Somos, historicamente, mais propensos à intolerância do que à tolerância, à recusa de ouvir e eventualmente concordar do que à paciência civilizada de ouvir, analisar e compreender. Mais propensos a concordar com os que já pensam como nós mesmos do que a aceitar a legitimidade e a necessidade social, política e humana da diferença, seja a de opinião, seja a de identidade. Somos uma sociedade fechada ao outro sem perceber que nisso nos tornamos redutivos e reduzidos, frágeis e atrasados.
Numa listagem de nossas fragilidades sociais e políticas, vemos que na mediação de suas causas problemáticas está a intolerância. É o nosso tropeço.
Os que se identificam com os partidos políticos corporativos perfilham determinada orientação ideológica menos por convicção racional do que por sujeição e obediência, vontade de ser mandado. No fundo, elementos residuais e carneiris do escravismo brasileiro estão presentes até na política e a presidem.
Não é diferente o cenário em relação às religiões. No geral, os adeptos das novas confissões que se multiplicam no Brasil reduzem a crença mais aos sentimentos do que à doutrina, a fé limitada aos interesses de um grupo de identificação, e não aos horizontes de um grupo de convicção.
Um bom lugar para observar a fragilidade doutrinária das opções religiosas, combinada com sua intensa e poderosa natureza corporativa comunitária, é o das salas de espera de hospitais públicos. Ali, é quase sempre o posto avançado das aflições humanas. E é também o lugar de expressão da "medicina" paralela das crenças dos que se julgam delegados do mandato de converter os ímpios, os que são diferentes, os que tem outras convicções.
Não é incomum que a própria escola se torne o lugar da pedagogia da intolerância, em que a verdade objetiva fica reduzida ao que apenas passa pelo filtro restritivo de ideologias e crenças, o ensino limitado aos ditames da subjetividade de quem ensina. O que pode transformar o professor no protótipo do ditador. Não é estranho, portanto, que à falsa liberalidade dos temas abordados sem a legitimação do primado da família na educação das novas gerações se oponha o autoritarismo igualmente nocivo da tese da escola sem partido, uma tese partidária.
Dos dois lados, uma educação que fui mutilada pelo esvaziamento daquilo que da educação é próprio e do que é propriamente a vocação do educador. Educar é para formar, não para deformar nem para mandar na consciência alheia, sobretudo a das novas gerações. O educador é a pessoa chamada à tarefa dificílima de dialogar com os valores da continuidade, de que a principal depositária é a família, em nome dos valores e da necessidade e até da urgência social da inovação. O requisito básico de sua profissão é o da impessoalidade. Só assim poderá cumprir a tarefa gigantesca de formar os novos filhos da nação, cada vez mais difícil em face do salário insuficiente, da desconsideração e até da violência que dificultam a missão de educar.
Na política, na religião e na educação essas distorções, em nome do comunitarismo transfigurado em autoritário facciosismo, empobrecem-nos como nação e povo. Uma variação local do que Henri Lefebvre, sociólogo e filósofo francês, definiu como "rapto ideológico da concepção de comunidade". Refúgio uterino e primitivo do que, em nosso caso, se expressa na intolerância em relação ao outro e a tudo que desconstrói as pequenas tiranias cotidianas que nos fazem muito menos do que somos.
Estamos alarmados com a violência e social, politicamente abertos ao fascismo e até clamando por ele, como se a questão política fosse uma questão de polícia. Queremos mais violência para combater a violência, até o dia em que descobrirmos que somos elo e agentes da violência que tememos e em algum momento nos vitimará. Somos intolerantes com o outro, mas exigimos que ele seja tolerante conosco, como era no tempo da escravidão. Queremos a mansidão do outro, mas não a nossa. Queremos um poder sem reciprocidade de direitos.
Fala-se muito, e até com razão, na desigualdade no Brasil, a desigualdade limitada ao econômico, a que distingue e separa ricos e pobres. Mas nos esquecemos de que a mais problemática das nossas desigualdades é a social. Se a desigualdade econômica não depende de cada de um de nós, pois ela se impõe a nós a partir de fatores objetivos, a desigualdade social depende de fatores históricos e, em vários e significativos graus, depende de cada um de nós. Ela se nutre de um sistema de valores arraigados por meio dos quais vemos o outro como naturalmente desigual e tratamos a igualdade como um defeito e não como um direito. Intolerantes, nela, o outro não faz parte do nosso nós.
(*) José de Souza Martins é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “A Política do Brasil Lúmpen e Místico” (Contexto).
Valor Econômico
31 de agosto de 2018
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