Quando, em 2002, Lula da Silva lançou a Carta ao Povo Brasileiro, o PT reconhecia que a maioria do eleitorado situava-se no centro do espectro político. A disputa pelo centro marcou as eleições cruciais da Nova República: o triunfo de FHC, em 1994, e o do próprio Lula, no ano da Carta. Nada indica que o eleitorado mudou, ao menos no que concerne a valores ideológicos. Mas, paradoxalmente, a campanha eleitoral inicia-se sob o signo da polarização.
A lógica em curso, no horizonte do primeiro turno, organiza-se em torno da disputa pelos extremos. De um lado, Ciro Gomes concorre com Fernando Haddad, o avatar de Lula, por um lugar no turno final. Do outro, Geraldo Alckmin concorre com Jair Bolsonaro pelo outro posto disponível no turno decisivo. Henrique Meirelles, que carrega o cadáver do governo Temer, está virtualmente fora do jogo, embora tire votos preciosos de Alckmin. Marina Silva, que tira votos dos dois polos, e Alvaro Dias, um dreno de votos de Alckmin no Sul, excluíram-se voluntariamente do debate ideológico principal, escolhendo a posição de “candidatos da Lava-Jato”.
A crise terminal da Nova República é o pátio no qual opera a máquina da polarização. O lulopetismo invoca o impeachment como pretexto para interditar a revisão crítica da política econômica que conduziu o país à depressão e a condenação de Lula como álibi para evitar o confronto com o tema da corrupção. A gritaria sobre o “golpe”, que se mantém mesmo depois dos pactos eleitorais com os “partidos golpistas”, forma a moldura de uma plataforma negacionista. Recusando-se a tomar conhecimento do colapso fiscal, Haddad promete um retorno aos “anos dourados”. Sem medo de ser feliz, nadando nas águas mornas do populismo, o corpo substituto de Lula rejeita o teto de gastos, a reforma previdenciária e a reforma trabalhista.
Isso tem implicações. Ciro, ex-ministro de Itamar e de Lula, uma figura que poderia estabelecer uma ponte entre o centro e a esquerda, curva-se à partitura do populismo para pescar no oceano do eleitorado lulista. O candidato do PDT ecoa o discurso do “golpe parlamentar”, namora com anacronismos nacionalistas, compromete-se a reverter os leilões do pré-sal e anuncia que, de algum modo misterioso, numa “carga” contra o Judiciário, resgatará da masmorra o presidiário Lula.
Na ponta oposta, Bolsonaro incendeia o imaginário do autoritarismo populista. O clown da extrema-direita conta histórias sombrias sobre crime e castigo, pecado e salvação, Orcrim e polícia, poder civil e poder militar, liberdade e autoridade, enquanto seu guru econômico entoa a cantiga de ninar do “Estado mínimo”, investindo especulativamente na ignorância histórica e política do “mercado”. A desmoralização da elite política confere-lhe quase 20% das intenções de voto. Em busca desse mercado eleitoral, Alckmin desvia a nau tucana para a direita.
Sob assédio do bolsonarismo, o PSDB troca de pele, substituindo FHC por João Dória. Na marcha da centro-esquerda à centro-direita, o partido faz do antipetismo uma doutrina, renuncia a falar sobre direitos sociais e flerta com o conservadorismo no âmbito dos costumes. Cercado pelo “centrão”, Alckmin perde contato com a classe média urbana e a juventude. Significativamente, não poucos dos quadros históricos tucanos optam pela retirada da cena pública ou procuram alternativas no simulacro de partido criado por Marina.
As engrenagens que produzem a polarização também agravam a crise de legitimidade do sistema político da Nova República. As sondagens registram taxas de rejeição devastadoras para todos os candidatos viáveis (e, inclusive, para Lula). O voto por exclusão, prática normal no turno final, surge como comportamento predominante já no turno inicial.
O eleitorado segue no centro, mas os candidatos escorregaram para as margens do palco político. O cenário espelha um duplo fracasso histórico. Num lado, do PT, que se reduziu à condição de aparato partidário de um caudilho. No outro, do PSDB, que se deteriorou até assumir feições similares às do “centrão”.
O Globo
13 de agosto de 2018
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