Uma boa Constituição não basta para fazer que a democracia funcione. A democracia depende de normas não escritas. Duas são especialmente importantes. A primeira é a tolerância mútua, ou a aceitação da legitimidade dos oponentes. Isso significa que, não importa o quanto possamos desgostar de nossos rivais em outros partidos, reconhecemos que eles são cidadãos leais, com direito legítimo a governar. Em outras palavras, não tratamos os rivais como inimigos.
A segunda norma é a indulgência. Indulgência significa abrir mão de exercer um direito legal. É um ato de autocontrole, uma subutilização do poder.
A indulgência é essencial para a democracia. Os políticos têm a capacidade de usar a letra de qualquer Constituição para subverter seu espírito, transformando instituições em destrutivas armas partidárias. Apontar juízes parciais. Conduzir impeachments em base partidária. Excluir candidatos de um pleito por conta de minúcias legais. O professor de direito Mark Tushnet define o método como “jogo duro constitucional”.
Observe qualquer democracia em colapso e verá uma abundância de jogo duro constitucional: Espanha e Alemanha na década de 1930; a Argentina de Perón; a Venezuela na era Chávez; Turquia, Hungria, Bolívia e Equador hoje em dia.
O que impede que uma democracia seja arruinada pelo jogo duro constitucional é a indulgência. É o compromisso dos políticos de exercerem de maneira contida as suas prerrogativas institucionais, sem utilizá-las irresponsavelmente como armas partidárias.
As normas de tolerância mútua e indulgência são as grades de proteção informais da democracia. São elas que impedem que a competição política degringole para o tipo de disputa partidária impiedosa que destruiu as democracias da Europa na década de 1930 e as da América do Sul nas décadas de 1960 e 1970.
A democracia brasileira contava com essas grades de proteção informais, entre 1994 e 2014. O PT e o PSDB competiam vigorosamente, mas aceitavam um ao outro como legítimos. Não se tratavam como inimigos. E os políticos exercitavam a indulgência. Não houve interferência na composição dos tribunais, como aconteceu na Argentina de Kirchner ou na Venezuela de Chávez; não houve impeachments em estilo paraguaio; nem legalização de tentativas dúbias de reeleição por judiciários amistosos, como na Bolívia e Nicarágua.
Mas muita coisa mudou nos cinco últimos anos. À medida que a política se polarizava, a tolerância mútua desaparecia. Muita gente na direita agora vê o PT como ameaça existencial —uma força chavista determinada a se perpetuar no poder. E muitos petistas agora veem seus oponentes como golpistas ou até “fascistas”.
A erosão da tolerância mútua encoraja o jogo duro constitucional. Quando vemos os rivais como ameaça à nossa existência, como chavistas ou golpistas, nos sentimos tentados a usar quaisquer meios necessários para derrotá-los.
É exatamente isso que está acontecendo agora. O Brasil viu um recuo acentuado na indulgência. O impeachment de Dilma não foi um golpe —foi inteiramente legal. Mas representou um caso claro de jogo duro constitucional. Dilma também se engajou em jogo duro constitucional. A indicação de Lula como chefe de sua Casa Civil, para protegê-lo contra processos, é um exemplo.
A exclusão de Lula da corrida presidencial também foi inteiramente legal. Mas os juízes aceleraram o caso, levando a lei aos seus limites. Lula não precisava ter sido condenado antes da eleição. Mesmo que essas ações sejam consideradas como justificáveis, as consequências são perturbadoras: os petistas acreditam ter sido tirados do poder ilegitimamente em 2016 e impedidos ilegitimamente de recuperá-lo em 2018.
No Brasil atual, setores importantes da esquerda e da direita veem uns aos outros como inimigos perigosos. Essa intolerância mútua coloca a democracia em perigo. Quando a política fica polarizada a ponto de vermos rivais como ameaça à nossa existência, o que tornaria sua eleição intolerável, começamos a justificar o uso de meios extraordinários —violência, fraude eleitoral, golpes —a fim de derrotá-los.
De fato, a crença de que o PT é chavista levou muita gente na direita a considerar medidas irresponsáveis. Como, por exemplo, votar em Bolsonaro, o candidato verdadeiramente autoritário que está na disputa, para derrotá-lo. A tolerância quanto a líderes e ações antidemocráticas, em nome de derrotar rivais odiados, ajudou a matar a democracia na Alemanha e Espanha na década de 1930, no Chile em 1973, e na Venezuela no começo da década de 2000.
A polarização nublou as percepções. Nem o PSDB nem o PT são uma ameaça à democracia. Os dois partidos deveriam ser rivais acalorados, mas não inimigos temidos. A verdadeira ameaça é Bolsonaro, e a tentação de apoiá-lo, gerada pelo medo. A centro-direita e a centro-esquerda do Brasil precisam perceber a gravidade da situação antes que seja tarde.
Tradução de Paulo Migliacci
(*) Steven Levitsky é cientista político, autor do livro "Como as Democracias Morrem"
Folha de São Paulo
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