Há momentos em que a História parece repetir-se, reavivando vestígios e elementos do passado. Muitas das ações e proposições histórico-políticas, incluídas as extemporâneas, insistem em sobreviver, em prosseguir influenciando e direcionando a intervenção de organizações, movimentos, protagonistas. Karl Marx, ao analisar o fardo de determinadas ideologias e práxis pretéritas no presente, lembrou certa feita que, em muitos casos e ocasiões, “a tradição de (...) gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos”; e posteriormente completou, ao advertir que “somos atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos”.
Uma amostra indicativa desse fenômeno pode ser situada na conduta do Partido dos Trabalhadores (PT) na atual conjuntura. Suas ações e retórica apresentam aproximação e mesmo equivalência às do Partido Comunista Brasileiro (PCB) nos anos 1948-54. Em 1945, no bojo do processo de democratização, o PCB conquistou a legalidade e transformou-se num partido de massas e de caráter nacional-popular.
Chegou a ter 200 mil filiados, adquiriu um porcentual eleitoral significativo, criou uma imprensa com diversos jornais e revistas, conquistou o apoio de extensos setores do proletariado urbano, das camadas médias e da intelectualidade. Fez-se presente na luta pela democracia com uma política de “união nacional, dentro da lei e da ordem, para a consolidação democrática”, assentada num “regime republicano progressista e popular”, como a definiu seu então venerável líder, Luís Carlos Prestes.
O período de legalidade foi, no entanto, curto – os reflexos da guerra fria, juntamente com as pressões de forças conservadoras, acarretaram a ilegalização do PCB (1947). Clandestino e perseguido, isolou-se e adotou uma política sectária, de confrontação e desdém pela liberal-democracia. Enformado por um marxismo dogmático e vulgar, retomou o projeto nacional-libertador com apelo insurrecional. Com uma retórica estridente e intolerante, passou a insultar os adversários chamando-os de “agentes do imperialismo” e/ou “do latifúndio”, “direita fascista”, “traidores do povo”, “vendilhões da pátria”, “escribas da imprensa reacionária”, “lacaios da burguesia”, além de outros termos desabonadores. Essa política começou a ser superada em meados dos anos 1950, quando iniciou um processo renovador – sob os influxos da desestalinização da URSS (1956) – que o levaria a valorizar a democracia, a ação política institucional e a via pacífica para o socialismo.
Fundado na luta contra a ditadura, o PT, por sua vez, foi constituído por segmentos sociais diversos. Generosamente amparado pela mídia, sua política se fundamentou, inicialmente, num radicalismo liberal (contra o Estado), no corporativismo de resultados e no exclusivismo partidário (rejeição de alianças e autoafirmação). Na passagem dos anos 80 para os 90, experimentou metamorfose significativa: incorporou concepções nacional- desenvolvimentistas de base estatal, absorveu contingentes consideráveis de membros da burocracia pública, acomodou-se às vantagens do sindicalismo corporativo, passou a flertar com setores insignes do empresariado, aproximou-se do castrismo e, posteriormente, do bolivarianismo e encetou um projeto de poder. A seguir, alçado ao poder central, governou com um consórcio de partidos fisiológicos e patrimonialistas, por meio da partilha do aparato estatal e de seus proveitos, da cooptação de entidades e movimentos e de políticas públicas clientelistas – sua identidade de esquerda e seu protagonismo impetuoso foram substituídos pelo pragmatismo e pelas conveniências políticas momentâneas.
No momento em que esse arranjo de poder entrou em crise e o PT foi dele excluído, seus dirigentes e militantes, adjuntos e satélites passaram a vituperar os coligados de véspera. Consternados com a destituição do mando, com a autuação de líderes acusados de mercadejar e/ou se apropriar de fundos públicos, com a corrosão de sua credibilidade e com a redução de sua capacidade mobilizatória, reanimaram seu peculiar instinto de animosidade contra os valores, normas e instituições democráticas. Seu vezo persecutório foi extremado com ataques à Justiça (facciosa, a serviço do imperialismo), à imprensa (burguesa, monopolista), ao Congresso (golpista), aos liberal-democratas (neoliberais, direitistas), etc. Com oratória ruidosa, desferiram impropérios de todo tipo contam os que ousaram e ousam não pensar como eles. Para os petistas, esses atos se justificam, pois estamos vivenciando um verdadeiro estado de exceção. A condenação e a prisão de seu “grande líder” – convertido em redentor – haveriam, disseram petistas, de provocar uma comoção inédita no País, com resultados imprevisíveis, que poderia até despertar ímpetos sediciosos em devotos e/ou correligionários e em movimentos populares que, com seus “exércitos” de sem-terra e sem-teto, incendiariam o Brasil.
Essa conduta política rebelde e intolerante parece não ter encontrado ressonância na sociedade – indicativo disso foi a considerável perda de votos e de representação nas eleições municipais de 2016. É também nítido o decréscimo de seu poder mobilizador e de sua faculdade de persuasão político-ideológica, além de ter reduzidas sua inserção e sua influência na sociedade civil e política.
Guardadas as devidas diferenças de época histórica e as particularidades político- ideológicas, bem como de formação e composição de cada um dos partidos em foco, fato é que o PT parece reencarnar muito dos fundamentos da práxis comunista e de sua cultura política, absorvendo concepções e práticas, palavras de ordem e gritos de guerra remotos. Mas se essa política já havia evidenciado seu anacronismo há cerca de sete décadas, sua exumação e concretização no presente é um mero simulacro de um passado infausto.
(*) Professor titular de sociologia da Unesp
Fonte: O Estado de São Paulo (06/06/18)
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