segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Por que o centro não existe (Fernão Lara Mesquita)

Esse nada do bolsonarismo x lulismo em que andamos vagando é o resultado da vitória da censura. A razão de ser do bolsonarismo é o lulismo e a razão de ser do lulismo é o bolsonarismo. Um existe como a negação do outro e os dois se equivalem e se anulam.
O diabo é que o centro não existe porque não sabe o que querer. Os social-democratas, portadores da síndrome do “renegado Kautsky”, nunca se livraram do “pecado original” que lhes permitiria existir por si mesmos. São a eterna sombra da esquerda antidemocrática dona do corpo que a produzia e que agora está morta. E os liberais made in Brazil simplesmente não têm no mapa a vasta planície que existe entre os dois abismos que assombram seus sonhos, o da presente iniquidade institucionalizada e o da anomia em que temem que o País caia se sair disso para o que lhes parece território incerto e não sabido. Faltam escola e jornalismo que dê a conhecer a ambos a hipermapeada solidez e a lógica prosaica da alternativa democrática real em funcionamento no mundo que funciona.
O Brasil das vilas perdidas do sertão que, no seu isolamento, tiveram de se auto-organizar para prover todas as suas necessidades praticou por 300 anos a “democracia dos analfabetos”, elegendo com pacífica e ininterrupta regularidade as lideranças da sua organização para a sobrevivência. Mas foi subitamente arrancado dessa sua “americanidade”. Tiradentes foi o último impulso de descolamento das velhas doenças europeias emitido por esse nosso DNA histórica e geopoliticamente democrático antes de elas passarem a nos ser instiladas de dentro, a partir de um Rio de Janeiro que purga até hoje o trauma do estupro em plena adolescência por uma monarquia decadente e corrupta no momento mesmo em que a democracia ensaiava os primeiros passos da sua terceira caminhada pelo planeta. Desde então temos sido cirurgicamente excluídos da trajetória dela...
O governo bipartido entre os Bolsonaros e o time de Paulo Guedes e Cia. corporifica essa dualidade. Ele é o filho tecnocrático importado, mas órfão do pai político e ideológico que o fez nascer nas democracias que fixaram a inviolabilidade da pessoa como o ponto de partida e de chegada de todas as ações do Estado e a hegemonia da iniciativa individual sobre a pesporrência de uma “nobreza” corrupta na busca da felicidade geral da Nação. Falta a humildade para importar o pai da experiência humana para a experiência brasileira, como têm feito os asiáticos e o resto do mundo que vai pra frente.
A ciência moderna só pôde estabelecer-se a partir do momento em que o dogma imposto pelo terror da “ira divina” passou a ser “protestado”. Mas onde a Contrarreforma, armada da Inquisição, fincou pé os “terraplanistas” da política seguem com sua furiosa campanha contra as vacinas institucionais que há mais de 200 anos fazem despencar a incidência de miséria onde quer que sejam aplicadas.
O Brasil é refém de um “Sistema” fechado em si mesmo, ancorado num passado que está morto e hermeticamente blindado contra qualquer eflúvio de renovação. E o monopólio da oferta de candidaturas ao eleitorado atribuído aos partidos políticos, recém debatido no STF, é a peça fundamental dessa blindagem. Nada na nossa ordem partidária e eleitoral tem o propósito de reproduzir fielmente o País real no País oficial, o pressuposto básico da constituição de uma democracia representativa. O único objetivo do “Sistema” é autorreproduzir-se e prevenir a ferro e fogo qualquer hipótese de surgimento de concorrentes.
Que os seus sumos sacerdotes fulminem qualquer dissidência no altar do STF com a invocação da letra da sua própria lei e os seus inquisidores eletrônicos corram o reino prometendo o fogo do inferno a quem ousar desafiá-la não põe nada de novo sob o sol. Toda igreja, da primeira à última, acenou com o seu céu para impor o seu inferno. Mas quando ouço a afirmação de que candidaturas avulsas seriam “obras individuais” que “atentam contra a democracia representativa e o Estado Democrático de Direito” tento convencer-me de que se trata apenas de um equívoco acaciano e não consigo.
Tais candidaturas seriam atentatórias ao Estado de Direito se, como os nossos partidos, fossem sustentadas pelo Estado à revelia do que pensam delas os eleitores. Posta num contexto histórico então essa condenação emparelha, em matéria de anacronismo, com a afirmação em pleno terceiro milênio de que a Terra é plana e o resto do Universo é que gira em torno dela. Afinal, a própria Constituição de 88 confessa seu dolo “ao exigir filiação partidária e fazer depender o exercício do direito de se candidatar de uma aceitação prévia de seus pares”, e não da aceitação prévia dos eleitores, como acontece em todas as democracias sem aspas, que não apenas aceitam e incentivam candidaturas avulsas independentes, como também, para prevenir a apropriação indébita da vontade do povo, da qual todo poder emana, impõem aos partidos regras internas permeáveis de apresentação de candidaturas a serem decididas em eleições prévias diretas.
A cura do Brasil, assim como historicamente se deu com outras democracias que se curaram antes da nossa, passa necessariamente pela instituição de eleições distritais puras, as únicas a proverem uma identificação à prova de falsificações entre representantes e representados, pela aceitação de toda e qualquer candidatura que o povo chancelar, pela despartidarização completa das eleições municipais, tanto porque não faz sentido misturar ideologia com a gestão técnica da infraestrutura das cidades quanto para encurtar o espaço dos proprietários de partidos políticos, pela imposição de primárias diretas das eleições estaduais para cima e, finalmente, pela instituição dos direitos de recall, referendo e iniciativa legislativa para os eleitores manterem seus representantes sob rédea.
Isto porque – é claro como o sol! – democracia existe quando é o povo quem manda. Na outra ponta estão as venezuelas e as cubas da vida. E no meio, isto é, no nada, boia o Brasil junto com outros náufragos.
O Estado de S.Paulo/17 de dezembro de 2019

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