ele testou os seus limites e as ideias que apresentou na campanha. Para a sociedade, porque ela aprendeu a encontrar formas de resistência ao projeto do governo. Ela deixou de ficar atônita, perplexa e passou a encontrar formas de respostas. Pelo menos o esforço disso ocorreu.
IHU On-Line - Como o governo se saiu neste primeiro ano, ao testar seus limites?
Luiz Werneck Vianna – Ficou claro neste primeiro ano que o tabuleiro que está posto na nossa frente é de uma guerra de posições. O governo está acantonado na sua trincheira, tentando implementar o seu projeto, que consiste em destruir o que havia antes e começar algo que considera que seja novo. Estamos na fase da demolição, mas haverá outras. O importante, a meu ver, é que não há mais nada enigmático, está tudo claro: o que o governo quer e como a sociedade pode responder às pretensões autoritárias do governo.
Agora estamos num cenário novo. É novo porque neste ano tem a novidade das eleições municipais, que vão mexer com este país, vão facilitar os encontros, as alianças, a formulação de projetos alternativos. Eleição no Brasil é sempre algo que traz novidade e esta não vai ser diferente. Estamos nos dissociando do período anterior, pré-Bolsonaro, assumindo novas identidades, identificando novos problemas e novas soluções. A intenção do governo é simplesmente erradicar todos os obstáculos que estão postos diante de uma afirmação capitalista selvagem no sentido de um projeto neoliberal, como se a experiência chilena encontrasse lugar aqui.
A sociedade brasileira é muito adversa, refratária a isso, independentemente de formações partidárias, ideologias. A resistência a uma ação econômica descontrolada como a que se quer introduzir é algo entranhado na nossa formação. Na questão ambiental, por exemplo, se quer remover os obstáculos que se manifestam nessa dimensão, como a questão indígena, e promover aí um capitalismo selvagem, com garimpos, avanço do agronegócio; isto está visto e não há mais enigma. O projeto do governo está visível diante do olhar de todos.
IHU On-Line – Como o parlamento tem reagido a esse projeto e às tentativas do governo de colocar seu projeto em curso?
Luiz Werneck Vianna – O parlamento tem afrontado tudo isso. Embora esse parlamento tenha uma representação mais fraca do que alguns anteriores, ele é expressivo da nossa cultura política e, para ele, há limites. Ele tem deixado isso claro. Essa não é uma novidade, porque isso apareceu no transcurso do ano que passou. Mas há novidades na emergência de novas lideranças intelectuais muito relevantes.
IHU On-Line – Quais, por exemplo?
Luiz Werneck Vianna – Armínio Fraga, por exemplo, que vem do campo liberal e contesta o neoliberalismo primitivo com o qual o governo desempenha seu papel. Ele está atento à questão social, à necessidade de enfrentar as imensas desigualdades brasileiras e, não à toa, ele está sendo cortejado pela classe política como um novo intérprete – um intérprete interessante – do status quo que estamos vivendo.
O imperialismo político, longe de estar banido da cena pública brasileira, se fortalece a cada passo. Inclusive, encontra muita expressão na vida institucional, especialmente no parlamento e no poder Judiciário, sobretudo no Supremo Tribunal Federal, que tem servido como marcador da resistência da sociedade a esse projeto do governo que visa a sua desfiguração.
É uma guerra de posição em que estamos empenhados: governo de um lado, sociedade do outro. No horizonte não há nada que diga que uma das posições vai ceder para o avanço da outra; então, é uma guerra de posição continuada. Agora, a continuidade dela favorece mais a sociedade do que o governo, porque deixa à vista de todos que o governo trabalha com certas limitações políticas e institucionais. Ele não pode tudo, embora ele tente, a cada passo, um avanço; tenta sair da sua trincheira e avançá-la um pouco a mais, mas é obrigado a voltar, porque não consegue consolidar suas posições mais à frente. Por que o governo resiste tanto? Porque tem o apoio das elites econômicas, especialmente das elites financeiras. Mas isso não basta. Nem aqui nem em lugar algum isso bastou, especialmente numa sociedade complexa como a nossa, num país continental, numa federação desigual. As dificuldades para isso são muito grandes. Eu diria que é uma impossibilidade, até.
Para onde estamos andando? Para que essa guerra de posição cada vez mais se sofistique, para que a sociedade recupere os seus movimentos. Coisas novas estão ocorrendo. Por exemplo: a revitalização da Associação Brasileira de Imprensa - ABI; toda a experiência acumulada na luta contra o regime de 64 está vindo à superfície. A sociedade pode resistir pelo fortalecimento dela própria, das suas agências, da sociedade civil.
IHU On-Line – No início do governo Bolsonaro, alguns analistas disseram que o governo era composto por alas, como a ideológica, a neoliberal e a militar. Transcorrido um ano de governo, quais são as correntes que predominam na condução deste projeto? Há uma unidade em torno do objetivo fim do governo ou disputas internas entre as correntes?
Luiz Werneck Vianna – Isso não está bem compreendido. Ainda não temos informações suficientes para o entendimento dessa questão. Sabe-se, por exemplo, que na questão da política externa, os militares têm sido mais prudentes, mais inteligentes do que o governo. Um exemplo é a questão da Venezuela, onde havia a pretensão maluca de uma investida militar contra o país, a qual não encontrou passagem entre a elite militar. Nesta questão sobre o Oriente Médio, intensificou-se na elite militar uma certa resistência a posições aventureiras do governo brasileiro quanto à política com o Irã.
Nós fomos grandes vendedores para aquela região. Voltamos a uma fase pobre da economia. A indústria está fraca e cada vez mais enfraquecida, sem capacidade de reação. Tirando o mundo das exportações das mercadorias do agronegócio, não temos nada na mão, mas uma parte importante do mercado está no Oriente Médio e temos que trabalhar com luva de pelica nessa região. Acho que os militares estão atentos a isso. Tenho minhas dúvidas, para falar de forma eufemística, de que o governo compreenda essa questão. Ele age por necessidade, porque, por impulso, teria se envolvido mais na questão da Venezuela e do Oriente Médio.
A sociedade acumulou muita experiência ao longo das últimas décadas e as classes sociais e as instituições não são ingênuas em relação ao que está se passando aqui e no mundo.
IHU On-Line – As instituições continuam funcionando neste governo?
Luiz Werneck Vianna – Um dos alvos preferidos deste governo é o Judiciário, especialmente o STF, que conta como cavalo de batalha do ex-juiz Moro, o qual, em nome de uma cruzada contra a corrupção - uma cruzada idiota e que não faz sentido algum -, ganhou uma parte da opinião pública e projeção na mídia, e provoca o Supremo a cada passo.
A vida institucional tem servido de obstáculo para o aprofundamento das experiências autoritárias que o governo quer fazer. Aonde isso vai parar? Guerras de posição podem se converter em guerras de movimentos. Não é o caso de a sociedade se mobilizar agora para uma guerra de movimentos, pois ela não tem força para isso; mas o governo pode. Mas pode cometer aventuras nessa direção. Ele tem tentado descobrir um caminho para isso, mas está difícil, porque ele não tem suporte interno. Por exemplo, os militares são muito avessos a concepções aventureiras.
A instituição militar tem séculos de experiência da vida republicana brasileira. A tentativa de fazer o governo passar de uma guerra de posição para uma guerra de movimento é uma aventura sem tamanho. Ele não tem força na sociedade, nem partido, nem movimentos sociais para isso. Tem arremedos como esse novo partido [Aliança pelo Brasil], que é uma ressurreição do Partido Integralista.
Estamos num momento de empate; não de impasse. A sociedade vai tendo mais força a cada momento que passa e novas lideranças surgem, como Armínio Fraga e outras que estão surgindo por aí. O novo é imprevisível e a emergência dele não está sendo abafada por um autoritário. Veja a mídia: ela está desenvolta, você encontra articulistas e colunistas trabalhando facilmente nessa linha de procurar frentes de resistência ao que está aí. Agora, quando isso vai se constituir num movimento ofensivo por parte da oposição, não dá para saber. O fato é que as eleições deste ano são um balão de ensaio para isso, especialmente em alguns estados relevantes da federação.
IHU On-Line – Como as eleições podem dar início a mudanças no cenário político e movimentar a cena política?
Luiz Werneck Vianna – O governo vai sem partido para estas eleições. Tudo que é institucional se volta contra o governo Bolsonaro, porque é da natureza desses movimentos quererem autonomia, apoio da sociedade, e não se pode ter apoio da sociedade recusando saídas para ela. A trajetória de um [João] Doria, por exemplo, é absurdamente errática, de um político que sente que o caminho do governo Bolsonaro não é favorável a ele e fica procurando alternativas na sociedade. Como vai operar isso? Imagino que seja procurando alternativas mais ao centro e por aí vai. Esse é um caso extremo de um político muito oportunista, carreirista, mas que serve de exemplar para governar um grande estado como São Paulo.
A solução pluralista é muito grande. No caso do Rio de Janeiro, o [Marcelo] Crivella foi e é um pesadelo que a sociedade carioca vive. Agora vem o carnaval, que por si só é contraditório ao governo Crivella. Vai ser um carnaval daqueles, com 50 dias, e a sociedade vai cantar com os sambas-enredos, que têm uma narrativa democrática, pluralista, de valorização das coisas do povo, ao contrário do que está aí. Nós não somos uma sociedade totalitária. Podemos até estar correndo o risco de nos tornarmos, se errarmos muito na condução da política, mas não somos. O governo é autoritário, mas não pode tudo, tem o parlamento, o Congresso, a opinião pública, que ainda é incipiente. O fato da ressurreição da ABI, a meu ver, é muito significativo, assim como o de outras instituições, como a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB, que são experiências muito frutuosas que tivemos nos anos 1970 e que estão sendo resgatadas agora.
Está faltando a vida associativa, a política de vizinhança, especialmente no mundo popular. A política do PT nunca foi favorável a isso e essa é uma das heranças desgraçadas que o PT deixou: a falta de um entendimento do papel que a organização da vida popular pode ter. Faltam também os sindicatos, por ora muito enfraquecidos, mas o mundo do trabalho está aí, o desemprego está aí. O combustível da insatisfação do mundo do trabalho permanece e vai ficar silencioso agora, mas por quanto tempo? Não dá para subestimar a vida do trabalho e a vida associativa dos trabalhadores.
Por outro lado, estão aparecendo movimentos intelectuais da elite brasileira muito interessantes, com nova bibliografia, novas personalidades. Eles não estão emergindo com uma inclinação autoritária, antipopular, antidemocrática; ao contrário. Tudo isso que estamos vendo apenas em botão, vai amadurecer muito lá na frente, especialmente no processo eleitoral.
Uma liderança política emergente como esse jovem apresentador de televisão, o [Luciano] Huck, aparece preenchendo teses autoritárias? Não. Seu discurso é o da redistribuição de renda, da democracia política, da força das instituições. Sei lá se ele vai vingar como político – espero que sim. Mas há outros que estão vindo na mesma direção, porque na verdade há um movimento das coisas atuando na sociedade que propicia a emergência da novidade, da nova personalidade política e intelectual. Não estamos congelados no tempo.
IHU On-Line – O senhor está otimista com o futuro e com possibilidades de mudança a partir das eleições municipais?
Luiz Werneck Vianna – Neste sentido, mas não a curto prazo. O projeto do governo, para avançar, precisava recorrer a um discurso de natureza totalitária, mas vai fazer isso com quem? Não tem material humano para fazer isso. Os militares não estão dispostos a exercer esse papel. Tem aí um bando de intelectuais fora do tempo, anacrônicos, como o Ernesto Araújo, ministro das Relações Exteriores, e Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente, mas essas são pessoas condenadas a uma vida episódica, de borboleta. Eles não estarão aí nos anos que vêm, não têm solo para se instalar, para se reproduzir. Eu estou olhando no longo curso. Não estou dizendo que as coisas vão acontecer agora, mas dizendo o que não pode acontecer, como, por exemplo, o governo investir mais no seu projeto autoritário; tem limites para isso.
IHU On-Line – Qual é a expectativa em relação ao governo neste ano?
Luiz Werneck Vianna – Pelo que entendemos da prática do governo até aqui, ele não vai mudar. Ele vai continuar neste caminho, insistindo na abertura de novas possibilidades para uma sociedade diferente da nossa: ele quer destruir a antiga para construir a nova, para edificar um projeto neoliberal e sujeitar a sociedade a um movimento livre do capitalismo selvagem. Essa é a pretensão do governo: um economicismo primário do ministro Guedes, que entende que a economia é capaz de, sozinha, mudar o mundo. Não é; nunca foi. Ela precisa da política, precisa da sociedade, e só o movimento do mercado não é capaz de trazer a novidade para nós. Mas essa é a marca do governo e ele não vai abandoná-la, porque faz parte do seu DNA.
Estamos, aos poucos, encontrando formas de resistir, e a resistência hoje é diversa daquela que ocorreu nos anos 1960: até agora não se falou – e espera-se que não se fale – em resistência armada. A sociedade teve um aprendizado com isso. A senha para o avanço da direita, para uma sociedade totalitária, estaria numa esquerda que perdesse o rumo, perdesse o tino, mas como isso não ocorreu, não ocorre e provavelmente não ocorrerá, o governo se debate com ele mesmo diante de uma sociedade cada vez mais complexa e diferenciada. Em qualquer circunstância, este é um país difícil de governar.
O Brasil, como disse o nosso grande poeta, não é para principiantes. Esta gente que está aí é principiante. O Guedes não entende nada da sociedade brasileira, se é que ele entende alguma coisa de economia. Ele não sabe qual foi a história do capitalismo brasileiro, a formação da burguesia brasileira, e se recusa a entender o papel que o Estado teve, que a política social teve na imposição do capitalismo entre nós, especialmente no mundo sindical. Através da fórmula corporativa, o sindicalismo foi atraído pela ordem burguesa na era Vargas, de forma harmoniosa; tutelada, mas harmoniosa. Agora, sem o mundo do trabalho, como a economia vai se montar, se edificar? Sem a inovação tecnológica da robótica, da inteligência artificial, como isso vai ficar? Com universidades sem recursos, com uma formação universitária capenga, com um sistema educacional desses? Não vai, não tem como.
Você esboçou que eu estaria otimista. Não é verdade, mas fico olhando e consultando as possibilidades que estão aí e as possibilidades de se constituírem forças alternativas ao que está aí. Isso está acontecendo. É lento? É muito lento. Precisa de calma? Precisa. Paciência, perseverança dia a dia; é uma luta do cotidiano.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
Luiz Werneck Vianna – Estou preparando um curso sobre a teoria política de Hannah Arendt e estou sendo obrigado a viver nos anos 1920, 30, com o avanço do totalitarismo, do imperialismo, que são os temas da autora. Vivo isso também na minha realidade cotidiana, e vivo imerso nessas cogitações. E comparando o momento de hoje com o que foi o advento do totalitarismo, principalmente do nazifascismo dos anos 1930, a nossa situação é completamente diferente. Inclusive, vivemos um tempo em que a hegemonia americana não é mais o que era. Qual é a data disso? O desfecho da crise com o Irã no Oriente Médio e o avanço da China na economia – um avanço dotado de movimentos de irreversibilidade.
A Rota da Seda passa pelo Irã. A influência da política externa no Brasil no que se refere à logística da produção brasileira é apenas o começo da investida da China no nosso mundo. A Rússia está assentada no arsenal atômico monumental, inabalável. O que pode, nesta altura, o exercício do império americano? Ele está cheio de limitações internas.
A questão ambiental pega gregos e troianos, e não há como fugir dela. Ela tem, por natureza, um elemento de correção do capitalismo na sua fisionomia atual. O capitalismo precisa de limites ambientais, sociais e políticos. Acabou-se o tempo do exercício do poder discricionário da economia nas coisas do mundo. É isso que o Guedes não entende. Florações como Guedes, Araújo, Salles, são florações de uma primavera; não resistem à mudança de estação.
13 de janeiro de 2020

As eleições municipais e 2022 (Murillo de Aragão)

Existe uma ansiedade no ar sobre a questão sucessória de 2022. Como se ainda não houvesse três anos pela frente e a agenda em torno do assunto já estivesse posta. Como se o futuro já estivesse escrito, com as reformas avançando, a economia crescendo e o presidente Jair Bolsonaro, dentro do seu estilo, continuando a antagonizar. E por que o debate sucessório está sendo prematuramente trazido ao palco?
Além da questão da agenda dada, existe no ar certo enfado com a “não política” de Bolsonaro. A classe política ainda está se desmamando do presidencialismo de coalizão e o novo modelo até agora não produziu resultados retumbantes. No fundo, existem dúvidas sobre se Bolsonaro será verdadeiramente competitivo em 2022 para tentar a reeleição. Sendo assim, antecipar os movimentos pode parecer inteligente.
No caminho de todos os potenciais candidatos existem as eleições municipais de outubro, que ocuparão um espaço importante na agenda política deste ano. Apesar de as eleições municipais terem como foco questões locais, as disputas nas cidades de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo, ganharão repercussão nacional, podendo fortalecer ou enfraquecer alguns dos protagonistas mencionados.
“As eleições municipais não definem a sucessão presidencial, mas apontam vetores de influência”
As eleições municipais não definem a sucessão presidencial, mas apontam relevantes vetores de influência. Em especial, para os políticos e os partidos mais tradicionais e mais dependentes de máquinas públicas. Em algumas oportunidades, as eleições municipais chegam a antecipar tendências da sucessão presidencial seguinte. Em outras, não.
Em 2000, o PT foi o grande vitorioso nas capitais. Esse resultado, batizado de “onda vermelha”, acabou indicando com antecedência a vitória de Lula na disputa de 2002. Em 2016, tivemos a “onda azul”, com o PSDB se consagrando nas capitais. Já a eleição disruptiva de 2018 acabou não confirmando o esperado potencial eleitoral do ex-governador de São Paulo Geraldo Alckmin (PSDB).
Outra variável interessante destas eleições municipais diz respeito aos atuais atores políticos do cenário nacional. A polarização entre o bolsonarismo e o lulismo vai se manter? O PSDB será bem-sucedido em seu desafiador projeto de se reposicionar no centro? Tais questões, entre outras tantas, só poderão ser respondidas após outubro.
Assim, embora as eleições municipais mantenham os temas regionais no topo da pauta, a repercussão dos resultados saídos das urnas acaba se disseminando por todo o país, principalmente se seus players desde já começam a revelar seus movimentos.
Enquanto o quadro que se desenha neste ano — com crescimento econômico — favorece o presidente Jair Bolsonaro, os demais pretendentes enfrentam desafios adicionais. A esquerda está dividida entre a viabilidade de Luiz Inácio Lula da Silva e a construção de uma nova narrativa. Ciro Gomes, com sua agressividade, afasta potenciais aliados da esquerda e não convence ao centro. Luciano Huck é um projeto de candidato, estimulado por setores da elite, com potencial de crescimento nas classes populares. João Doria e Wilson Witzel ainda dependem de excepcionais resultados em seus estados e de conseguir federalizar suas realizações.
Publicado em VEJA de 15 de janeiro de 2020, edição nº 2669

O Estado que nos educa (Demétrio Magnoli)

Quando o presidente decidiu pontificar sobre livros didáticos, formou-se um pequeno escândalo sobre o periférico. As opiniões de Bolsonaro, boçais como de costume (um “lixo”, “um montão de amontoado de muita coisa escrita”), não movem nenhum moinho.
Já o principal —a promessa de que, a partir de 2021, os livros escolares “serão feitos por nós”— passou como pretensão legítima. Acostumamo-nos com a ideia de que o Estado tem o direito de educar o povo.
Um quarto de século atrás, não era assim. Os livros didáticos postos no mercado pelas editoras eram submetidos à escolha dos professores. Tínhamos uma saudável diversidade de obras, de qualidade bastante desigual, que refletiam as diferentes abordagens teóricas e pedagógicas em voga nas universidades.
O sistema de mercado, porém, excluía a maioria das escolas públicas, cujos alunos não podiam pagar pelos livros. A solução encontrada —a compra pública federal e centralizada— abriu o caminho das salas de aula às ideologias estatais.
Nos EUA, os livros são patrimônio das escolas e passam de uma turma de alunos à seguinte, em longos ciclos. Por aqui, o Estado preferiu estabelecer ciclos curtos de renovação dos livros. De um lado, a cara opção gera óbvios dividendos eleitorais. De outro, prende a indústria editorial de didáticos à órbita do poder público.
O MEC converteu-se no comprador quase monopolista: o verdadeiro patrão das editoras. Nessa condição, adquiriu a prerrogativa de esculpir as narrativas pedagógicas.
Os governos do PT utilizaram esse poder para conduzir uma revolução em marcha lenta, revestida por uma fina película de saber acadêmico. As comissões de “especialistas” formadas nas universidades federais para selecionar obras “de qualidade” foram, regra geral, colonizadas por professores-ativistas.
As análises “técnicas” contaminaram-se de (pre)conceitos políticos. Aos poucos, num processo que jamais se completou, eliminaram-se inúmeras obras “desviantes”.
A revolução escolar atingiu livros de exatas e biológicas —mas, claro, teve impacto maior nos de humanas. Na era pós-Muro de Berlim, um marxismo outonal, diluído em caldos de anti-imperialismo, terceiro-mundismo e multiculturalismo, passou a impregnar a maior parte dos livros de história e geografia.
Siga o dinheiro: as editoras jamais reclamaram —antes, pelo contrário, assumiram o papel de correias de pressão sobre autores recalcitrantes.
As obras “de qualidade” deviam trafegar pelos circuitos do antiamericanismo ritual, da denúncia da “história ocidental”, da idealização romântica da África pré-colonial. A política identitária desceu como uma sombra sobre os textos escolares.
A escravidão moderna passou a ser explicada pela chave do racismo, não pela lógica do sistema mercantil colonial. A campanha abolicionista foi expulsa do palco iluminado da história brasileira. Zumbi dos Palmares transformou-se no ícone absoluto da luta antiescravista.
Confundimos o dever estatal de financiar a educação pública com o poder abusivo reivindicado pelo governo de invadir as salas de aula e moldar o discurso dos professores.
O Estado-Educador é, sempre e inevitavelmente, o Partido-Educador. Na proclamação presidencial de que os livros didáticos “serão feitos por nós”, o “nós” indica o núcleo ideológico que rodeia Bolsonaro.
A obra “suavizada” dos sonhos dessa turma é um manual nacionalista, autoritário e ultraconservador, anticientífico, de fortes colorações religiosas. Nele, evaporariam tanto a ditadura militar quanto as mudanças climáticas e o lugar do evolucionismo seria ocupado pelo criacionismo.
O projeto provavelmente fracassará, pois Bolsonaro carece das redes de legitimação acadêmica conferidas por brigadas universitárias de professores-ativistas. Mas o risco existe, num país que não aprendeu a separar o Estado da sala de aula.
Folha de S. Paulo/11 de janeiro de 2020

O antipluralismo bolsonarista (Cláudio Gonçalves Couto)

Uma das principais referências políticas do bolsonarismo é a Hungria de Viktor Orbán - como já deixou claro em mais de uma ocasião o filho 03, Eduardo Bolsonaro, líder ideológico local do movimento capitaneado pelo pai. Em célebre discurso de 2014, Orbán expressou seu desejo de transformar a Hungria numa “democracia iliberal”, como já o seriam a Rússia de Vladimir Putin e a Turquia de Recep Tayyp Erdogan. Nesses regimes, o apoio plebiscitário de uma maioria ao líder entronizado lhe permite governar passando por cima de eventuais limites.
Assim, restringe-se ou mesmo se elimina a liberdade de imprensa; perseguem-se e até se encarceram opositores; combate-se a independência dos centros de produção intelectual autônoma - como as universidades e as artes; deslegitima-se a oposição, apontando-lhe como formada por traidores da pátria - não existiria, como no Reino Unido, uma oposição “de” Sua Majestade, mas apenas “a” Sua Majestade. O modus operandi da democracia iliberal passa por sufocar as divergências e subalternizar as minorias não alinhadas à linha dominante, personificada pelo líder máximo e amparada plebiscitariamente no apoio de uma maioria baseada em critérios identitários - como valores, etnia, religião ou um conjunto de todas essas coisas.
Liberalismo não é só econômico, mas político e social
O caráter “democrático” das democracias iliberais residiria unicamente em seu plebiscitarismo, na expressão da vontade majoritária em eleições e outras votações nas quais a competição política é prejudicada porque a oposição é sabotada ou reprimida, bem como o debate público aberto é substituído pelo oficialismo dos discursos governamentais e pela retórica voltada a deslegitimar discordâncias. Dessa perspectiva, jornalistas são categoria em extinção e devotada a produzir “fake news”, universidades são lugares de balbúrdia e ideologização, educadores não alinhados são doutrinadores pervertidos, artistas dissidentes são sórdidos e mentirosos, opositores são bandidos e traidores.
Diferentemente de suas antecessoras da antiguidade clássica, as democracias do século XX se notabilizaram por serem, justamente, liberais. Não houve uma única democracia passível de ser chamada por tal nome que não tenha contido o elemento liberal - ou seja, competitivo e limitador do poder. Em sua célebre obra, “Poliarquia”, Robert Dahl observou que os regimes democráticos realmente existentes (chamados por ele de poliarquias), eram a combinação de participação política ampliada (direito ao voto e à elegibilidade) e competição política plural.
O processo de democratização contemporâneo, portanto, significaria avançar em dois eixos de um plano cartesiano: o da participação/inclusão (com contingentes cada vez maiores da população detentores de plenos direitos políticos, tendendo à universalização) e o da liberalização (com uma competição política cada vez mais intensa e diversa). A ideia de poliarquia, portanto, é justamente essa: a do poder plural. Logo, o pluralismo e a competição que dele decorre são características inescapáveis do regime democrático que só é democrático sendo liberal.
Daí se depreende que a ideia de democracia iliberal é um oxímoro, ou seja, uma contradição nos termos. A expressão foi cunhada originalmente por Fareed Zakaria para descrever sinteticamente esses regimes em que competição e pluralismo são suprimidos, dando lugar apenas ao apoio majoritário, seja nas ruas, seja nas urnas. Antes dessa formulação de Zakaria, tecida por ele criticamente a esse tipo de regime, o jurista do Terceiro Reich, Carl Schmitt, já concebia a democracia de forma antipluralista - porém, para defender esse formato. Dizia ele: “Em toda a verdadeira democracia está implícito que não só o igual seja tratado igualmente, mas que, como consequência inevitável, o não igual seja tratado de modo diferente.Portanto, a democracia deve, em primeiro lugar, ter homogeneidade e, em segundo - se for preciso - eliminar e aniquilar o heterogêneo”.
E quem seriam os não iguais, os heterogêneos? Ora, os opositores, os dissidentes, os infiéis, os seguidores de modos de vida dissonantes daqueles da maioria, os críticos à linha dominante. A eles o que cabe? A eliminação e a aniquilação, como apontava Schmitt. Foi o que, durante o Terceiro Reich, se abateu sobre judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e todo tipo “heterogêneo”. É o que pregam hoje os “democratas iliberais” como Orbán, Putin, Erdogan, Maduro e Bolsonaro.
Além dos ataques repetidos de seu governo à imprensa, à comunidade científica, aos professores e aos artistas - estes desferidos preferencialmente por seu lugar-tenente na área cultural, Roberto Alvim - Bolsonaro também deixa claro, repetidas vezes, o viés schmittiano (ainda que provavelmente sem tê-lo lido) de sua concepção de democracia. Disse ele em 2017, na Paraíba: “Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra, que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias”. Contudo, para não irmos tão longe no tempo, tomemos uma declaração de dezembro último, diante do Alvorada: “Não tem essa história de branco e negro. Somos iguais e ponto final. Cultura é para maioria, não é para minoria, não”. Ou pouco antes, em novembro, num culto evangélico em Manaus: “Se nós somos a maioria, por que cedemos à minoria? O senhor é professor de Direito Constitucional, mas eu entendo que a lei tem que ser feita para atender às maiorias e não às minorias. Respeitamos as minorias, mas nós, a maioria, o povo é que deve conduzir o destino de uma nação”.
Equiparando povo à maioria, Bolsonaro exclui os grupos minoritários da condição de membros desse povo, vedando-lhe a legitimidade de participar da condução dos destinos da nação. O respeito às minorias aí enunciado torna-se, portanto, mera escusa retórica: respeitamos as minorias, desde que caladas e subalternas. Essa é a própria negação do pluralismo, que não respeita apenas minorias caladas e submissas, mas considera legítimos também seus pleitos e é capaz de conviver com a diversidade.
Valor Econômico/9 de janeiro de 2020

Bolsonaro e o déficit da Presidência (Carlos Andreazza)

Basta de mistificação. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha — o maldito fundão — é lei. A de número 13.487, de 2017. O texto, no artigo 16, é explícito: o “Fundo é constituído por dotações orçamentárias da União em ano eleitoral (...)”
Repito: é lei. Já foi sancionada. Não está em debate. E nada tem a ver com Jair Bolsonaro. É matéria impessoal. Qualquer proposta de orçamento em véspera de ano eleitoral deverá contemplar previsão para aquele fundo. Seria assim — igualzinho — se Fernando Haddad tivesse vencido. Se cabo Daciolo estivesse na Presidência: seria assim. Será assim, novamente, em 2021. Qualquer que fosse (for) o governo precisaria (precisará) incluir destinação de valores para este fim. O governo Bolsonaro o fez. E enviou ao Parlamento.
A discussão ora havida — uma polêmica artificial estúpida, que investe na confusão e escapa do que importa — é sobre o valor dessa dotação; e sobre se o presidente pode ou não vetá-lo. Lembremos... Depois de muita atividade legislativa, e do surgimento influente da ideia de elevar o montante para cerca de R$ 4 bilhões, o Congresso — dobrado pela reação da sociedade — por fim definiu a tunga em pouco mais de R$ 2 bilhões, a mesma quantia prevista pelo governo; ou seja: por Bolsonaro. Ele poderia vetá-la? Sim. Para que não reste dúvida: sim, poderia vetar o valor estabelecido.
A pergunta é outra, contudo: que sentido faria o presidente vetar uma dotação que ele mesmo propusera?
Nenhum. Né? Mas é aí, na ausência mesmo de razão, que começa a enrolação; a vergonhosa manipulação dos fatos e do que versam os códigos pelo presidente e seus bate-paus. Um padrão já mapeado e que se baseia na mentira como método — mentira logo instruída e ministrada via WhatsApp etc. Bolsonaro mente. Quer se desvincular, para efeito de percepção popular, do sistema de que faz parte e — sempre criminalizando a atividade política — empurrar a responsabilidade exclusivamente contra o Parlamento. Foi assim, em grande medida, que erigiu a eficiente farsa de sua persona antiestablishment.
O presidente mente como estratégia, para testar o campo, para medir apoios, para aferir o pulso dos seus. Mentir, desinformar — é como compreende “preparar a opinião pública” para quando, afinal, sancionar a dotação bilionária para o fundão. Bolsonaro precisa enganar — ou tentar — porque um de seus pilares de sustentação mais importantes, aquele (instável) lavajatista, é hostil à estrutura partidária (à democracia representativa) e aos mecanismos públicos de financiamento dessa máquina. Daí por que jogue para sua rede que, se vetasse aquela linha do orçamento, incorreria em crime de responsabilidade — um gatilho para que, segundo sua versão, fosse vítima de um processo de impeachment. Pura balela. Ou teríamos o incrível evento do crime de responsabilidade em decorrência de infração à lei inexistente...
A lógica elementar aterra a cultura da desinformação difundida pelo próprio Bolsonaro: se a lei está para ser sancionada, é claro que pode ser vetada. Se está para ser sancionada, e se pode ser vetada, lei vigente ainda não é. Oh!
Vetar é prerrogativa do presidente. Vetar é opção legítima plenamente assegurada à função de chefe do Executivo; aquele que decide — que precisa decidir — e cujas decisões não raro deságuam em impopularidade. Se, porém, neste caso, dado o histórico de seu discurso contrário ao que representa o tal fundo, vetar — decidir — significa também o risco de ser entendido (pelos seus) como cometendo estelionato eleitoral, e se esse é (e é) um grande dilema (paralisante) para Bolsonaro, um governante que só sabe se comportar como candidato em campanha, eis o que sobra (inclusive aos que não lhe votaram): a expressão de um presidente cujo déficit de Presidência é alarmante.
Eis o que falta: um governante capaz de explicar à população de que maneiras a lei o limita e obriga, e por que, afinal, caímos nessa arapuca de financiamento público de campanha eleitoral. Esse que sempre foi o maior problema; o erro fundamental, o que importa aqui e do qual toda a mistificação corrente deriva: aquela ocasião, ainda em 2015, quando o STF — legislando, jogando para a galera, e festejadíssimo por muitos entre os que hoje praguejam contra o fundão — declarou, sem avaliar consequências, sem estudar qualquer possível modulação, sem pensar em aperfeiçoamentos do modelo, a inconstitucionalidade do financiamento empresarial de eleições.
Dinamitou-se o prédio sabendo que outro teria de ser erguido ali — e sem qualquer projeto de edificação para ocupar o terreno, o que costuma resultar em engenharia pior, paraíso para a construção de um puxadinho.
O que os bem-intencionados pensavam que viria no lugar?
O problema — toda a desgraça — não está em quanto de dinheiro público será gasto para bancar eleição; mas que eleição, no século XXI, seja bancada por dinheiro público.
O Globo/7 de janeiro de 2020

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Que centro é este? (Cláudio Gonçalves Couto)

2019 foi marcado pela discussão sobre a polarização que marcaria nossa política. Frequentemente, o termo foi tomado como sinônimo de extremismo ou radicalização política. Polarização não tem a ver com isso, mas com a contraposição de alternativas políticas claras. É assim que historicamente Democratas e Republicanos polarizam a política nos EUA, Conservadores e Trabalhistas no Reino Unido, Socialistas e Republicanos na França.
No Brasil, entre os anos 90 e 2014, a polarização foi entre um partido social-liberal (o PSDB) e um social-democrata (o PT). Na medida em que o PT caminhou para o centro, deslocou o PSDB para a direita, configurando uma típica polarização centro-esquerda/centro-direita, cujo centrismo foi acentuado nos dois casos pela necessidade de coalizões. Assim, o vermelho oposicionista do socialismo petista se debotou, assumindo tons rosados no governo, enquanto o social-liberalismo tucano se tornou menos social e mais liberal, primeiro pela imposição das reformas econômicas, depois pela oposição ao adversário à sua esquerda, o PT.
As jornadas de junho de 2013, a Lava-Jato, o impeachment e o impopular governo de Michel Temer mudaram as coisas. Muito enfraquecido num primeiro momento (como se notou nas eleições municipais de 2016, quando perdeu 60% de seus prefeitos), o PT recuperou algo de sua força depois, chegando ao segundo turno das eleições presidenciais e fazendo a maior bancada na Câmara. Com isto, manteve-se como um polo da disputa, sendo o ator principal à esquerda do espectro nas eleições nacionais.
Contudo, à direita, o PSDB (associado ao governo Temer e ao establishment) minguou, culminando no vexaminoso desempenho de Geraldo Alckmin na disputa presidencial e na redução das bancadas congressuais do partido. O eleitorado à direita, que votava no PSDB (ou contra o PT) desde os anos 90, migrou para Jair Bolsonaro e deu ao PSL a maior votação para a Câmara de Deputados. Mesmo nas disputas estaduais, deram-se bem candidatos que se alinharam ao bolsonarismo durante a eleição, como Wilson Witzel no Rio de Janeiro e João (Bolso)Dória em São Paulo. Criou-se uma nova polarização, entre uma esquerda socialdemocrata momentaneamente mais estridente e uma extrema-direita oriunda da margem do sistema político.
Nos anos 50 do século passado surgiu um teorema que tentava explicar o comportamento do eleitorado em tais polarizações, em eleições majoritárias. Esboçado inicialmente por Dunkan Black (“On the rationale of group decision-making”) e depois aprimorado por Anthony Downs (Uma teoria econômica da democracia), o “teorema do eleitor mediano” supõe que o eleitorado apresenta uma distribuição normal entre esquerda e direita, concentrando-se a maior parte dele ao centro. Desse modo, o idealizado eleitor mediano (aquele localizado a meio caminho entre cidadãos dos dois lados do espectro ideológico) seria o votante a ser conquistado, pois o competidor à esquerda já teria garantida a maioria dos votos à esquerda do mediano, enquanto o competidor à direita teria a maioria dos votos do seu lado. A dinâmica dessa competição levaria esquerdistas e direitistas a caminharem para o centro, em busca do voto decisivo, moderando-os.
O teorema faz bastante sentido e ajuda bem a entender a lógica das eleições e dos partidos em cenários nos quais de fato o eleitorado se distribua em duas metades praticamente iguais, na forma de uma curva normal simétrica da esquerda à direita. Porém, por vezes a distribuição se torna assimétrica e o eleitor mediano se desloca consideravelmente para um dos flancos do espectro ideológico, carregando para ali a maior parte do eleitorado. A vitória de Bolsonaro no segundo turno mostrou que em 2018 o eleitor mediano se deslocou bastante para a direita, explicando a debacle do PSDB já no primeiro turno: o antipetismo tucano se mostrou insuficiente para grande parte dos votantes, que preferiram um candidato mais radicalmente antagonista ao petismo. E como Bolsonaro se apresentava como alternativa radical não apenas ao esquerdismo petista, mas também ao establishment político de um modo geral (em que se enquadrava o PSDB), levou consigo a maioria.
Hoje, após um ano de governo, com suas peripécias e confusões, parte do eleitorado se vê assustada com o bolsonarismo e seu radicalismo, que não arrefeceu após a vitória eleitoral, como supunham alguns. No outro polo (o que não é o mesmo que dizer no outro extremo), a esquerda petista mantém o discurso e a postura que alienaram boa parte de seus eleitores, desapontados com o desastre econômico do governo Dilma, com os escândalos de corrupção e com a incapacidade de uma transformação. Desse modo, surgiu espaço para um denominado (e autodenominado) “centro”, que procura se apresentar como opção tanto ao petismo como ao bolsonarismo. Há aí um pouco de tudo.
Parte desses centristas não são nada novos. São o “Centrão”: conglomerado de partidos de adesão e políticos de viés conservador e fisiológico, dispostos a apoiar quaisquer governos, desde que recompensados com cargos, verbas e políticas para os segmentos que representam corporativamente. Estes, porém, dificilmente articulam candidaturas presidenciais.
Outra parte é uma nova direita pós-tucana, de discurso conservador, liberal quase só economicamente, antipolítico, focado na ideia de gestão pública como gerencialismo, e na segurança pública como guerra - como o Bolsonarismo. Dória e Witzel estão aí.
É desse campo que também surge Luciano Huck, com seu antipetismo visceral, postura de moderno e liberal também politicamente (não só na economia), vindo de fora da política para renová-la. Talvez seja, dos três, o mais efetivamente centrista - já que os outros são claramente direitistas.
Por fim, até Ciro Gomes tenta ocupar esse espaço, à centro-esquerda. Começou na eleição, desvinculando-se do PT, e seguiu depois, atacando petistas sempre que possível. Resta saber se além de alienar o eleitorado à esquerda, conseguirá convencer centristas. Não será fácil.
Valor Econômico/2 de janeiro de 2020

2020: um país com menos raiva? (Fernando Schüler)

Elena Landau disse algo interessante, em uma entrevista recente. Não dá pra ser um liberal pela metade. Isto é, defender a liberdade econômica, mas ser avesso às liberdades no terreno da cultura e dos costumes.
Acho que a Elena quis dizer o seguinte: no plano pessoal, você pode professar a religião que quiser e escolher o tipo de vida que deseja levar, desde que isto não danifique a liberdade dos outros. O que você não pode é usar a força ou recorrer ao Estado para promover suas crenças, sejam elas ligadas ou não à religião.
Não é pouca coisa. Ronald Dworkin escreveu um belo texto, fruto de uma conferência dada no Metropolitan Museum, em Nova Iorque, em que se pergunta se um Estado liberal pode apoiar as artes. Sua resposta é sim, mas com uma condição: apoiar de um modo geral, sem tomar partido por esta ou aquela corrente estética ou visão de mundo.
A Lei Rouanet sempre pretendeu agir desse modo, e não sei se sempre conseguiu. De qualquer maneira recomendo a leitura do texto de Dworkin para o pessoal que lida com cultura, hoje no país.
Essas coisas vão longe. Um estado liberal deveria impedir a ideologização de livros didáticos, deveria proibir o governo de fazer propaganda de si mesmo ou de seus projetos com dinheiro público, deveria se abster de comandar emissoras de comunicação ou escolher a escola em que os pais devem matricular os filhos. E não deveríamos ser obrigados a votar. A lista é longa, e é certo que estamos muito longe disso, aqui pelos trópicos.
Este tema emergiu com força, no Brasil, com a polêmica envolvendo o filme de final de ano do Porta dos Fundos, com o Jesus gay. Afora toda a conversa fiada em torno do filme, que no final imagino lhe ter dado ótima publicidade, a pergunta que ficou no ar é bastante direta: caberia ao Estado fazer alguma coisa para proibir o filme? Há algum delito sendo cometido ali?
Fábio Porchat escreveu um artigo dizendo o seguinte: a lei divina vale para os indivíduos, não para o país. Cada um pode ter a sua própria lei divina. O sujeito pode, inclusive, proclamar a si mesmo como o autor da referida lei (está cheio por aí, em particular nas redes sociais), mas os outros tem direito de zoar do jeito que quiserem. Entendi que o limite que não pode ser ultrapassado é o da violência: pode esculachar, ridicularizar, mas não invadir terreiro, jogar coquetel molotov e coisas do tipo.
O ponto é que, numa sociedade liberal, o critério deve valer para todos. Não dá pra fazer uma listinha e dizer: você pode zoar esses grupos, sejam regionais, étnicos, comportamentais, religiosos, o que for, e esses outros aqui, na coluna da esquerda, você não pode.
Foi por essas razões que os americanos consagraram, ao longo do tempo, a Primeira Emenda à Constituição. O Congresso não criará leis restringindo a liberdade de expressão. Ponto. Imagino que seja um pouco isso que o Fábio queira dizer. Pode zoar todo mundo, sem problemas, só não pode chutar a santa.
O Brasil anda muito longe disso tudo. E não apenas por um problema legal. A revolução digital fez explodir, no mundo da política, o fenômeno das guerras culturais. Passamos a imaginar que alguém, algum grupo de opinião, alguma vertente religiosa, ideológica ou estética vai ganhar o jogo e pautar a vida pública em uma grande sociedade plural, como a brasileira.
Não vai. Essa é a boa notícia. A má notícia é que as pessoas continuarão tentando. A guerra cultural é uma dança sincronizada de pequenos donos da verdade, que se retroalimentam, e a grande ilusão é imaginar que eles pertencem a este ou aquele lado do espectro político.
Sempre acho graça do sujeito que se apresenta como paladino da democracia, campeão da tolerância, da “compreensão do outro”, mas que não pisca o olho pra sair chamando de fascista, e daí para baixo, a quem diverge, mesmo que no detalhe, de sua pequena lei divina de todos os dias.
Não sei se isso irá mudar, algum dia, ou é um fenômeno que veio para ficar, na democracia digital. De qualquer jeito, meu desejo para 2020 é o de um país com menos raiva, que vocifere menos e vá aprendendo devagarinho a rir um pouco mais de si mesmo.
Folha de S. Paulo/ 2 de janeiro de 2020


Sobrevivemos (?) (Bruno Carazza)

Adeus ano velho, feliz ano novo... À medida em que os acordes de “Fim de Ano”, a valsa composta pelo jornalista David Nasser e pelo “Rei da Voz” Francisco Alves, se aproximam, é hora de fazer um balanço do ano na política brasileira.
A eleição de Bolsonaro sobre 2019 lançou uma série de dúvidas: Estaria nossa democracia em risco? Nossas instituições estariam preparadas para resistir a um governo com forte inclinação autoritária? A polarização política seria radicalizada a ponto de forçar uma ruptura institucional?
Em 1978, o cientista político Juan Linz criou um checklist com quatro grupos de indicadores para atestar comportamentos autoritários de políticos que poderiam levar ao colapso de regimes democráticos - esses parâmetros constituem a base para o best-seller “Como as Democracias Morrem”, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, lançado em 2018.
Tomando por base os discursos, vídeos e postagens de Jair Bolsonaro nas redes sociais não era difícil enquadrá-lo como um forte candidato a tiranete seguindo a tabela de Linz. Não foram poucas as ocasiões em que o ex-capitão fez apologia à ditadura militar e questionou a legitimidade do processo eleitoral, lançando dúvidas sobre as urnas eletrônicas (condição nº 1 - “rejeição das regras democráticas do jogo, ou compromisso débil com elas”) e tratou seus adversários como criminosos (condição nº 2 - “negação da legitimidade dos oponentes políticos”).
Quanto à condição nº 3, o apoio à disseminação das armas e o elogio à brutalidade das forças policiais e até mesmo à ação de milícias eram sinais claros de seu posicionamento de “intolerância ou encorajamento à violência”. Por fim, a distribuição maciça de fake news e as frequentes ameaças à imprensa e a ONGs fechavam o ciclo (condição nº 4 - “propensão a restringir liberdades civis de oponentes, inclusive a mídia”). A eleição de Bolsonaro, portanto, teria sido o ápice de um processo que Levitsky e Ziblatt denominaram de “abdicação coletiva”, em que a sociedade elege um líder que flagrantemente põe em risco a democracia.
A disposição de Jair Bolsonaro ao confronto é marca de sua trajetória política, desde os tempos de suas insubordinações no Exército. Não seria de se esperar comportamento diverso uma vez investido no cargo mais alto da República. Já na primeira vez em que se dirigiu à população, no parlatório do Palácio do Planalto, Bolsonaro abriu sua fala anunciando que naquele momento “o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”.
Uma vez empossado, o presidente tratou de levar adiante várias de suas bandeiras ideológicas no que se refere ao uso de armas, meio-ambiente, cultura, participação social e liberdade de imprensa. Com dificuldades na articulação no Congresso, Bolsonaro frequentemente se valeu de medidas provisórias e decretos para tentar impor essa agenda - e acabou encontrando resistência nos partidos de oposição, no Supremo, no Congresso e também na opinião pública.
Desde a redemocratização nenhum presidente sofreu tantos questionamentos no STF quanto Bolsonaro. Apesar de débil no Congresso, a oposição manobrou bem os instrumentos jurídicos para questionar a constitucionalidade de atos normativos emanados do Palácio do Planalto. Ao longo de 2019, Bolsonaro respondeu a 58 ações diretas de inconstitucionalidade contra decretos, MPs e portarias - para efeito de comparação, Temer sofreu 14, Dilma duas e Lula cinco no primeiro ano de governo.
Algumas dessas ações já deram resultado, ainda que parcial, como na reversão liminar do decreto presidencial que reduziu a participação da sociedade civil em conselhos de políticas públicas. Em outros casos não diretamente relacionados a seus atos, o Supremo também impôs derrotas seja à visão de mundo bolsonarista (no caso do enquadramento da homofobia como crime de racismo), seja às práticas de seu núcleo mais próximo (na autorização do compartilhamento de informações financeiras entre os órgãos de controle).
A famosa “opinião pública”, expressa pela imprensa e cada vez mais pelas redes sociais, também estabeleceu limites a comportamentos autoritários do presidente, como na sua intenção de “comemorar” o golpe de 1964, na nomeação de figuras controversas para postos-chave em ministérios e na revogação do edital que excluiu a “Folha de S.Paulo” em licitação do Palácio do Planalto, entre tantos outros recuos.
No entanto, nenhuma instituição foi tão bem-sucedida na reação à vontade de Bolsonaro quanto o Congresso Nacional. Deputados e senadores bloquearam a aprovação de medidas provisórias motivadas pela intenção de enfraquecer financeiramente a imprensa e os sindicatos, votaram a favor da derrubada de decretos que enfraqueciam a transparência e flexibilizavam o porte de armas, demonstraram que teriam força para derrubar a indicação de Eduardo Bolsonaro para embaixador nos Estados Unidos, aumentaram seus poderes no processo orçamentário e derrubaram dezenas de vetos presidenciais.
A atuação do STF e do Congresso ao barrar medidas de Bolsonaro não quer dizer que tudo o que saiu de ambos foi positivo para o país (tivemos importantes retrocessos na agenda contra a corrupção vindos das duas Casas, por exemplo). Também não podemos nos esquecer que tanto o parlamento quanto o Supremo contribuíram de forma significativa para agenda positiva que muito beneficiará o governo Bolsonaro no futuro próximo, como no caso das privatizações e da reforma da Previdência. A recuperação da economia, aliás, desponta como tábua de salvação para as pretensões eleitorais do presidente em 2022, embora sejam bastante preocupantes os estragos de sua inação nas áreas de educação, meio-ambiente e relações internacionais.
Sob as lentes distorcidas do retrovisor, as instituições brasileiras parecem ter desempenhado bem seu papel de conter os arroubos antidemocráticos de Bolsonaro em seu primeiro ano de governo. Resta saber até quando manterão essa disposição. Que venha 2020!
Valor Econômico/30 de dezembro de 2019