A nova e confusa direita brasileira alimenta seus antagonismos e combates contrapondo-se a inimigos ideológicos velhos de mais de meio século. Enquanto se prepara para governar em nome de concepções políticas ultrapassadas, fora de seus domínios surgem novas e sutis formas de compreensão das contradições e antagonismos sociais. As sociedades mudam mesmo depois de mudar. Outras formas de ação política emergem.
São fortes os indícios de que o novo sujeito social das tensões e enfrentamentos políticos já não é nem mesmo a rua, cujo potencial pode ter se esgotado nas manifestações antipetistas que ganharam corpo a partir de 2013. As eleições de 2018 podem ter posto fim à eficácia desse tipo de luta política.
O novo sujeito da ação emerge, no mundo neoliberal, da indignação moral da aparentemente irrelevante figura do consumidor, uma variante dos que se expressaram nas ruas e nas redes sociais. É aquela que sob a passividade anestesiante da sociedade de consumo não se rende à desumanização e à coisificação que decorrem do primado da mercadoria e do dinheiro na vida do homem comum e moderno. Uma insurreição silenciosa vai se esboçando.
A atenção popular vê coisas que economistas, empresários e empresas não veem. Caso recente foi o da cachorrinha violentamente morta pelo segurança de um supermercado, de Osasco, de famosa rede internacional. Tudo motivado pela subserviente "limpeza de área" em virtude da próxima visita de diretores da empresa.
Nos protestos à porta do estabelecimento e em manifestações similares diante de outros estabelecimentos da rede, em outros pontos do país, ficou evidente que a relação entre o cliente e a empresa é bem diferente da relação entre a empresa e o cliente. O que não tem sentido para aquela tem sentido para este. O que para aquela se esgota no ato puramente econômico e lucrativo da venda de um produto, para este se desdobra para além da mera compra e ganha sentido na própria circunstância da relação de compra e venda.
Ao comprar o cliente não se vende. Espera de quem lhe vende a reciprocidade moral própria de uma relação que para ele não é mera relação econômica, mas sobretudo relação social. O que é um ato racional para quem vende, para quem compra o ato está sujeito a crítica social em decorrência das irracionalidades que contém. As que não são percebidas nem previstas por quem reduz a compreensão da relação de venda e compra ao afã do ganhar sem atenção às circunstâncias invisíveis, sociais, do ganho.
Estamos em face do que o historiador inglês Edward P. Thompson definiu como "economia moral". A Revolução Francesa começou assim, um protesto contra o preço do pão, e rapidamente aglutinou outras inquietações, sociais e filosóficas. Mesmo a França de agora treme sem saber o porquê.
O caso da cachorrinha é apenas um indício de anomalias que ganham sentido na nova circunstância política. Outro foi o do caso noticiado do empresário que impôs a seus funcionários que perfilhassem a candidatura da direita, que acabaria vencedora. Um episódio de violência neoclientelista, que entre nós representa retrocesso às concepções políticas da chamada República Velha, quando não havia diferença entre gado e gente, como diz o poeta. Há enorme diferença histórica, que muitos não percebem, entre empresário e capataz ou feitor.
O que foi a decisiva marca da dominação política retrógrada, antirrepublicana e antidemocrática, do clientelismo sertanejo, dos ermos e grotões, renasceu agora em setores supostamente modernos da economia brasileira. Em conexão com os abusos e em reação a eles, começaram a circular nas redes sociais listas de empresas que estavam apoiando os que personificam o nosso novo autoritarismo.
Nas entrelinhas da violência política, começou a surgir um movimento de busca de novos meios de seu enfrentamento em direção ao boicote a produtos e empresas. Pode não ter sido algo puramente tópico e ocasional. É possível que um novo modo político de atuar esteja em gestação, tendo como referência uma personagem característica da sociedade de mercado e de consumo, que é o consumidor.
Forçada a consumir ideologias partidárias impostas a seus trabalhadores pelos fabricantes dos produtos que consomem, essa nova personagem do processo político não terá como se defender. A não ser impondo às empresas equivocadas a reação de uma atitude ideológica e politicamente seletiva em relação aos produtos que chegam ao mercado indevidamente contaminados por uma atitude pouco empresarial e muito reacionária. Está se esboçando um retorno à prática moral do boicote aos produtos das empresas que se sentem acima da premissa democrática da igualdade e da liberdade de consciência.
Valor Econômico/21 de dezembro de 2018
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