Há pouco, participei de uma conferência internacional no Marrocos. Num dos painéis, dedicado à crise das democracias, uma jovem expositora, líder de uma ONG indiana, foi indagada sobre as iniciativas do governo de Narendra Modi. Ela circundou a pergunta, optando por um discurso ensaiado. Mencionou estatísticas acerca das carências da população jovem do mundo e, quase aos gritos, proferiu sucessivas exigências iniciadas sempre pela frase “Nós temos o direito” —a isso, aquilo e aquilo outro.
O “nós” da expositora significava “nós, jovens do mundo todo”. Ninguém a elegeu como representante, mas ela pratica o discurso identitário, esporte da moda. A reivindicação de direitos pertence à tradição democrática moderna, responsável pela progressiva ampliação dos direitos políticos e sociais.
Contudo, sua autoproclamada representatividade pertence a uma gramática autoritária pós-moderna. Justamente por exibir-se como porta-voz de uma vasta e heterogênea parcela da humanidade, a jovem não aceita inscrever suas reivindicações no campo das complexas transações políticas da democracia. Os berros da esquerda elegem a direita.
A revista Time nomeou Greta Thunberg personalidade do ano. A adolescente sueca acredita na ciência, ao contrário dos negacionistas que governam os EUA e o Brasil. Porém, como a jovem indiana, despreza a política, classificando tudo que fique aquém das exigências máximas do movimento ambientalista como “palavras vazias”.
Nos EUA, Trump aposta sua reeleição no “país profundo” do carvão e do petróleo. Na França, Macron tentou estabelecer uma taxa verde sobre os combustíveis fósseis, mas teve que recuar diante da pressão dos coletes amarelos. Na COP-25, não se obteve nem um acordo sobre o mercado de carbono. Greta fala só para convertidos.
Corbyn anunciou a “Revolução Industrial Verde” do Partido Trabalhista num encontro com Greta. O líder britânico joga em diversas posições. Anos atrás, enaltecia Hugo Chávez e flertava com a versão esquerdista do antissemitismo. Seu manifesto eleitoral radical, junto com suas ambiguidades sobre o brexit, provocou a maior derrota trabalhista desde 1935.
Os trabalhistas ganharam a adesão entusiasta da juventude urbana de classe média, mas romperam o diálogo com a massa de eleitores que rejeitam a velha fórmula econômica estatizante. A esquerda dura e pura elegeu um governo nacionalista, xenófobo e antieuropeu.
A esquerda americana inspira-se nos conceitos de Corbyn e no método discursivo de Greta. Os pretendentes democratas Bernie Sanders e Elizabeth Warren recusam a ideia de reforma imigratória, em nome da descriminalização da imigração ilegal e da abolição da agência nacional imigratória.
Também querem educação superior gratuita para todos e a anulação universal das dívidas de créditos estudantis. A deputada Ocasio-Cortez, ícone da ala esquerdista, rotulou a proposta de expansão dos subsídios educacionais apenas para os menos ricos, formulada pelos pré-candidatos moderados, como “conversa fiada republicana”.
A catástrofe trabalhista britânica não abalou os ativistas americanos. Presos às bolhas das suas redes sociais, eles engajaram-se na missão de torpedear os candidatos democratas capazes de conversar com os eleitores do Cinturão da Ferrugem que derrotaram Hillary Clinton em 2016. Sua chapa dos sonhos é Sanders/Warren, os heróis tribais dos campi universitários. Trump, não por acaso, acalenta o mesmo sonho.
Folha de S. Paulo/21 de dezembro de 2019
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